O Elemento Perfeito
O Elemento Perfeito
Por: Pierre Wallace Thompson
Cap 01

Lucy

Todos sabem que sou perfeita. Tenho uma vida perfeita. Roupas perfeitas. Até minha família é sinônimo de perfeição. E embora tudo seja uma completa mentira, me esforcei muito para manter as aparências, para ser perfeita em todos os sentidos. Se soubessem da real, minha imagem iria por água abaixo. Parada em frente ao espelho do banheiro, com o som ligado no último volume, corrijo, pela terceira vez, mais uma linha torta que tracei, sob o olho.

Droga! Minhas mãos estão tremendo. Começar o último ano do segundo grau e reencontrar meu namorado, depois de ficarmos longe um do outro nas férias de verão, não deveria ser tão estressante assim... Mas hoje o dia começou mal.

Primeiro, o meu modelador de cachos começou a soltar fumaça e logo parou de funcionar. Depois, o botão da minha blusa predileta quebrou. E agora este delineador resolveu que tem vontade própria! Se eu pudesse escolher, ficaria em minha cama, bem confortável, comendo biscoitos com gotas de chocolate, quentinhos, o dia todo.

- Venha, Lu!

Hum... Acho que ouvi minha mãe gritar, lá do hall.

Meu primeiro impulso é ignorá-la, mas isso nunca me traz nada de bom, a não ser bronca, dor de cabeça... E mais gritos.

- Já vou! Só um minutinho — respondo, esperando conseguir passar esse delineador direito e acabar logo com isso.

Por fim, acerto o traço, jogo o delineador no balcão da pia, confiro minha imagem no espelho, uma, duas, três vezes. Desligo o som e desço correndo para o hall.

Minha mãe está parada, aos pés da nossa esplêndida escadaria, analisando meu visual. Endireito os ombros.

Sim, eu sei... Tenho dezoito anos e não deveria ligar para o que mamãe pensa..., Mas não é você que mora aqui, na casa dos Valverde.

Minha mãe sofre de ansiedade... Não do tipo facilmente controlado por pequenas pílulas azuis. E, quando está estressada, todos os que convivem com ela sofrem também. Vai ver que é por isso que meu pai sai para trabalhar cedinho, antes que ela se levante: para não ter que lidar com... bem... com ela.

- Odiei a calça, amei o cinto — diz minha mãe, apontando com o indicador para cada uma das minhas peças de roupa. — E aquele barulho que você chama de música estava me dando enxaqueca. Ainda bem que você desligou.

- Bom dia para você também, mãe — eu digo, antes de descer a escada e dar-lhe um beijinho no rosto. Quanto mais me aproximo dela, mais meu nariz sofre com o tormento do seu perfume forte. Minha mãe parece uma milionária, em seu uniforme de tênis Blue Label, da Ralph Lauren. Claro que ninguém poderia levantar sequer um dedo para criticar suas roupas.

- Comprei o muffin que você mais gosta, para o seu primeiro dia de aula — ela anuncia, me mostrando um saquinho que tinha escondido atrás das costas.

 - Não quero, obrigada — eu digo, olhando em volta para ver se acho minha irmã.

- Cadê a Karla?

- Na cozinha.

 - A nova enfermeira já chegou?

 - Seu nome é Amora. E, não, ela só vai chegar dentro de uma hora.

- Você já contou a Amora que a lã irrita a pele de Karla... E que ela puxa os cabelos de quem está por perto, quando fica nervosa?

Karla sempre deixou claro, mesmo sem falar, que detesta o contato da lã contra a pele. Puxar cabelos é sua nova mania que, aliás, já causou alguns desastres... E desastres, em minha casa, são quase tão sérios quanto um acidente de carro. Portanto, evitá-los é uma coisa crucial em nossas vidas.

- Sim... E sim — responde minha mãe. — Dei uma bronca em sua irmã, hoje cedo, Lucy. Se ela continuar desse jeito, perderemos mais uma enfermeira.

Vou até a cozinha, pois não estou a fim de ouvir a lengalenga de minha mãe, nem suas teorias sobre os motivos que levam Karla a partir para aqueles repentinos ataques. Minha irmã está sentada à mesa, na cadeira de rodas, ocupada em ingerir sua comida, que precisa ser especialmente preparada. Pois, apesar de seus vinte e um anos, Karla não consegue mastigar nem engolir, como fazem as pessoas que não têm as mesmas limitações físicas que ela.

Como de costume, a comida acabou grudada em seu queixo, lábios e bochechas.

- Ei, Shell-Bell, minha Conchinha Barulhenta— digo, inclinando-me na direção dela para limpar seu rosto com um guardanapo. — Hoje é o meu primeiro dia de aula. Não vai me desejar boa sorte?

Desajeitadamente, Karla estica os braços e sorri seu sorrisinho torto... Como amo esse sorriso!

- Quer me dar um abraço? — pergunto, já sabendo a resposta. Os médicos sempre nos dizem que quanto mais Karla interagir com as pessoas, melhor ela ficará.

Karla responde sim, com a cabeça. Deixo-me envolver por seu abraço, tomando cuidado para manter suas mãos longe do meu cabelo. Quando me endireito, dou de cara com minha mãe, que está ofegante. Até parece um juiz apitando, interrompendo minha vida por um momento, só para dizer:

- Lu, você não pode ir à escola assim.

 - Assim... como?

Ela balança a cabeça, com um suspiro de frustração:

- Olhe só para a sua blusa.

Obedeço... E vejo uma grande mancha úmida, bem na frente de minha blusa Calvin Klein branca. Ops! Baba da Karla. Só de olhar para o rosto tenso da minha irmã, capto a mensagem que ela não consegue expressar facilmente, com palavras: Karla sente muito. Karla não queria sujar a minha roupa.

- Não foi nada — digo a ela, apesar de saber, lá no fundo, que a mancha acabou com meu visual perfeito.

Franzindo a testa, minha mãe umedece um papel-toalha, na pia, e esfrega a mancha com ele. Quando ela faz essas coisas, eu me sinto como uma criancinha de dois anos.

- Vá trocar de roupa.

- Mãe, é só pêssego — digo, com todo cuidado, para que essa estória não vire uma gritaria daquelas. A última coisa que eu quero na vida é deixar minha irmã se sentindo mal.

 - Pêssego mancha. Você não quer que as pessoas pensem que não se importa com sua aparência...

 - Tudo bem.

Puxa, eu gostaria que minha mãe estivesse num de seus bons dias... Dias em que ela não me enche com essas bobagens. Dou um beijo bem no alto da cabeça da minha irmã, para mostrar a ela que não me incomodei, de jeito nenhum, com sua baba.

- Vejo você depois da escola, Shell-Bell... — digo, tentando manter a animação matinal — para terminar nosso jogo de damas.

Subo a escada correndo, agora de dois em dois degraus. Chego ao meu quarto e olho o relógio... Oh, não! São sete e dez. Fiquei de dar uma carona a Sierra, minha melhor amiga. E ela vai surtar se eu chegar atrasada. Pego um lenço azul claro, no meu armário, e rezo para que dê certo... Se eu o prender direito, talvez ninguém veja a mancha de baba.

Volto a descer a escada e lá está minha mãe, de novo, analisando o meu visual...

- Amei o lenço.

- Ufa!

Quando passo por minha mãe, ela me entrega o saquinho com o muffin:

- Para você comer no caminho.

Acabo aceitando. Enquanto caminho na direção do meu carro, vou mordendo o muffin, distraída. Infelizmente, não é de blueberry, meu sabor preferido. É de banana com nozes... E as bananas passaram do ponto. É, esse muffin está bem parecido comigo: por fora, aparentemente perfeita..., Mas, por dentro, um verdadeiro mingau.

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