O Edifício Branco

O dia letivo de Kris fora perfeitamente normal. Ele teve prova de matemática. Eu, acompanhada dos leedwees das outras crianças, esperei do lado de fora da sala de aula, pois não nos era permitido dar dicas durante os testes. Kris tirou 850 de 1000.

Ainda que tivesse ficado feliz com as felicitações que recebera de seus colegas e professores, a pessoa de quem Kris mais gostava não havia aparecido na escola: sua melhor amiga Meg. Talvez por estar doente, ou por algum outro motivo. Kris não se preocupou muito. Meg faltava às aulas vez ou outra, mas ela sempre dava algum bom motivo, apesar de eu sempre achar que ela se ausentava o suficiente para chamar a atenção de alguma autoridade da escola.

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-Bluey, você se lembra qual a cor do corante que a mamãe pediu pra gente comprar? - perguntou Kris.

-Lembro sim. Ela pediu corante azul marinho, mais especificamente da marca Akuaberry. - Respondi ao mesmo tempo que tentava desviar dos coloridos Leedwees de dezenas de outras pessoas que por ali passavam.

Chegando no movimentado centro da cidade, entramos numa área conhecida como Calçadão Comercial, uma longa avenida para pedestres com dezenas de lojas e comércios de todos os tipos que iam até onde a vista alcançava, e um fluxo intenso de pessoas.

-Vamos no mercadinho do Sr Yorg, acho que lá deve ter. - ao ouvir isso me senti mal. Eu não gostava de ir lá. Sempre me alegrava quando Kris resolvia não passar por ali. Não, eu não tinha nada contra o senhor Yorg ou o seu mercadinho. Pelo contrário, ele era um senhor muito simpático com uma leedwee adorável. O que me incomodava é o que estava bem ali do lado.

Kris apertou o passo pois não queria se atrasar para a sua própria festa de aniversário. Sendo pequeno e magro, ele passava com facilidade entre dois corpos. Tive que voar alto para acompanhá-lo. De lá de cima tive uma vista completa do calçadão comercial. Dezenas de lojas com os mais variados produtos. Os comércios iam de food-trucks e petshops até imobiliárias e consultórios médicos particulares. Passamos em frente à uma loja de colchões onde havia o que eu considerava a mascote de loja mais ridículo do mundo: Uma mulher humana vestida de leedwee com um traje verde extremamente curto e apelativo, uma horrível peruca de mesma cor e asas falsas feitas com penas de galinha. Em seu ombro estava seu ajudante vestido de humano, com uma camisa de praia escondendo suas asas, um short claro e uma mini peruca de cabelos negros. A mulher dançava de forma provocativa, atraindo olhares, e repetindo a mesma patética frase "Venha na Gigante Sonhos com a Gigante Leedwee para conhecer descontos maiores ainda!". Vez ou outra lançava uma piscadela para algum pervertido, sensualizando com suas asas falsas. Não sei quanto aos outros, mas eu considerava aquilo um tanto quanto ofensivo. Podia ver no rosto do ajudante em seu ombro que ele não estava nem um pouco feliz com o que o obrigaram a fazer. Não foi a primeira vez que vi humanos usando nossa imagem de forma pejorativa para vender produtos. Todos conheciam o Bobby Bobo, uma mascote que vinha estampado em caixas de cereal, sempre acompanhado de uma frase autodepreciativa e vestindo alguma fantasia ridícula. Meu peito doía sempre que eu via algo assim, e uma sensação de vergonha e injustiça me preenchia, sentimentos genuinamente meus. Claro, existiam mascotes humanos, a questão é que sempre... sempre, sem exceção, fomos mostrados como sendo burros e insignificantes.

Eu não era de reclamar. Sempre fui muito bem tratada pelo meu humano e sua família, e eu sabia que aquilo não era o padrão. Historicamente leedwees eram considerados seres inferiores que vivem para servir. E se não servirmos, somos castigados. Já cansei de ver leedwees serem castigados por seus amos, sofrendo danos físicos severos, mortais para qualquer um, mas para nós irrelevantes. Se aproveitavam da nossa "imortalidade" para nos torturarem, mas apesar de não morrermos por absolutamente nada enquanto estivéssemos perto dos nossos humanos, a dor era real e excruciante. Leedwees sentem a dor de seus amos, mas eles não podiam sentir a nossa. Sentíamos a fome deles, a tristeza deles, as aflições, a angústia, o desespero, mas apenas nós sentíamos nosso próprio sofrimento. Eu era grata por ter Kris, um garoto que me respeitava, que me tratava como uma igual, que nunca levantou um dedo para me ferir, e por sua família que o educou assim. Por isso eu decidira proteger Kris, a minha amada criança até o último dia de nossas vidas.

Perto do centro do Calçadão havia uma grande fonte circular que jorrava água para todos os lados. No meio dela, erguida por um grande pedestal, havia uma estátua de bronze de 5 metros de uma mulher jovem nua de cabelos longos e lisos, segurando com as duas mãos o que parecia ser um cristal multifacetado no formato de coração. No pedestal encontrava-se uma placa de bronze com os dizeres: "Tyr, a humana, libertadora da humanidade". Havia muitas dessas espalhadas pelo mundo, umas 30 só na nossa cidade, uma em cada bairro, e uma gigantesca em frente ao palácio real. Ao pé da fonte vi um pai com seu filho, explicando como Tyr havia os libertado das mãos das terríveis fadas, e como seus descendentes leedwees deveriam ser eternamente responsáveis por pagar essa dívida sem fim.

Vivíamos em Vetch, capital da grande nação de Neander, uma das maiores do mundo, e a que tinha o maior número de centros históricos, por ser o epicentro da evolução humana após a libertação. Com o passar dos séculos a humanidade foi se dividindo em grandes porções de terra que foram chamando de países, depois que eles inventaram uma coisa chamada política, que eu nunca entendi direito.

Viramos uma esquina e entramos num beco pouco movimentado. O mercadinho ficava bem no final dele. Ao chegarmos perto, vi aquilo que mais me causava repulsa: o Centro de Domesticação. Nunca entrei num deles, mas já ouvi diversas histórias sobre as coisas que aconteciam lá dentro. Oficialmente, o Centro de Domesticação era um lugar onde as pessoas levavam seus ajudantes para um curto período de treinamento, onde eles aprendiam seus deveres como um bom leedwee e eram instruídos a fazer determinada ação sob determinada situação. Enquanto isso seus humanos eram levados a outra parte do prédio, onde ficavam numa espécie de spa enquanto aguardavam o retorno de seus ajudantes. Bom, o que alguns afirmavam ser a verdade sobre os Centros de Domesticação não era tão simples e inofensivo como as empresas marketavam. O que diziam era que o lugar foi feito para alienar leedwees agressivos, teimosos, arrogantes, petulantes, que se recusam a obedecer ou que não reconhecem seu verdadeiro lugar perante os humanos, ou seja, abaixo. Apesar da tortura e outros métodos para forçar leedwees ao trabalho, muitos ainda se rebelavam, e diziam que os Centros de Domesticação serviam para resolver isso. Outros afirmavam o mesmo, com o adendo de que um leedwee podia acabar nesse lugar mesmo não tendo feito absolutamente nada, apenas porque seu humano desejava um ajudante menos falante. As histórias mais detalhadas também não eram daquelas que uma mãe contaria a seu filho antes de dormir. Uma que, particularmente, me dava arrepios era a que explicava os métodos de alienação. Ela dizia que o leedwee era preso a uma pequena cadeira, colocavam-lhe um minúsculo aparelho que impedia que suas pálpebras de fechassem e lhe passavam vídeos que não vou nem mencionar. Ainda acrescentavam outros tipos de torturas psicológicas, até mesmo físicas, injetavam algumas substâncias alucinógenas e outras que provocavam dores agonizantes. O tratamento era eficaz. Bastava uma vez no Centro de Domesticação e pronto. Um ajudante entrava de um jeito e saía como todos os outros: um robô, uma casca sem sentimentos treinada para obedecer a qualquer tipo de ordem, seja qual for, sem questionar, um ser que não pensa, que não sente nada, que vive apenas para servir. O servo perfeito.

Entramos no mercadinho e Kris comprou o corante que sua mãe solicitou. O Sr Yorg nos cumprimentou com um sorriso e saímos do lugar. Mais uma vez eu olhei para o prédio do Centro de Domesticação, um edifício muito branco de uns quatro andares. O que me intrigava era o fato de somente o andar térreo e o primeiro andar possuírem janelas. O resto era apenas uma grande parede com o letreiro "CENTRO DE DOMESTICAÇÃO URSO BRANCO". Até então eu nunca havia conhecido um leedwee que tivesse passado por um desses centros, mas me recordo de algumas vezes que cruzei com alguns ajudantes que agiam de maneira muito estranha, esses com olhares vazios mirando o nada. Cheguei a esbarrar em um assim. Virei e me desculpei com ele, mas ele seguiu voando sem olhar para trás. Não sei até onde ia a veracidade das histórias que contavam sobre esses lugares, o fato é que eu sentia muito medo e tristeza quando passava em frente a algum. Decidi não olhar mais para aquele prédio, mas assim que dei as costas para o Centro, senti calor, senti... Dor... Senti minhas costas queimando! Berrei de dor quando fui atirada ao chão com meu corpo em chamas. Kris, que estava bem a frente quando aconteceu, voltou correndo para me socorrer. Rolei no chão tentando apagar o fogo que me queimava, e para desviar das inúmeras pessoas que passavam por mim correndo e gritando, desesperadas. Vi Kris se aproximando, gritando meu nome, esbarrando em todos que corriam por suas vidas.

Olhei para cima e gritei:

-Cuidado!!!

Um pedaço de concreto do tamanho de uma lata de lixo despencou do alto do prédio do Centro de Domesticação, e meu amo estava correndo bem para o lugar onde o objeto iria pousar. Com o meu grito Kris parou bem a tempo de ver a coisa cair bem na sua frente. Ele se recuperou do choque e continuou vindo em minha direção. Àquela altura eu já conseguira apagar boa parte das chamas em mim. Meu amo se abaixou em minha frente e soprou-me, livrando-me de vez do fogo. 

Como minhas asas foram quase completamente consumidas pelas chamas, Kris me pôs em suas mãos, me perguntando mil vezes se eu estava bem. Apesar da dor latejante em quase todas as partes de mim, eu iria sobreviver desde que Kris estivesse bem. Eu queria dizer a meu amo para sairmos dali o quanto antes, mas minha voz não saía. Me esforcei tanto para alertar Kris sobre o bloco de concreto que acho que feri meus pulmões, isso explicava a sensação de que eles haviam explodido. Foi minha falta de voz que me impediu de alertar meu amo novamente, desta vez sobre a enorme labareda que vinha em nossa direção. Eu era apenas uma leedwee ferida nas mãos de meu humano que iria morrer por não notar a língua de fogo que vinha como um raio para atingi-lo nas costas.

"Meu humano vai morrer... Kris vai morrer... Tudo porque ele voltou para me ajudar... Por favor... Ele não... Eu o amo... Eu tenho que ter forças para avisá-lo...!"

Fiz um esforço tremendo para forçar o ar a sair de meus pulmões, não importasse a dor insuportável que me afligisse... Mas não consegui... Eu havia falhado... Tudo o que pude fazer foi erguer a mão na direção do rosto da minha amada criança.

De repente senti uma rajada de vento tão forte que nos derrubou no chão e atingiu a labareda, desviando seu caminho a fazendo atingir o Centro de Domesticação, que ardia da base ao topo.

Kris se recompôs, me pegou novamente e saiu correndo dali.

Das mãos de meu amo, pude ver o prédio do Centro de Domesticação ser atingido com outras labaredas que surgiam do nada, e desabar em chamas. Após o desabamento os ataques cessaram. O Calçadão Comercial estava praticamente vazio quando chegamos no ponto de ônibus.

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