3. Christopher

A porta da casa estava escancarada, mas o assistente de xerife hesitava, parado, do outro lado da rua. Não queria encarar uma cena de crime, pois, apesar de ser parte da sua função, era sensível e cada tragédia teimava em ficar registrada em sua memória, para lhe assombrar durante a noite, por isso, se preparava olhando para “o famoso céu de Yurok”, como sempre dizia.

Aos trinta e cinco anos, Christopher ainda tinha um rosto jovem e o fato de carregar sempre um sorriso leve no rosto, ajudava a causar essa impressão. Não usava barba, mas carregava um fino bigode sobre os lábios grossos. Seu nariz era largo e as narinas bem abertas. Os olhos, redondos e escuros sempre deixavam o interlocutor à vontade, pois, passavam a segurança de que tudo o que era dito tinha sua importância. Contrariando a moda da Capital, o assistente não usava chapéu, exibindo com orgulho seu enorme cabelo crespo, que formava uma grande nuvem ao redor da cabeça. Quanto ao restante do fardamento, Christopher seguia a moda do planeta. Usava botas de cano alto, calça jeans reforçada com perneiras de couro, camisa xadrez e jaqueta cinturada, com franjas em uma linha vertical, do cotovelo ao punho. Era robusto e alto, muito mais alto que o comum, seu tamanho sendo agigantado, ainda mais, pelo cabelo.

Finalmente, olhando para a porta aberta, agradeceu à Sagrada Trindade por estar sozinho na delegacia quando recebeu aquela chamada. Apesar de Munir ser a melhor pessoa do universo para ter ao lado na hora da ação, em outros momentos, como aquele, o xerife costumava ser um tanto rude e até mesmo grosseiro.

A ligação fora anônima. O assistente sempre se divertia com a ingenuidade das pessoas que acreditavam ser possível ligar anonimamente para a delegacia. Mas, talvez, não acreditassem, preferindo manter a farsa apenas como recurso desesperado de tentar garantir que o xerife e seu assistente não usassem a informação contra o autor do telefonema. O fato é que, apesar de Christopher saber quem tinha realizado a chamada, por questão de princípios, ele jamais passaria essa informação para terceiros. Mesmo porque, o importante naquela situação, não era investigar quem tinha ligado, mas sim, o que acontecera. A diligência da Inquisição parara na frente daquela casa, ficara por algumas horas, houve gritos, outro morador chegou à residência, mais gritos e a Inquisição foi embora. Silêncio, desde então. Nenhum dos vizinhos teve coragem de entrar, todos sabiam a bagunça que aquela visita significava.

Christopher precisava parar de enrolar e entrar, mas mesmo ele, ficava indisposto com as crueldades cometidas por aquele grupo que, oficialmente, não existia. As visitas da Inquisição se tornavam cada vez mais frequentes, deixando um rastro de sangue por toda Baracoa, mas, quando qualquer reclamação era feita ao governo, este negava a existência da repartição ou o envolvimento da República nos assassinatos. No entanto, quando a população exigia que o xerife tomasse alguma providência, o mesmo governo enviava representantes à delegacia, pedindo que o caso fosse abafado e encerrado. O sangue do assistente fervia dentro das veias. O xerife acatava qualquer ordem superior como se fosse uma determinação divina. Um verdadeiro cão de caça.

Sem nem mesmo tirar a pistola do coldre, o assistente respirou fundo e, com passos largos, decidiu entrar na casa, de uma vez por todas.

A residência não tinha qualquer atrativo. Era simples, como qualquer outra casa habitada por um operário. No entanto, os móveis da sala tinham sido todos empurrados para um canto, o tapete com padrões geométricos, a mesa de centro, em madeira, com as bordas e quinas ornamentadas, o sofá disforme, escondido por uma capa protetora, todos amontoados e encostados na parede. Mesmo assim, era possível, pelas marcas mais claras no piso, identificar os lugares originais do sofá e do tapete.

No centro do cômodo, amarrada em uma antiga poltrona, estava a primeira vítima.

Christopher puxou, do bolso interno de sua jaqueta, a tabuleta eletrônica, conferindo alguns dados e sussurrando:

- Então... Muito prazer, Yasmin Castañeda.

Com o mesmo equipamento, tirou algumas fotos do corpo, reparando nos inúmeros cortes feitos nos braços, nos dois dedos ausentes, da mão direita e, olhando para o chão, contara, ao menos, cinco dentes.

- Esses caras são uns animais... Ela era uma rebelde, eu não tenho dúvidas quanto a isso, eles são precisos quando atacam, mas ninguém precisa passar por isso, não importa o crime que cometeu. Pelo menos nisso, Munir é democrático. Em suas mãos, ninguém nunca é agredido desnes...

O barulho de algo metálico caindo no chão de madeira, vindo do interior da casa, despertou Christopher de suas divagações. Pela primeira vez, teve impulso de sacar uma de suas pistolas Light Wave.

Caminhava pelo corredor, em direção à única porta aberta, quando escutou uma respiração ofegante.

Subitamente, entendeu para onde estava indo e o que estava acontecendo.

Olhando para a tabuleta, para confirmar o nome do homem, o assistente disse:

- Afonso? Não faça isso! Meu nome é Christopher, eu sou assistente de xerife. Estou guardando a pistola no coldre e vim aqui para te ajudar. Sua vida é preciosa. Eu posso imaginar o que está passando em sua cabeça, mas vamos conversar, ok? Eu estou entrando, não se assuste. Sou um homem grande, mas não se preocupe, não vim lhe fazer mal. O que quer que tenha em suas mãos, por favor, coloque na pia.

Enquanto falava, o assistente caminhava, evitando fazer qualquer barulho que pudesse disparar uma reação defensiva em Afonso. O homem estava traumatizado e em choque. Todo cuidado era necessário.

Quando deu o primeiro passo para dentro do banheiro, Christopher viu os olhos assustados do homem que o encarava, pelo espelho. O rosto, naturalmente redondo, estava ainda mais inchado pelo choro. O homem estava completamente nu e as peles do braço, de um dos lados do rosto e da barriga estavam levemente esfoladas. Afonso segurava uma lâmina de barbear pressionada contra o pescoço, de onde escorria um fino fio de sangue.

- Ei, tá vendo? Olha pra mim! Você não precisa fazer isso! Eu tô aqui, vim te ajudar. Vamos sair desse banheiro, vamos para o quarto!

As roupas de Afonso estavam empilhadas em um canto, ao lado da banheira e havia respingos de sangue por todo o cômodo. Na banheira, o resto da água que se acumulava ao redor do ralo era rosada. Christopher imaginou que o homem gordo tinha se ralado de tanto esfregar o corpo, tentando limpar o sangue de sua esposa. O homem de cabelos crespos tentava impedir o outro de cometer suicídio, mais por dever do que por convicção. O cenário que vira na sala daquela casa o deixara profundamente abalado e, além de estar acostumado em lidar com a morte, aquela mulher não significava nada para ele. Não conseguia imaginar a devastação interior que aquele homem estava vivendo.

Mas, mesmo sem convicção, as palavras do assistente fizeram efeito. Afonso soltou a lâmina, que caiu na pia com um tinido característico e, empurrando levemente o assistente de xerife, saiu do banheiro, entrando na porta ao lado.

Christopher seguiu o homem e o encontrou sentado na cama, com os cotovelos apoiados nas pernas, olhando para os próprios pés. Afonso ergueu a cabeça, dizendo:

- Como eu posso continuar vivendo, depois disso?

Usando a tabuleta eletrônica, Christopher convocou pessoas especializadas que cuidariam do corpo e removeriam todos os vestígios do ocorrido, na sala. Não era o procedimento padrão, mas, como o governo proibiria a investigação, de qualquer maneira, seria crueldade deixar a vítima exposta naquelas circunstâncias. Enquanto realizava esses procedimentos, respondeu o homem gordo, sem coragem de olhar para seus olhos:

- A gente sempre encontra um motivo pra continuar vivendo, é só você procurar.

Afonso abaixou a cabeça, voltando para a posição original. No silêncio do quarto, era possível ouvir o som das lágrimas se espatifando contra o piso de madeira.

Saindo do quarto, Christopher fez a pergunta mais idiota que se pode fazer nessas situações:

- Você vai ficar bem?

Afonso fez um gesto com a mão, indicando que o assistente fosse embora, enquanto dizia:

- Claro, claro. Vou ficar bem. Um motivo para viver, não é? É disso que preciso...

Christopher saiu da casa e subiu em sua moto flutuante, modelo Coby Welsh. Ele precisava voltar para a delegacia, mas não conseguiria fazer aquilo. Precisava organizar seus pensamentos antes.

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