2. Hilde

A jovem loura, de cabelos longos, cujos cachos serpeavam por suas costas até a linha da cintura, estava nua e observava atentamente seu reflexo no espelho. As coxas grossas e musculosas, os pelos pubianos que, da mesma cor de seu cabelo, cintilavam, o abdômen rígido com musculatura definida, os seios pequenos e duros, com mamilos discretos, quase da mesma cor de sua pele alva, salpicada por centenas de sinais. Os ombros largos e fortes, assim como os braços. Os olhos pequenos e verdes, o nariz pequeno, mas de traços fortes, assim como sua boca, que se mantinha em um constante sorriso sarcástico. Hilde olhava para seu belo rosto, depois para o corpo, modelado por seu treinamento constante, mas não sentia orgulho, havia até um certo quê de indiferença pelo que via. Desde que retornara para Yurok, retornando para casa de sua mãe, tinha de gastar horas se maquiando, escondendo suas feições, preparando-se para fazer seu trabalho.

Ainda jovem, percebeu que, lentamente, o Planeta Yurok abandonava a neutralidade na guerra intergaláctica, cedendo o controle de seu governo para um dos lados. Primeiro, favorecendo a República em alguns contratos de exploração de oxigênio, depois, permitindo o estabelecimento de pequenas forças militares, cujo objetivo anunciado para a população não fazia sentido algum, pois, se tratava de instalar oficiais da República no planeta para impedir a intervenção do grupo rival, a Coligação Interplanetária, garantindo assim que Yurok se mantivesse independente. Hilde percebeu que o caminho escolhido pelo planeta era sem volta e, aos dezenove anos, fez o que quase todos os jovens de Baracoa, da sua idade, desejavam fazer: Embarcou clandestinamente em uma espaçonave comercial, cujo destino não conhecia, e fugiu.

Seu esconderijo foi descoberto, logo nos primeiros minutos após a decolagem, pois, como protocolo de toda nave comercial, em viagens entre sistemas diferentes, foi feita uma varredura biológica, com o intuito de impedir a disseminação de vírus e pragas. O complexo scanner, capaz de detectar bactérias, até mesmo por trás de espessas placas metálicas, detectou um ser humano com uma facilidade despropositada.

Hilde foi levada ao capitão da espaçonave que, após perguntar o motivo da fuga da jovem, solidarizou-se, pois, ele mesmo começara a sua carreira na Espaçonáutica Mercantil por ser um desertor político. Como forma de mostrar sua simpatia pela forma de pensar de Hilde, resolveu que concederia tratamento especial e, ao invés de jogá-la no vácuo do espaço, tomou uma decisão mais humana e, em um dos entrepostos comerciais, por uma boa quantia em créditos não marcados, vendeu-a como escrava para uma espaçonave da Coligação, dizendo:

- Essa menina vai longe, fugiu de Yurok por não querer vê-la nas mãos da República, façam bom proveito!

Os espaçonautas da Coligação seguiram o conselho do capitão.

Os compradores de Hilde eram, na verdade, membros da FOEC, a Força de Operações Especiais da Coligação, cuja missão corrente no dia da negociação envolvendo a jovem era, justamente, debelar o tráfico humano, que se tornara cada vez mais frequente naquele setor do universo. Os créditos não marcados, como o prometido, estavam livres de qualquer tributação, mas eram totalmente rastreáveis e a nave foi abatida por um esquadrão de caça, algumas semanas depois.

Normalmente, os escravos comprados pela FOEC eram levados, provisoriamente, para campos de refugiados e, após triagem, restituídos aos seus planetas de origem, ou, caso isso não fosse possível, deixados em alguma colônia que necessitasse de suas habilidades. Mas, Hilde não era uma jovem normal. Sua capacidade de argumentar e insistir eram tão grandes que acabara convencendo os responsáveis por sua tutela sobre a seriedade da ocupação do Planeta Yurok pela República, que já detinha supremacia militar e buscava hegemonia econômica, enquanto batalhava cargos, cada vez mais, importantes na política do país.

Agentes se infiltraram em Yurok para confirmar as informações de Hilde e estas se mostraram coerentes. Como parte da barganha, a jovem foi submetida a testes físicos, psicológicos e de inteligência, nos quais, com maior ou menor louvor, foi aprovada, juntando-se à FOEC.

Após três anos de treinamento intenso e rigoroso, com sucesso em inúmeras pequenas missões, em diversos setores do universo, Hilde foi convocada para fazer parte de um grupo ainda mais exclusivo, dentro da FOEC, a Polícia Científica Experimental.

A PoCiEx era composta por dois grupos: o científico, que desenvolvia armamentos, armaduras, equipamentos e bugigangas da mais alta e moderna tecnologia; e o de campo, que experimentava essas tecnologias de modo secreto, usando-os como elemento surpresa nas mais importantes operações. Em outras palavras, Hilde se tornara uma agente secreta.

Alguns meses antes de estar se maquiando, em frente a um espelho, em seu planeta natal, Hilde vagava pelo espaço, na espaçonave sede da PoCiEx, “de castigo” como dizia, enquanto se recuperava dos ferimentos de uma missão que saíra diferente do esperado, por culpa do mal funcionamento de um de seus equipamentos.

O médico terminou de examinar suas costas e, com um sorriso, deu um parecer final:

- Você está pronta pra voltar a ativa.

Hilde mal teve tempo para ficar ansiosa, imaginando quando receberia uma nova missão, pois, alguns minutos após a saída do médico, um agente bateu em sua porta. A jovem recebeu a tradicional tabuleta eletrônica parda, com leitor de retina e o aviso: apenas para seus olhos.

Diferentemente das outras missões que recebera até então, com detalhes bem definidos, contatos estipulados e planos de reserva caso algo na missão corresse fora do esperado, aquela tabuleta parda era, ao mesmo tempo, tudo o que mais sonhara e tudo o que mais temia. Uma missão da mais alta categoria.

A jovem deveria voltar para Yurok, com uma história plausível para seu desaparecimento de cinco anos e recuperar a confiança de seus familiares e antigas relações. Garantir que fosse considerada apenas uma jovem sonsa e passar despercebida por possíveis oficiais da República, que a estivessem monitorando. Com discrição, deveria elaborar e executar, sozinha ou com os recursos que encontrasse no planeta, um plano que inviabilizasse ou atrasasse as ideias de colonização de Yurok pela República.

Hilde nem imaginava o quanto sentia saudades daquele céu roxo-avermelhado e das quase constantes estrelas cadentes riscando o horizonte. Ela tinha estado em centenas de planetas com os mais diversos céus, nenhum era capaz de se igualar àquele em beleza.

Mas agora, irreconhecível, vestida para continuar sua pesquisa, até então infrutífera, sobre como derrubar o governo corrupto de Sakakibara e escapar ilesa para retornar à FOEC, a jovem tamborilava, com os dedos, o peitoral da janela, contando estrelas cadentes, enquanto se concentrava para mais um dia de trabalho.

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