Munir
Munir
Por: Evandro R Saracino
Prólogo

A moto flutuante, modelo Akhal Teke, ergueu uma nuvem de poeira, quando a xerife Carol girou o veículo em noventa graus, parando, bruscamente, nas proximidades do Bairro do Óleo, um antigo entreposto comercial fora da capital, Baracoa, que, esquecido com a mudança das rotas mercantis, se tornara o abrigo de foragidos, rebeldes e imigrantes ilegais, vindos de outros planetas.

A mulher olhou para a rua deserta à sua frente, imaginando como, minutos atrás, antes de sua nuvem de poeira ser vista pelos habitantes, aquele local devia estar repleto de vida. Tentando convencer a si mesma de que estava do lado certo da justiça, disse:

- Bom... Quem não deve, não teme.

Ela sabia que essa era uma verdade relativa, afinal, Baracoa não era uma cidade justa e as leis pareciam ser flexíveis, dobrando sempre para o lado mais capaz de gerar lucros, ou mais próximo dos interesses da República, mesmo assim, não tinha outra opção além de cumprir seu dever. Se não fosse ela, outra pessoa de moral mais duvidosa poderia assumir o cargo.

Desceu do veículo e bateu com o calcanhar da bota direita na lateral da bota esquerda, expulsando o excesso de poeira, repetindo, em seguida, o procedimento com a perna oposta. A xerife usava calças de lona, de corte reto, camisa xadrez, enfiada dentro das calças, exibindo a fivela dourada no cinto, concedida apenas aos bravos cowboys vencedores da corrida anual de volta ao mundo. Espetada na altura do peito, a estrela que confirmava seu cargo de poder, como defensora da lei e, por cima de tudo, uma jaqueta de couro, em corte masculino e grande demais para si, capaz de esconder sua silhueta, afinal, o Planeta Yurok estava milhares de anos atrasado no que diz respeito à igualdade de gênero e, por si só, o fato de o cargo de xerife ser uma mulher, já era escândalo suficiente em Baracoa. Infelizmente, esconder as curvas de seu corpo era uma tentativa desesperada de conquistar respeito em um mundo sexista. Assim como também o eram os cabelos presos em coque e escondidos por debaixo do chapéu.

Abaixou para o pescoço o lenço preto que protegia seu rosto e ergueu um pouco o chapéu, exibindo enormes olhos castanhos, levemente puxados, nariz largo e pequeno e boca grande, de lábios finos, mas de um vermelho escarlate, natural.

Olhou para o monitor da moto, procurando a localização de seu assistente, Munir, mas o radar não indicava movimentação. Um dos péssimos hábitos do jovem era utilizar o mínimo de tecnologia possível e isso a enervava. Se ele não chegasse nos próximos minutos, ela teria de iniciar a operação sozinha.

Abriu a maleta na garupa da moto e, após apertar alguns botões no console da mesma, dezenas de pequenos drones, do tamanho de caixas de fósforo, alçaram voo. Seriam seus olhos naquele bairro cheio de vielas e becos. Enquanto observava os pequenos aparelhos se distanciando, deixou-se divagar, perdida na beleza do céu de Yurok, no qual, mesmo durante o dia, as centenas de asteroides que giravam em sua órbita eram visíveis contra o fundo roxo-avermelhado.

O barulho agudo do disparo de pistolas laser a trouxe de volta para o momento presente.

Seguindo o impulso, em um movimento rápido, a xerife colocou o óculos que mostraria as imagens dos drones, sacou as duas pistolas Light Wave e correu em direção ao Bairro do Óleo.

Os drones indicavam que não havia movimentação nas ruas, portanto, a mulher abandonou a cautela, enquanto se aproximava da origem dos disparos, o Saloon Bota Vermelha.

A troca de tiros continuava intensa.

Carol parou ao lado da porta, com as costas apoiadas contra a parede, respirou fundo e fez o sinal do triângulo, representando a sagrada trindade. Preparava-se para entrar quando um homem foi projetado para fora, com as costas fumaçando, em dois pontos.

Pensando rápido, a xerife colocou as pistolas no coldre, passou por trás do homem, enfiou cada uma das mãos por dentro do colete, na altura do sovaco e, com um puxão forte, girou o corpo do homem em cento e oitenta graus, usando-o como escudo enquanto entrava no Saloon.

O homem foi baleado mais quatro vezes, uma no rosto, fazendo o chapéu voar, duas no peito e uma na perna que, passando de raspão, deixou uma marca de queimadura na jaqueta da xerife.

A mulher avançou apenas alguns passos usando o defunto como escudo antes de notar um piano à sua esquerda e se jogar, rolando, atrás do instrumento.

Estando em um lugar seguro, usou o movimento dos olhos para levar quatro drones para dentro do Bota Vermelha. Um dos aparelhos foi abatido com um disparo, mas, com as imagens fornecidas pelos outros três, Carol conseguiu ter uma ideia mais precisa do que acontecia no Saloon.

Além do corpo que a mulher usara como escudo ao entrar, um homem estava caído em frente ao piano, outro jazia no pé da escada ao lado direito da entrada. Dois corpos pendiam na parte superior, um no parapeito do mezanino e outro caído por sobre o imenso lustre central. Sobre o balcão do bar havia mais um cadáver. Atrás do balcão, o bartender estava agachado, com os joelhos ao peito e as mãos sobre a cabeça e, a seu lado, um homem grisalho, de cabelos e barbas longas, efetuava periódicos disparos a esmo. Atrás de uma das pilastras, outro homem, alto e magro, imberbe, de chapéu e óculos fundos de garrafas, arriscava espiar e fazer eventuais disparos. No mezanino, mais dois atiradores, um troncudo, careca e barbudo e outro magro e de cabelos lisos e louros. A xerife reparou que todos os disparos eram feitos na mesma direção, onde um homem cujo chapéu escondia dos drones as feições, se protegia atrás de uma mesa, empunhando uma única pistola Light Saber.

Como se tivesse molas no lugar das pernas, o portador da Light Saber pulou por sobre a mesa, fazendo um único disparo em direção ao mezanino, arrancando o tampo da cabeça do homem troncudo, que caiu para o pavimento térreo, por sobre uma mesa, que se espatifou. Ainda no mesmo salto, o homem deslizou sobre o balcão, disparando uma vez contra o homem grisalho, arrancando a mão que segurava a pistola.

Então, um dos drones capturou uma imagem frontal e nítida. Era um jovem, de barba aparada rente ao rosto, nariz comprido e fino e olhos pequenos. Estupefata, Carol saiu de traz do piano e disparou duas vezes contra o homem de óculos fundos de garrafas, que aproveitara enquanto o jovem deslizava pelo balcão para fazer pontaria. Aproveitando que saíra de seu abrigo, a xerife disparou mais uma vez contra o homem de cabelos louros, no mezanino.

Os barulhos agudos que tornavam o Saloon em um ambiente de guerra cessaram, completamente, e ouviram-se apenas os gemidos de dor do homem grisalho por detrás do balcão. Pulando para o chão, o jovem exclamou:

- Xerife! Achei que não chegaria nunca!

A mulher olhou para Munir, do bico das botas até a ponta do chapéu, procurando algum ferimento, mas o jovem estava ileso. Ela balbuciou:

- Mas o que...

O assistente, então, guardou a pistola no coldre e resgatou, no bolso interno da jaqueta, a tabuleta digital, que entregou para a xerife, enquanto dizia:

- Eu cheguei antes de você e, como ninguém sabe quem eu sou, decidi entrar no Saloon, só para tomar uma cerveja, então percebi que o rebelde José Melandez, que viemos procurar, estava sentado ali, naquela mesa. Eu fui educado, disse quem eu era e pedi que se entregasse. De uma hora para outra, todo mundo começou a atirar. Eu me protegi atrás da mesa e passei a escanear o rosto de todo mundo. Acontece que, com a única exceção do Gravillo Dicapopoulos, o senhor atrás do balcão, cuja captura é requerida com vida, e do bartender que não consta no registro, todo mundo era procurado vivo ou morto.

Carol olhou a seu redor. Mesas e cadeiras destruídas, garrafas e copos quebrados, queimaduras de disparos laser e corpos caídos por todo o Saloon.

- Você fez isso tudo, sozinho?

Carol guardava na memória essa missão, a primeira em que Munir mostrara sua real habilidade, com carinho. Mas isso acontecera vinte anos atrás, quando seu assistente ainda era jovem e, mesmo tendo conquistado fama de caçador implacável, ainda sorria, tinha compaixão, e até mesmo questionava algumas das missões recebidas pelo governo, tentando agir com justiça. Mas isso foi antes de a praga arrebatar sua esposa e dos salteadores da estrada terem assassinado seu único filho em uma viagem mercantil. Agora Munir não tinha mais coração, recebia as ordens com frieza e indiferença. Cada caçada era apenas questão de trabalho. Não importa se tratasse da execução de um comerciante que cruzara o caminho de alguém importante e fora acusado injustamente de alguma vilania, apenas para ser tirado do caminho, ou se tratava de inocentes, imigrantes ilegais oriundos de algum planeta miserável ou assolado por alguma desgraça.

Com as costas apoiadas contra a parede e as duas pistolas Light Wave em mãos, a xerife Carol sabia que não sobreviveria àquele confronto. No passado, sim, até pouco tempo atrás ela era a melhor e mais rápida atiradora de toda Yurok, mas aos sessenta anos, sua vista estava cansada e suas mãos não tinham mais a mesma firmeza. Só lhe restava a barganha:

- Munir, nós somos parceiros, trabalhamos lado a lado por todos esses anos... Quantas vezes salvamos às vidas, um do outro?

De algum lugar no corredor, a voz rouca e inflexível de Munir ecoou:

- Carol, você foi demovida do cargo de xerife, julgada à revelia pelos crimes de sedição e traição e condenada à execução.

A mulher suspirou. Sabia que o assistente de tantos anos seria inflexível, afinal, mesmo que fosse para protegê-lo, Carol nunca tinha falado de quando se juntara aos rebeldes, cansada de ter que fazer vista grossa para a crescente presença de República Interplanetária em Yurok, que era, por tradição, um planeta neutro. Sua simpatia e, depois participação, na rebelião, que visava uma reestruturação com a substituição de todos os líderes do planeta, não era apenas uma desavença política. Desde que Sakakibara tinha sido eleito presidente, quinze anos atrás e corrompido todo o sistema eleitoral, quantas pessoas tinham perdido suas fazendas, injustamente? Quantos comércios de tradição centenária não tinham passado de mão para novas famílias em ascensão, de maneira escusa? A indústria do oxigênio drenava mais água do que a capacidade de regeneração do planeta, transformando toda a exuberância verde na vastidão ocre e sépia, que agora habitavam. Mas Munir não entenderia nada daquilo. Diria que sua esposa tinha morrido por culpa de um imigrante ilegal, que trouxera a praga e que seu filho fora vítima da falta de segurança nas estradas e que, não importa quem estava no poder, se era a República Interplanetária, a Coligação Espacial ou O Raio Que Os Parta que os governava, não fazia diferença, o que importava era a lei e a ordem. E ele era representante da lei e da ordem.

Pressentindo a própria morte, Carol tentou uma última cartada:

- Você vai mesmo me executar, Munir?

A resposta veio inflexível.

- Não é pessoal.

- Então, faça um último favor para sua amiga?

- Pode falar.

- Vamos duelar.

A resposta demorou a vir:

- Pode sair, eu não vou atirar.

Os duelos, apesar de arcaicos e banidos, na maioria das cidades, eram culturalmente importantes para a capital, Baracoa, e, por isso, a Rua do Relógio estava vazia, enquanto Carol e Munir se encaravam, separados por setenta metros de estrada poeirenta, aguardando que sino do relógio na torre do Banco Yurok, soasse pela quarta vez, indicando quatro horas da tarde.

Sem olhar para o relógio, a xerife demovida encarava a figura diminuta à sua frente, com os anos, a barba castanha e bem aparada de Munir adquirira um tom avermelhado, assim como a ponta de seu longo cabelo encaracolado, que pendia ao vento, para fora do chapéu.

O sino tocou a primeira vez.

Carol estralou o pescoço, movendo a cabeça para trás e para os lados.

O sino tocou a segunda vez.

Um calango atravessou a Rua do Relógio, correndo, indiferente ao duelo.

O sino tocou a terceira vez.

Uma gota de suor se formou na ponta das sobrancelhas da mulher, ameaçando cobrir sua visão. Sem tempo para secar, Carol ignorou, aproximando a mão esquerda de sua pistola Light Wave.

O sino tocou pela última vez.

Simultaneamente e, em perfeita simetria, as pistolas foram sacadas e apontadas na direção de seus oponentes, mas apenas um disparo ecoou no silêncio da principal rua de Baracoa.

Com um baque, o corpo de Carol foi ao chão.

Nenhum dos espectadores nas calçadas ousava emitir qualquer ruído, enquanto, em passos lentos, Munir caminhava em direção ao corpo estirado de sua parceira de longa data.

O homem se abaixou e, com a palma das mãos fechou os olhos da amiga. Enquanto tirava a estrela da camisa xadrez e espetava em sua própria, sentiu a coceira de uma lágrima que escorria pela lateral de seu nariz.

O novo xerife de Baracoa sussurrou:

- Eu sinto muito.

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