Quatro

Helida

Distraio-me com a forma fluida que ele corre, com fones de ouvidos, parecendo concentrado no que está ouvindo e não dando a mínima para a baba que escorre das bocas do bando de mulheres que o cercam, ainda o olhando seguir em nossa direção, quando acontece o inevitável, eu caio estatelada no chão.

— Aí, mas que droga! — Isso sempre acontece quando esqueço de olhar onde meus pés estão pisando, descoordenada como sou, nunca deveria esquecer de prestar atenção neles, nem por um segundo. Meu problema de coordenação motora não é de hoje.

— Helida, você está bem!? — Clara grita estridente, atraindo a atenção de todos em um raio de meio quilometro pelo menos, que param para olhar em minha direção. Quero um buraco para me enterrar depois desse alarde desnecessário.

— Sim, estou! Não precisava de tanto! 

“Se tivesse gritado com um alto-falante, teria poupado a voz”

— Apenas me ajude a levantar, acho que torci o pé.

Tento movimentá-lo, mas paro imediatamente quando uma dor insuportável me sobe pela perna.

— Agora tenho certeza que o torci, será que você pode me ajudar?

 — Deixa que eu a ajudo!

Uma voz grave fala bem acima da minha cabeça, meus pelos se arrepiam com seu timbre impressionante, olho para cima e lá está ele, o meu novo vizinho que, caramba, já não bastava ter um rosto de tirar o fôlego, também tem que ter com uma voz sexy para caralho?

‘Que tipo de pensamento é esse Helida?” Minha parte lucida me repreende, com toda razão.

— Não! Oh! Estou bem, não se preocupe. — Digo puxando o meu pé para junto do corpo, que treme só de pensar nele me tocando, devo estar enlouquecendo.

— Deixe-me pelo menos dá uma olhada? Não seja teimosa! — Automaticamente protejo ainda mais meu pé, como se ele pudesse puxá-lo a força, claro que não deixarei um estranho me tocar, ainda mais esse estranho em questão.

— Não precisa. Estou bem, já falei, mas obrigada assim mesmo! —Viro-me para Clara, que não sabe para quem olhar.

— Sou ortopedista, deixe-me avaliar o dano. Por sua expressão diria que está sentindo um grande desconforto. — Ele é mesmo ortopedista, ou está apenas me distraindo?    

— Deixe-o olhar, Helida, não custa nada!

 “Custa sim, sua idiota! Não é em você, que ele vai pôr a mão, se bem que, pelo seu olhar derretido na direção dele, sei que ela adoraria. “                                                                                       

— Viu? Até sua amiga concorda e está certa. Agora, vai me deixar olhar esse pé?

 “Ela não é minha amiga!”

 É o que quero dizer, mas gritar com alguém que está tentando me ajudar só me taxaria de ainda mais louca.

— Tudo bem!

Fecho os olhos e repito continuamente: “É só um toque, só um toque...”

Ele tem mãos tão suaves que quero olhar nos seus olhos e tentar desvendar mais da cor deles.

 “Não vou olhar, não vou olhar! Mas suas mãos são tão delicadas.”

— Foi apenas uma entorse, dois dias de molho e ficará tudo bem, aliás, sou Ethan Scott, prazer em conhecê-la, Helida! — Mas que droga! Meu nome não deveria soar tão bonito saindo dos seus lábios. “Esqueça Helida, esqueça!” Balanço a cabeça rapidamente, talvez assim esses pensamentos nada comuns saiam dela.

— Eh! Hmm, bem, você já sabe quem eu sou, prazer em conhecê-lo também, Sr. Scott! — Meu inconsciente me diz que não devo mencionar que acho que a carreira de cantor está vetada para ele. 

— Por favor, me chame de Ethan! — Ele sorri e tudo perde um pouco mais do brilho diante de um conjunto de dentes perfeitamente brancos.

 — Prefiro apenas Sr. Scott ou Doutor! — Digo, colocando a devida distância entre nós.

— Certo, como quiser! Posso ajudá-la a chegar em casa?  — Minha cabeça gira para olhá-lo.

 — Não, não precisa, obrigada! Não estou muito longe, posso ir sozinha. — Como se eu fosse permitir que ele continue me tocando. 

— Não seja teimosa! — Diz já me puxando para seus braços, aninhando-me em seu colo. Por Deus!

Uma verdadeira descarga elétrica desce por todo meu corpo em correntes, pergunto-me se ele também sente como se estivesse segurando um fio desencapado e mil borboletas voando soltas no seu estômago. Acho que não, deve ser normal me sentir ansiosa, afinal, faz muito tempo que não me aproximo assim de um homem, além do meu pai. 

— Agora que estamos de acordo que a levarei para casa, pode me explicar onde ela fica? — Tento não olhá-lo nos olhos, pois não quero me denunciar.

— Ao lado da sua, Sr. Scott! — É a única frase que me limito a dizer.

— É filha de Jorge e Laura? — Não entendo a surpresa, ou entendo, sei lá, faz algum tempo que não sou vista na companhia deles, e meus pais são uns queridos. 

Confirmo com um aceno de cabeça, remexendo-me em seus braços. Mas, será que ele precisa realmente me segurar assim tão perto? Tão apertado e firme, como se eu fosse frágil como um cristal delicado?

“Depois de te ver tropeçar e torcer o pé sozinha, deve mesmo achar que você é um pouco quebradiça, sua imbecil!” Digo a mim mesma. Ainda bem que não estou tão longe de casa, assim ele logo me deixará em paz.

— Pode me pôr no chão, por favor? — Peço assim que paramos em frente a porta, no entanto, apenas faz um gesto indicando que devo abri-la para entrarmos.

— Não, decidi ser um cavalheiro hoje, então vou fazer o trabalho completo, a colocarei no sofá com esse pé para cima e prepararei uma compressa de gelo.

Juro que essa situação inusitada está cobrando toda a minha paciência, que já não é lá muito grande, ele, no entanto, mantém um sorrisinho besta no rosto.

— Pronto, agora diga-me, você tem uma bolsa de gelo? — Finalmente me livro dos seus braços fortes. Argh!

— Sim, está na cozinha. — Reviro os olhos, detesto essa atenção exagerada. Ele vai em direção à cozinha como se já conhecesse a minha casa e logo está de volta. 

— Aqui, segure firme, assim não ficará muito inchado. — Entrega-me a bolsa para compressa e coloca algumas almofadas embaixo do meu pé.

De repente, ele para, fica lá me olhando de um jeito, sei lá, sinto-me como uma obra de Da Vinci ou Botticelli, perdida há muitos anos e que enfim foi descoberta. Isso me desconcerta.

Eu não sou lá muita coisa, um e setenta de altura, mais ou menos, pálida, cabelos louro escuro, olhos, como a Gia fala, verde-melados, ou seja, bem normal, por isso não entendo esse tipo olhar. 

Até porque, nunca me olharam assim, nem mesmo o Caio, ele me olhava de uma forma especial, Ethan é diferente! Sua forma de olhar é completamente nova, como se ele fosse capaz de enxergar além de mim, arisco a dizer que ele enxergaria minha alma, caso desejasse.

— Hmm, obrigado, agora eu me viro sozinha, Sr. Scott! — Digo dispensando seus cuidados e tentando me ver livre do seu olhar intrigante.

— Ok! Qualquer coisa estou na casa ao lado, não esqueça de ficar com ele pra cima por pelo menos dois dias.

— Tchau! — Falo acabando logo com o papo. E a culpa ocasional pelo meu mau humor vem.

“Droga será que fui muito grossa?” Pergunto-me enquanto o vejo sair, fechando a porta. Isso deve ser culpa da minha falta de convívio.

“Não, eu vivo muito bem como estou e não preciso ser simpática sempre, ponto!”

A noite não está muito diferente das demais. Como de costume rolo por horas na cama, mas não pelos motivos de antes, além do desconforto no meu pé, que mesmo tomando um comprimido para dor a cada quatro horas, está me fazendo lembrar dele, sempre que fecho os olhos sinto o olhar de derreter os ossos de Ethan novamente sobre mim. Isso definitivamente é algo novo, espero que ele não se torne um constante nos meus pensamentos, não preciso de mais um motivo para passar noites em claro.

Ethan

            De zero a cem, qual a chance que eu tinha de topar com a criaturinha mais irritadiça e mal-humorada, em uma cidade onde sorrir parece uma constante entre os moradores?

            Se sua resposta for entre 1 em 10, lamento dizer, mas estou nas estatísticas de 100 para 100. Não sei bem qual emoção é a mais forte nesse momento, se raiva por ter tentado ajudá-la ou a surpresa por não ter o hábito de ser destratado, principalmente quando tudo que fiz foi ajudá-la.

Porém, uma coisa é certa, a filha dos meus gentis vizinhos Laura e Jorge, tem alguma coisa só dela, talvez seus olhos incríveis que se misturam entre o verde e caramelo, ou seus lábios levemente cheios, não do tipo cirurgicamente modificados, ainda sim perfeitos para seu rosto pequeno, ela toda grita FRÁGIL.

 Quando a ergui do chão, imaginei que seu peso seria razoável, mas superou as minhas expectativas, ela é incrivelmente leve, mantê-la perto do meu peito foi inevitável, morri de medo durante os centos e cinquenta metros que com ela andei.

 Algo em mim dizia para ter cuidado, que ela é mais como um animalzinho ferido, esse foi o motivo de não ter ensinado a ela, como é ser grato ante uma gentileza.

            Olho o relógio sobre a cômoda, o deixo lá pois assim, mesmo que esteja deitado, como estou agora, consigo vê-lo. Mais um motivo para agradecer a minha tão talentosa mãe, que redecorou a casa inteira a perfeição. Ele marca uma e quarenta e cinco da manhã, mas que droga! Não costumo virar a noite acordado, na verdade criei o hábito de dormir sempre cedo, quando não estou de plantão, assim acordo disposto e pronto para mais vinte e quatro horas de mais trabalho.

            “O que aquela mulher tem que não deixa minha mente sossegar um instante sequer?”

Toda vez que fecho os olhos, os dela estão lá, assim como o timbre doce da sua voz, mesmo que tenha tentado se manter séria e mal-humorada, todo o tempo que estive por perto.

Será que ela tem alguém e sua reação foi para evitar falatório? Laura e Jorge não me falaram sobre ter uma filha morando com eles, nas duas vezes em que os vi, estavam sozinhos, até tiveram a gentileza de me convidar para entrar, que na minha correria de adaptação tive que recusar, porém, conversamos e ela nunca foi mencionada, será que tem alguém?

“Mas que droga Ethan, esqueça-a, já teve sua cota de coração partido e pisoteado, quer mais uma vez ser um cachorrinho pidão implorando carinho, porra?”

Meu lado consciente me alerta, com certeza aquela garota é um problema, não parece ser do tipo que aceita fácil um desconhecido na sua vida, e Deus ela é linda! E, sim, para mim ela é apenas uma garota, não sei sua idade, mas seu corpo pequeno e frágil me diz que não passa dos 25 anos.

Viro de bruços e coloco o travesseiro sobre a cabeça, não posso pensar nisso, preciso dormir, tenho mais vinte e quatro horas de plantão no HCA, estar com a cabeça pesada por falta de sono não é algo bom, não mesmo!

Por fim, desisto e pego meu celular, na playlist seleciono a pasta onde estão as músicas instrumentais para relaxamento, não preciso delas para dormir há muito tempo. Hoje, no entanto, terei que recorrer a Bach, Chopin, Weber ou Tsjaikoviski e que Deus me ajude, se não conseguir tirá-la da minha cabeça depois deles!

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