Três

Helida

— Nossa, Helida, agora mais do que nunca reafirmo a sua indicação ao prêmio pediatra do ano! Pensei que não fosse parar de chegar criança doente, meu Deus, parece que todos resolveram se resfriar!

— É assim mesmo, Gia, garanto que nenhum deles pediu para ficar doente, quando o tempo muda, as viroses também dão o ar da graça, pare de reclamar, já acabamos por hoje!

— Por hoje, né? Aposto que na segunda teremos o dobro dessas lindas criaturinhas catarrentas por aqui!

É impossível não dar um risinho disfarçado, mesmo que não a deixe perceber.

— Que tal uma bebida, para relaxar? Depois uma saidinha para uma dança entre amigas? — Mais uma pergunta esperada numa sexta à noite

— Não, obrigada, estou muito cansada, louca para cair na cama. — E a mesma resposta sempre.

— Helida, você tem que ver gente, sair!  — Posso jurar que ela e minha mãe andaram confabulando contra mim, mais uma vez, não posso culpá-las por quererem me ver bem, mas não se sairão bem-sucedidas.

— Gia, não consigo, simplesmente não dá. Você sabe, ainda dói muito e sinceramente, acho que nunca vai melhorar, é como se uma parte enorme de mim tivesse morrido. — Mais uma vez sinto a ferida em meu peito sangrar, por instinto levo a mão ao coração em busca de algum jeito amenizar a dor, não que isso seja possível.

— Eu sei, Lim, ainda sente muita falta dele não é mesmo? Também sinto. — Sua expressão séria é a prova de que sabe bem, ela também perdeu alguém naquele maldito dia.

— Sim, todos os dias. Quando o Caio morreu minha vontade de viver morreu junto com ele. Mas, não vamos continuar a falar sobre isso.

Não consigo dizer mais nenhuma palavra sem que venha o choro.

— E aí, vai querer uma carona?

— Claro, vamos lá andar como duas irresponsáveis e furar todos os sinais vermelhos, nesta cidade com mais sinais de trânsito do que carros, Doçura!

— Rá-rá-rá, muito boa! — Impossível não rir do seu comentário irônico, sua vontade sempre foi de sair daqui, porém, não levou muito a sério a ideia, acho que o motivo é um belo médico ginecologista que ainda mexe com seu coração de pedra.

— Olha só isso! Você ainda sabe sorrir, isso é novidade, Lim.

Muitas vezes me pergunto se a vida de Gianna não tem problemas. Mas sei que não é bem assim, por mais que viva sempre sorrindo, cantando. E por falar em música. 

— Gia, posso te fazer uma pergunta? — É preciso ir com calma, para ela não me interpretar errado.

— Na verdade já fez uma, mas deixo que faça outra! — Ela não perde uma.

— Engraçadinha! Você sabe quem está morando na casa dos Albuquerque? — Finjo não perceber seu olhar perscrutando minha expressão, mantendo os olhos na estrada.

— Bom, se o que dizem for verdade, porque você sabe, o povo dessa cidade não faz nada melhor do que fofocar, é um cara que veio de fora do país, ao que parece ele estudou fora, mas sabemos como as pessoas adoram aumentar as coisas para ter mais do que falar. Já o viu, ele é mesmo tão bonito como dizem?

— Nem vem com esse sorrisinho, não o vi, mas ouvi o seu gosto para música essa manhã, não é de todo ruim, porém, não gostei da barulheira que ele fazia tentando cantar junto.

— Será que era barulho mesmo? Ou você está exagerando? — Odeio quando me olham como se eu estivesse louca, bem, talvez eu esteja, massss, eu achar é uma coisa, quando vem de outros, torna isso mais real.

— Não, era insuportável sim de ouvir. Ele estava cantando junto, parecia uma arara gritando, aposto que o pobre Renato Russo estava se revirando no túmulo, de desgosto!

— Pelo menos tem um bom gosto, mas tudo bem, se você diz que ele não deve tentar uma carreira musical, eu acredito! 

— Sei, como se eu não soubesse o que se passa nessa cabecinha.

Olho para o lado e vejo que seu apartamento está há três prédios de distância.

— Chegamos, está entregue!

— Obrigado, minha cara motorista particular, a gente se vê amanhã. E se cruzar com o vizinho, quero saber se os olhos dele são tão impressionantes quanto que dizem.

— Até, Gia! — Aceno uma última vez e lá vou eu para casa, tomar um banho, alguns comprimidos e apagar por algumas horas, isso se aquela gralha não começar a gritar antes do sol nascer.

Chegar em casa a cada noite, não me traz a satisfação que seria esperada, pelo contrário, apenas mostra como minha vida tem se resumido a tão poucas coisas como: deitar na cama e fechar os olhos.

Isso é o que sempre faço, porém, o sono não vem fácil, não sem antes as ondas insuportáveis de dor me atravessarem vezes e vezes, fazendo-me rolar de bruços e abraçar o meu corpo, como se pudesse evitar que ele se parta em mil pedaços, em seguida, me fazer ter o trabalho de me remontar, da melhor forma possível, a cada dia que se passa.

***

 “Oh não, não quero acordar!”

Não após dormir como uma pedra depois que os dois comprimidos calmantes que ingeri fizeram efeito.

Estendo o braço e desligo o despertador do rádio relógio que fica no criado mudo. Já amanheceu e graças aos céus aquela música perturbadora não voltou, desde a manhã da última sexta-feira que venho acordando com um verdadeiro repertorio da Música Popular Brasileira, desde de Cassia Ellen com Segundo Sol, até Proibida pra mim, na voz de Zeca Baleiro, músicas que um dia considerei agradáveis de ouvir.

Me incomoda ainda mais lembrar que eu mesma, por diversas vezes me peguei nos últimos dias lembrando as letras de cada uma delas, seja quem for o novo vizinho, tenho que admitir, tem bom gosto para música. Eu que não tenho mais coração, ou nervos, para ouvi-las sem me partir em mil pedaços.

Sento na cama e vejo que o sol já está alto no céu, “Que horas são?” 

Esfrego os olhos ainda um pouco sonolenta, ontem foi incrivelmente doloroso para mim, demorou algum tempo para os comprimidos fazerem efeito. Sei que é errado recorrer continuamente a esse tipo de medicamento, mas quando fica difícil fechar os olhos, mesmo tarde da noite, busco esse pequeno truque.

Na noite anterior, já passava das três da manhã quando, enfim, consegui entrar na minha bolha de torpor e adormeci.

 — Mãe? Você está aí?

 Chamo enquanto desço as escadas, não recebo resposta alguma, que estranho, meus pais nunca saem sem me avisar.

— Mãe, pai? — Oh! Que cabeça a minha, hoje é domingo, eles devem estar na igreja!

O programa deles de sempre, o mesmo que fiz por anos, porém, digamos que posso ter perdido a minha fé, não em Deus, sei que ele existe, mas deixei de acreditar que eu pudesse ser uma filha amada aos seus olhos.

 Ser responsável por uma morte, não é bem o que manda a santa e amada igreja!  Bem, nada posso fazer além de sentar à mesa e tomar café da manhã sozinha, como tem sido todos os domingos.

Depois de pensar um pouco vejo que só sentar e comer não é o suficiente para parar essa estranha agitação dentro de mim, talvez eu esteja desenvolvendo um novo vicio por aquelas malditas músicas matinais, então vou correr, como sempre, talvez assim a mente acalme um pouco, eu espero. 

Está decretado no meu livro de coisas detestáveis que odeio, odeio os domingos, é o pior dia da semana para mim, sem sombra de dúvida. Nunca há nada interessante ou complicado o suficiente para preencher meu dia, daí já viu, fico cada vez mais deprimida, tudo que eu não preciso é de tempo livre, isso significa que não estarei com minha bolha tão fundamental para me livrar da dor do momento.

Mas sei que não poderei me socializar apenas com a mobília da casa dos meus pais e meu consultório para sempre. Então, tenho que ao menos uma vez por semana encarar outras pessoas, que não sejam os pais dos meus pequenos pacientes

Olho a minha volta, com uma sensação estranha, algo não está igual. É impressão minha, ou todas as mulheres da cidade decidiram começar a correr também? 

— Oi, Helida, como você está, faz algum tempo que não nos vemos, não é, querida? — Clara, uma das criaturas mais fofoqueiras de Bom Sossego, cumprimenta-me com um sorriso triste e falso, fazendo meu estômago embrulhar.

Não suporto esse olhar de pena que recebo quando resolvo sair de casa, sempre acontece a mesma coisa, por esse motivo prefiro me manter no meu casulo. Minha vontade é de ser grossa com todos por me olharem assim e perguntar se nunca me viram, mas a boa educação me vence, mesmo quando quero ignorar a todos. 

— Olá, Clara, estou na mesma. Vou levando, você sabe, um dia bem, outros nem tanto.

— Espero que logo as coisas melhorem para você, querida, mas me diz, já viu seu novo vizinho? — Ela tem um sorrisinho nos lábios nada santo para uma mulher casada.

Agora está explicado por que ela veio toda simpática para o meu lado, reviro os olhos por ser questionada novamente sobre aquela arara gasguita. 

— Não, não o vi e tenho certeza que todos os três mil setecentos e noventa e sete, Ops! E oito habitantes da cidade sabem que, apesar daquela casa ser bem ao lado da minha, nunca mais pisei lá, nem mesmo no jardim. — Ela parece constrangida pela pergunta, menos mal.

— Desculpe-me! Eu deveria segurar mais a minha língua. — “Deveria mesmo!” Meu lado bruxa grita para ela. 

— Deixa pra lá, sei que não teve a intenção.

Tento soar menos irritada, principalmente por saber como ela gosta de um bom assunto.

 — Mas, diga-me uma coisa, o que deu em todo mundo para decidirem entrar em forma? Algum daqueles concursos sobre que cidade perde mais peso junto? — Ironizo por saber que não existe isso, pelo menos, não que eu saiba.

— É, querida...

Odeio essa forma dela de falar querida em todas as frases, balança a cabeça como se lamentasse algo, maluca!

— Está claro que não conheceu mesmo o seu vizinho, meu bem, ele é muito... Uau! Por falar nisso, olha lá ele correndo! 

Sigo seu olhar admirado e cobiçoso, perguntando-me onde anda o imbecil do Douglas Vilar, seu marido, que tanto me infernizou no ensino fundamental, que não está aqui aquietando o facho da mulher.

Neste momento, que finalmente o vejo, alto, magro, mas nem tanto, olhos azuis cinzentos e enigmáticos, pele clara, cabelos cor de mel, que vejo apenas de relance, por estarem cobertos por um boné, um belo sorriso e um olhar, vazio?

“Ei, espera um pouco, por que estou registrado tantos detalhes na primeira olhadela dessa pessoa que nunca vi?” 

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