Voltando a amar - Parte 1 - O despertar
Voltando a amar - Parte 1 - O despertar
Por: dandadealencar
UM

Bom Sossego, cinco anos e meio antes

Helida

— Acho que deveria considerar a proposta! — Falo enquanto giro o volante para desviar de uma caminhonete que invade a contramão.

— Sério, Helida? Quer falar sobre isso na nossa última noite de folga, sabendo que amanhã voltamos à rotina maluca de estudos e estágios? —Pela minha visão periférica, o vejo olhar pela janela e observar os pingos de chuva baterem no vidro e deslizarem.

— Caio, não estou querendo estragar nossa lua de mel atrasada, de forma alguma, mas fala sério! Um estágio muito bem remunerado no Hospital das Clínicas em São Paulo, com o melhor amigo do seu pai como chefe do setor ortopédico, e deixa que lá vem a melhor parte, ele é somente a maior referência em cirurgias ortopédicas reparatórias e de alto riscos no cenário da medicina brasileira atual, será que te dei motivos suficientes?

Arrisco uma olhadela na sua direção, vejo que sorri ainda olhando a paisagem além da janela.

Com chuva, é preciso o maior cuidado possível, ainda mais no último dia do feriado de carnaval, qualquer descuido e nossa curta lua de mel, seis meses após assinarmos os documentos perante um juiz de paz, estará como ele bem colocou, arruinada.

 — Está falando isso por que acha que é o certo, ou meu pai conversou com você esses últimos dias? — Mais uma olhada e seu reflexo me sorri largo.

— Eu... Droga, Caio. Não quero você do outro lado do país, não mesmo, porém, não o quero daqui a dez anos, quando estiver entediado e arrependido, no seu emprego como plantonista do HCA, lamentando-se por não ter seguido o conselho do seu pai, que pode ser um esnobe e mandão, mas sabe bem o que quer para o futuro do único filho, eu não quero ser a causa de mais discussão entre vocês!

Guardo em mim um sentimento profundo de culpa, desde que decidimos nos casar e, como consequência, Caio recusou-se a mudar de cidade junto com a família-o de seu relacionamento com o pai, que é o nacionalmente conhecido Dr. Carlos Albuquerque, cirurgião chefe do setor de cardiologia do Hcor, que é, nada menos do que um dos maiores hospitais em referência no tratamento de doenças cardiovasculares da América Latina.

Mata-me saber que posso, não apenas, o estar impossibilitando de uma convivência saudável com os pais, como também atrapalhando uma careira brilhante. Morando em Bom Sossego, ele nunca poderá se destacar entre os grandes cirurgiões ortopedistas, e ter sua foto estampada, com orgulho, em um hospital de grande porte, como seu pai.

— Helida? —Seus olhos agora fitam meu rosto com seriedade e sinto minha pele formigar, como se estivesse a me tocar. — Nada me fará mais feliz do que ser o plantonista ortopédico do HCA alguns dias por semana, como também atender alguns raros pacientes no meu consultório, desde que esteja ao lado daquela que escolhi para ter como parceira, amiga e esposa.

— Isso é muito fofo, futuro Dr. Albuquerque, mas não muda o fato que ainda tenho razão! — Sua risada rouca enche o carro, aquecendo ainda mais meu coração.

— Sim, uma meia razão para cada, que tal? —Sua mão acaricia a minha, sou impelida a olhá-lo, algo grita na minha cabeça, que se não o fizer me arrependerei pelo resto dos meus dias, e assim o faço.

Meu suspiro é audível mesmo com todo o barulho da chuva, o tempo para por alguns instantes, enquanto vejo o sorriso mais acolhedor, reconfortante e amável, que me é familiar desde a infância, foi o farol nos meus momentos incertos, mostrando soluções até mesmo para problemas que não sabia da existência. Seus olhos verdes, seu cabelo castanho escuro, a pele clara, porém, bronzeada dos nossos infindáveis passeios, a imagem da perfeição diante dos meus olhos, não apenas fisicamente falando, mas sua alma bondosa, companheira, amorosa e justa é o que há de mais belo nele. E então seu sorriso se apaga, demora alguns instantes para que eu perceba o porquê.

— Sabia que eu te amo, Lim? — Ele fala, de repente sério demais, fazendo com que eu olhe rapidamente para seu rosto, não querendo desviar a atenção da estrada.

— Também amo você, querido!

Saindo de uma via de acesso lateral, um carro nos atinge em cheio do meu lado, o impacto faz o carro girar e girar desgovernado barranco abaixo, antes que pare capotado. Minha cabeça dói, sinto um líquido quente escorrer pela lateral do meu rosto. “Droga bati com a cabeça em alguma coisa, aparentemente só está sangrando, melhor!”.

Pisco meus olhos algumas vezes tentando enxergar, porém está tudo escuro, escuro demais para ser normal. Tateio em meio ao caos atrás do Caio, minha mão encontra seu corpo mais ainda não enxergo, droga! Não vejo nada com essa droga de escuridão.

— Caio? Fale comigo, por favor, me responda, não consigo ver, está tudo escuro! — O chamo na esperança de que me escute, mesmo minha voz estando tão distante aos meus ouvidos.

— Lim... — Sua voz está fraca, tão longe, muito baixa, quase inaudível. — Amor... vai ficar tudo bem, eles logo nos acharão, há luzes em toda parte... — Não vejo luz alguma, devo ter sofrido uma concussão e como efeito perdi a visão, só pode ser isso, uma dor alucinante toma conta do meu crânio, como se milhares de agulhas fossem enfiadas uma a uma através do meu couro cabeludo repetidas vezes, então o escuro se fecha de vez ao meu redor, já não há dor, som, já não há Caio, nem eu...

Dias atuais

Veja o sol dessa manha tão cinza

A tempestade que chega é da cor dos teus olhos

Castanhos

Sou transportada em uma viagem no tempo, onde tudo está no seu devido lugar, mais um dia perfeito, braços carinhosos envolvem minha cintura enquanto dançamos num ritmo totalmente diferente da música que toca ao fundo, olhos nos seus olhos e suspiro aliviada por ele ainda estar aqui...

Então me abraça forte e...

Me diz mais uma vez

Que já estamos distantes de tudo

Faço como a música diz, o aperto ainda mais junto ao meu peito, ainda de olhos fechados, sinto seu cheiro cítrico maravilhoso. Ao abrir os olhos, percebo que tenho novamente quinze anos, ele está com quase dezessete, “nada disso é real”, — minha mente nada caridosa grita alto — apenas mais uma das inúmeras lembranças dos bons momentos em que o tive comigo...

Somos tão jovens

Tão Jovens

Tão jovens...

Acordo sobressaltada, novamente o mesmo sonho, mais uma vez estou agarrada ao travesseiro, desde o acidente, assim é o meu despertar, algumas vezes com choro descontrolado, outras apenas o silêncio e as cores creme com roxo do meu quarto como companhia, tudo tão igual e diferente da adolescência feliz que aqui passei, no entanto, há uma sutil mudança no ar, a música entrando através da janela, mesmo que a mantenha trancada.

 Isso é uma novidade nada agradável, meus pais sabem que tenho evitado qualquer tipo de lembranças dolorosas. Sem dúvida, foi essa porcaria que me fez sonhar com minha festa de quinze anos, abrindo o baú que mantenho trancafiado a sete chaves, com as lembranças de uma época onde eu adorava ouvir músicas e até mesmo ariscava dançar...

Muito me admira eles estarem ouvindo algo assim, não que eu tenha decretado uma lei contra ouvir músicas, longe de mim, gostaria apenas que eles esperassem, pelo menos até que eu esteja pronta para isso, não simplesmente me forçando a ouvir logo ao amanhecer. Só que...

 Espera um pouco, alguém está cantando junto. Argh! E ainda é um péssimo cantor, pra mim já deu, não suporto mais nem um segundo disso.

— Caramba! Será que é tão difícil ouvirem a droga da música um pouquinho mais baixo? Mãe? — Grito o mais alto possível, mesmo que já saiba de cor o que ela vai dizer, que é sempre a mesma coisa: que preciso sair do meu casulo, voltar a viver como qualquer pessoa de vinte e quatro anos e blá, blá, blá.

O problema é que, não sou como qualquer outra pessoa. Como posso “voltar à vida”, quando estou vazia por dentro, se o que antes era um coração que batia forte ao ritmo de um outro coração, hoje é apenas um órgão que serve para bombear o sangue e mais nada.

Algo mudou, sei disso por estar notando coisas que até então me eram estranhas. Tudo está tão perturbadoramente nítido a minha volta, pequenos detalhes que sempre passaram despercebidas entram na minha bolha de torpor, como se um objeto de ponta afiada a tivesse estourado.

Um calafrio me sobe pela espinha, espero que não venha a ser um presságio de algo ruim.

Conto mentalmente cinco segundos até poder ouvir minha mãe subindo as escadas, um degrau de cada vez. Meu pai deve estar tomando café da manhã na cozinha e é provavelmente quem estar a cantarolar junto com a música.

Lembro-me quando costumava ouvi-lo cantar, então dançávamos pela casa rindo como dois bobos, porém, esse tempo ficou no passado, hoje já não suporto qualquer tipo de música. Ainda mais quando uma voz desafinada, cisma em duelar com a voz grave de Renato Russo.

— Bom dia pra você também, filha!

Reviro os olhos para seu sarcasmo, não é possível que ela não esteja incomodada com esse barulho.

— Helida, meu bem, que você não se sente pronta para algumas coisas, é um fato conhecido, no entanto, não pode querer que o mundo se feche para a vida como você fez!

Ela diz ao puxar o cobertor que está cobrindo minha cabeça e me vê toda enrolada, com o travesseiro sobre a cabeça. Logo, senta-se ao meu lado e põe sua mão sobre a minha.

— Há pessoas que gostam de se sentirem vivas, sabe? — Eu já esperava por esse sermão. — Você bem que poderia fazer o mesmo, ainda é jovem tem toda uma...

— Nada disso, não venha me dizer que eu tenho uma vida! — Ela se espanta diante a minha explosão. Geralmente evito pensar e falar, seja o que for, simplesmente finjo que não é comigo. — Por que ninguém respeita minhas escolhas, será que já não sou mais capaz de tomá-las sozinha?

— Filha, não é questão de ser ou não capaz, você só não pode viver desse jeito, ou melhor, ver a vida passar assim. Você não morreu naquele maldito acidente!

Instintivamente recuo. Uau, ponto para dona Laura, essa foi golpe baixo, ela mais do que ninguém sabe que não suporto falar sobre isso, o assunto proibido. Conto até dez para acalmar minha respiração, ou vou explodir.

 —Desculpa, Lim? —

Ela suaviza o tom de voz e me odeio por vê-la sempre se desculpando.

— Sei que não devia ter tocado nesse assunto, mas não suporto vê-la tão sem vontade de viver. — Se sabia, não deveria ter falado, penso comigo.

— Tudo bem, mãe, sei que não teve a intenção, só... por favor tire a música, sim? — Ela me olha triste e balança a cabeça, sinto-me mal por fazê-la passar por tudo isso comigo.

Minha mãe é uma mulher forte, tem traços marcantes, com seus um metro e sessenta e oito de altura, cabelos ruivos naturais, que contrastam com a pele clara e olhos castanhos acolhedores. É professora universitária de História da Arte e ao longo dos seus tinta e cinco anos lecionando, aprendeu a se adaptar a diferentes situações, criando verdadeiros vínculos com seus alunos.

No fim, a maioria deles presenciou toda a minha trágica história de amor chegar ao fim e respeitaram o meu silêncio e afastamento, o que foi um alívio.

— Eu bem que gostaria, sabe? Faço tudo para vê-la o mais confortável possível, mas não posso! — Ela dá de ombros.

— Como assim, não pode? — Será que hoje é o meu dia de pagar por algum pecado que não foi devidamente computado pelos céus há quase seis anos?

— Essa música não é aqui! — Há uma certa tensão na sua voz.                                                                 

— E aonde poderia ser, eu podia jurar que... Não é?  — Pergunto intrigada, só há uma casa próxima da nossa e recuso-me a acreditar que essa música vem de lá.                                                         

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