Para o Buraco de Minhoca

A arca de Funjoy iniciou sua decolagem sem obstáculos, saindo do abrigo subterrâneo pela plataforma gigantesca que se abria sobre nós. Mortons que sondavam o local começaram a nos atacar de suas naves. Eles não queriam que deixássemos o planeta com vida.

— Gorilla! Eles acertaram um dos propulsores traseiros! Estamos perdendo potência! — notifiquei apreensivo.

— Saeed! Acione os propulsores auxiliares! — orientou Gorilla rapidamente, — Nós vamos sair sim!

— Acionando propusor auxiliares em treis, dois, um! — respondeu o garoto Saeed com agilidade.

A nave assim retomou a potência necessária.

— Segurem firme! A turbulência será pesada! — informou Gorilla, ao sentirmos iniciar a trepidação da nave em passagem pela camada de ozônio.

— Eles está recuando! Não vai tão longe para pegar nós... — observou Saeed ao findar da turbulência.

— Ótimo. Não teríamos condições de combatê-los com a Arca em decolagem — evidenciou Gorilla.

— Nem mesmo depois da decolagem... — comento seguro.

— Já que estamos bem, vou até a área dos animais ver como estão depois dessa turbulência — informou Ami.

— Espere, Ami! Vai aonde sem gravidade? Precisamos acionar o modo “navegação espacial”... — informou Gorilla rapidamente.

Gorilla ativa no painel o sistema mencionado.

— Aviso! Modo de navegação espacial acionado. Preparando as conversões necessárias. Para sua segurança, permaneça em seu assento até a conclusão. — anunciou o computador de bordo. Ouvimos diversos sons da nave mudando sua estrutura. Após dez minutos do início das modificações o computador de bordo voltou a se manifestar: — Ativação concluída. Sinta-se a vontade para desfrutar da Arca de Funjoy durante sua viagem.

— Ah! Eu que programei essas palavras... Ficou bom, não ficou? ... A propósito, está liberado Ami! — avisou Gorilla todo satisfeito.

— Precisa de ajuda, Ami? — perguntei.

— Não, Rick. Dou conta disso — replicou Ami ao sair da cabine de comando.

Ami Funjoy. Bióloga e especialista em assuntos espaciais, além de ser minha melhor amiga pessoal. Quarenta e sete anos, um metro e sessenta e nove de altura, pele branca, cabelos castanhos escuros sempre presos, olhos da cor mel e corpo esbelto. Primeira responsável pelo Projeto Funjoy, que ganhara vida por sua causa e segunda responsável pela tripulação. Nascida em Nova Deli, capital da Índia destruída.

Nosso piloto formidável era Saeed Muhad. Jovem árabe, moreno de um metro e setenta e cinco, olhos verdes, cabelos pretos e curtos e dezoito anos de idade. O encontramos perdido no continente sul americano em uma de nossas buscas por sobreviventes. Gorilla ensinou-lhe várias coisas como seu português, péssimo por sinal, a pilotar naves de pequeno e médio porte e o colocou como seu copiloto na navegação da grande nave mãe Funjoy.

Gorilla era nosso expert em tecnologia e por vezes inventava também novas armas. Com um metro e oitenta e nove, cabelos castanhos escuros curtos e grande parte deles grisalhos, quase o dobro acima de seu peso ideal, pele branca — quando limpa — e cinquenta e três anos de muito conhecimento, informação e técnicas. Se algum dia conseguisse ler todos os livros do mundo, talvez tivesse todo conhecimento que ele tem. Por vezes me orgulhava de lembrar que ele era meu irmão mais velho.

— Rick! As hienas escaparam! — disse Isabela surgindo na cabine de comando subitamente.

— Vamos pegá-las! — disse rapidamente seguindo-a.

Nosso receio era de que descontroladas, elas destruíssem algo ou perturbassem outros animais, além de que poderiam ferir alguém, é claro.

A Arca de Funjoy era enorme. Para chegar ao setor dos animais era necessário passar por quatro longos corredores e dois lances de escadas. Aquela foi minha corrida matinal.

— Não sabemos como elas se soltaram! O trinco havia sido bem fechado! — disse Isabela enquanto corríamos.

— Tudo bem. Damos um jeito de captura-las novamente. Depois verificamos o que aconteceu. — disse calmo, porém ofegante da corrida.

— Rick! Vocês chegaram tarde! — disse Ami limpando o suor do rosto ao fechar o trinco da jaula com as doze hienas. — elas respondem rápido ao cheiro de carne!

— Ah, muito esperta, Ami! Boa tática! — disse aliviado — algum estrago?

— Nada. Só fizeram bagunça mesmo! Não deu nem tempo de sentirem o cheiro da liberdade — respondeu Ami com seu bom senso de humor.

— E quem vai limpar toda essa sujeira?! — questionou Isabela a respeito das fezes das hienas que estavam espalhadas pelo setor — eu que não vou!

Isabela, minha única filha, vinte e oito anos de idade, um metro e sessenta e sete de pura teimosia, pele caucasiana, cabelos longos castanhos e escuros como os da mãe. Esbelta, com senso de humor invejável. Se tivesse que defini-la em uma só palavra, seria coragem.

— Tudo bem, Isabela. Nick vai dar conta disso, não é Nick? — sugeriu Ami olhando para Nick, o cuidador do setor.

Nick assentiu com a cabeça e pôs-se a limpar a sujeira.

— Ami, por que não usou o rádio para me chamar? — indaguei curioso.

— Tentei Rick, mas aparentemente está desligado — disse Ami girando o botão do rádio que estava pendurado em minha cintura.

— Ah, me desculpe Ami — disse me sentindo um tolo. — Vamos ver qual é nossa situação na jornada.

— Vamos sim. Já verifiquei os outros setores, estão todos em ordem — disse ela.

Saímos de volta à cabine de comando, e Isabela foi para seu dormitório descansar.

Era dezoito de agosto de dois mil e quarenta, da hora duas e trinta e quatro de uma Terra que havíamos deixado para trás. Nosso plano, e único, era alcançar o buraco de minhoca e atravessá-lo, com o intuito de talvez, quisera nosso Criador, encontrarmos um novo lar para habitarmos.

— Como estamos? — perguntei à Gorilla ao retornarmos à cabine de comando.

— A viagem de quatro bilhões de quilômetros nos tomará em média nove anos e meio. O problema é que temos combustível para onze anos contados. — respondeu Gorilla com pouca fé.

— Isso significa pouco tempo para procurarmos um novo lar, "se" sobrevivermos ao buraco de minhoca — disse Ami com o mesmo sintoma de Gorilla.

— Não vamos nos desesperar nem perder o ânimo. Chegamos até aqui, não chegamos? — disse convicto — vamos descobrir um jeito. Sempre descobrimos.

— Que o Pai te ouça, Rick. — disse Gorilla ao se afastar da mesa central e ir para seu assento ao lado de Saeed.

— Rick, você acredita mesmo que vamos conseguir? — perguntou Ami preocupada.

— Ami, eu acredito nisso desde que começamos a construir a arca. Tudo vai dar certo. — disse mantendo minha opinião. — De uma forma ou de outra sempre dá.

Ami se retirou da cabine coçando ambos os braços em sinal de ansiedade e preocupação. Ela tinha o gênio parecido com o meu, por isso entendia o que ela estava passando. Estávamos ficando velhos e cansados para iniciar este êxodo, mas se não o fizéssemos, o que seria da nossa espécie?! Não tínhamos escolha. Por mais cansados que estivéssemos, ou por mais descrentes, tínhamos uma responsabilidade gigantesca em nossas costas. Se soubéssemos o que nos reservava o futuro, não teríamos o desejado tanto. Teríamos desfrutado nosso passado, amado o presente e aproveitado melhor o tempo em que a paz reinava entre o homem. Uma passagem, uma fenda no espaço entre dois sistemas era nossa única chance de sobrevivência, ou talvez nosso fim.

— Vai dar certo irmão! — disse apoiado sobre a mesa após breve reflexão — confie em minha intuição! Lembre-se do que papai dizia...

— É... De fato ele diria o mesmo. — concordou Gorilla.

— Preparando para a hibernação rapazes! — surge Lea contente ao passar para avisar-nos. Ela nem se quer ficara entre nós. Somente trouxe o recado e prosseguiu avisando os outros.

Lea foi babá de minha filha por longos anos. Um metro e sessenta e oito de altura, cabelos longos escuros e castanhos, olhos castanhos escuros, com seu peso de setenta e quatro quilos. Ela carregava consigo sempre bom humor, sendo sempre apenas ela mesma. Mantínhamos um relacionamento amigável e de confiança por anos.

— Quem tá com escala de hirbenação? — perguntou Saeed, que até então estava quieto, apenas observando.

— É hi-ber-na-ção, filho... Está comigo — disse Gorilla, com seu costume de adoção do jovem piloto.

— Ótimo Al’ab! Saeed gosta de fica aqui mais tempo... Quer ser o primeiro a fica acordado... — disse Saeed com um tom suspeito na voz.

— Saeed... Você está com medo de hibernar? — perguntei ao notar sua voz tremula e insegura.

— E se eu não acordá mais?! — comentou cabisbaixo — e se algo acontece e morre todos dormindo?

— Se acalme garoto! Vai dar tudo certo! — disse Gorilla acariciando suas costas — Vá em frente Rick. Gostaria de ter uma palavra com Saeed antes de entrar no meu "sono profundo".

— Claro irmão. Como quiser — disse me retirando — te aguardo junto aos outros.

O esquema montado para a hibernação era simples. Duas pessoas permaneciam acordadas e dividiriam os cuidados com os animais, o acompanhamento aos hibernados e a rota da nave. Nada muito complicado. Qualquer problema que ocorresse deveríamos ser acordados imediatamente, de acordo com a gravidade da situação. A tripulação de trinta e três pessoas infelizmente era pequena em vista do tamanho da nave mãe Funjoy, mas eram todos os que conseguimos encontrar após muitas buscas. Mesmo com essa tripulação os que revezariam seriam poucos, pois o privilégio de permanecer acordado seria somente para os mais confiáveis. Segundo Gorilla, o espaço poderia afetar a mente dos mais fracos...

— Rick, onde estão Gorilla e Saeed? — perguntou Isabela ao ver-me entrar no ambiente de hibernação sozinho.

— Eles já estão a caminho — respondi-a, iniciando rapidamente a programação de cada câmara de hibernação de acordo com o tempo do ocupante. Como já sabia da escala adiantei o processo.

— Onde estão os outros? — perguntou Eddie, impaciente pela demora — eles já deveriam estar aqui a essa hora.

Eddie era um velho amigo. Sua paciência e otimismo fugiam a normalidade. Com cabelos pretos cacheados e curtos, olhos da mesma cor, pele morena clara, corpo magro, um metro e sessenta e nove, provido de pouca força física, com seus quarenta e cinco anos de idade, nascido no interior do sul de nosso antigo, belo e derrotado Brasil. Esse era ele, Eddilson Kilber.

— Sabem quem mais está faltando aqui? — sugeriu Isabela.

— Quem? — questionou Lea.

— Hector — respondeu Lisa — ele está afiando suas facas, como sempre.

Lisa Brudovich. Nascida em Dolinsk, interior da Rússia. Cabelos ruivos e compridos, olhos verdes, pele branca, mais clara que a nossa, seus um metro e oitenta de altura, estrutura física desenvolvida levemente, com apenas trinta anos, calma, quieta e eficiente. Com descendência de Designers, ela optou por seguir um caminho diferente. Lisa era nossa Física Nuclear.

— Chamem-no, por favor — disse terminando as programações — nós temos que entrar em hibernação em quinze minutos no máximo.

— Cheguei pessoal! — disse Gorilla um tanto desajeitado entrando no ambiente de hibernação.

— Já cheguei também... Não precisam me chamar — disse Hector chegando com seu mau humor.

Hector, Hector Paduel. Inglês, de uma das cidades preservadas, Manchester, que sobreviveu aos mortons, posteriormente abandonada por seus cidadãos que partiram rumo a um dos Complexos. Cabelos loiros corte militar, olhos azuis, pele clara, alto, com um metro e oitenta e sete, forte, quarenta e três anos, rude, estúpido e excluído. Esse era Hector e, por bem ou por mal ele nos acompanhava nesta jornada.

— Ótimo! Se preparem, pois em dez minutos estaremos entrando em hibernação — orientei-os.

— Qual será a escala, Rick? — perguntou Lisa.

— Começaremos com Saeed e... — dizia quando me interromperam.

— Eu fico com o garoto! — disse Gorilla ansioso antes mesmo que eu dissesse seu par.

— Sinto muito irmão... Mas devemos manter o cronograma estabelecido — disse firmemente.

— Então... Saeed e Lea permanecem acordados por sete meses e sete dias e meio. Depois Hector e Lisa, seguidos de Eddie e Isa e então Ami e eu — informei-lhes a ordem — Gorilla, você irá despertar a cada ano para verificar o curso, distância, e todos os pormenores. Cada um irá dormir por aproximadamente um ano e oito meses a cada hibernação, com exceção de Gorilla. Até que cheguemos ao nosso destino prevemos quatro hibernações por dupla. Alguma dúvida? Todos sabem das tarefas a serem executadas? — questionei por alto.

— Parece razoável para mim — comentou Lea.

— Tudo bem por mim — concordou Gorilla cabisbaixo.

— Vinte meses dormindo?! — causou Hector — não sei se acordo depois de tanto tempo...

— E nossos músculos? Como ficam com tanto tempo em repouso? — questionou Eddie, ao que todos se entreolharam, já que Eddie era magrelo.

— Ah! Essa é boa! — disse Gorilla atravessando a conversa e animando-se novamente — na câmara de hibernação há eletro-pulsos responsáveis por mantê-los saudáveis e em bom funcionamento.

— Excelente, Gorilla! — comentou Eddie aliviado — menos preocupações.

— Mais alguém? — perguntei.

Perguntei novamente olhando para cada um, confirmando suas dúvidas e me certificando de que havíamos nos entendido.

— Saeed, Lea — chamei-os — acompanhem eles no processo de hibernação enquanto Ami e eu vamos até o outro setor colocar o resto do pessoal para "dormir" — disse já distante deles.

— A caminho, Rick! — disse Saeed mexendo-se.

Na outra sala organizamos os outros vinte e cinco em suas câmaras de hibernação. Eles, diferente de nós, acordariam somente uma vez após quatro anos e meio, permaneceriam acordados por três meses e então hibernariam novamente por mais quatro anos e meio.

— Rick, como se sente? — perguntou Ami me olhando fixamente.

Minha cabeça estava a mil. Não estava conseguindo me concentrar. Olhando para tudo e todos, em uma grande cena, um medo súbito de que as coisas não dessem certo me tomou. Paralisei por alguns segundos.

— Rick?!...

— Rick! Você está bem? — perguntou Ami pela segunda vez, apertando meu antebraço.

— Oi Ami! Perdoe-me... Estava refletindo... — Respondi e me virei, retornando para a nossa sala de hibernação. Lá encontramos Saeed e Lea a nossa espera, ao lado de nossas câmaras.

— Preparados? Só restam vocês dois! — disse Lea empolgada.

— Acredito que sim — respondi confuso — não sei se algum humano está realmente “preparado” para usar isso... Mas vamos lá.

Deitamos em nossas câmaras, Ami e eu. De repente todo aquele lance de filmes de ficção se tornou real, e estávamos entrando em hibernação para uma missão de ida, sem volta. Sim, eu estava com medo. Simplesmente disfarcei o melhor que pude para evitar qualquer situação.

— Nos vemos em vintes mês Captão! — disse Saeed animado. — Fechando câmaras em três, dois, um...

A tampa da câmara agora se fechava ao soltar gases soníferos... O suspense sobre o nosso futuro me tomava. Os fluidos começaram a encher a câmara... Meu coração foi desacelerando... Fui adormecendo...

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo