Três

Mamãe gritou quando Legolas surgiu correndo e pulou nela. Eu me intrometi na confusão e me abaixei abraçando o cachorro enquanto ela se encolhia na parede.

— O que é isso, Wendy? — reclamou ainda nervosa.

— É meu novo inquilino — falei alisando a cabeça dele. — Legolas!

— Isso é um cachorro de rua? — arregalou os olhos.

— Bem, eu vou levá-lo na pet shop e no veterinário mais tarde — sorri sem graça e fiquei de pé. — Ele estava perdido ontem. 

— Você perdeu todos os seus parafusos! — suspirou parecendo desapontada. 

Dei de ombros e ri um pouco. Talvez eu tenha soltado meus parafusos e libertado a mim mesma. 

— E a senhora está precisando de mim? — perguntei indo para a cozinha. 

— Você ainda é minha filha — suspirou me seguindo. — Vim ver se está bem.

Sorri enquanto abria a geladeira. Peguei uma garrafa de suco e me estiquei para pegar um copo no armário.

— Estou bem! — respondi enchendo o copo. — E a senhora e o papai?

— Estamos bem — disse alternando o olhar entre mim e Legolas, que parecia ansioso cheirando a perna dela. — Você ainda não conseguiu um emprego, não é?

— Irei encontrar — ofereci o copo e ela pegou depois de hesitar um pouco. — Não se preocupe!

— Mas, e se... Seu chefe do escritório te ligasse? — suspirei cruzando os braços. — Eu posso falar com ele e dizer que você largou tudo por minha causa, posso suplicar para ele deixar você voltar! — vomitou as palavras quase desesperada.

— Mãe! — me aproximei tocando seus ombros. — Não me faça voltar, por favor!

Ela abaixou a cabeça parecendo perdida. 

— Você realmente pensa como aquele seu namoradinho! — reclamou. 

— Se o Kevin realmente tivesse feito minha cabeça, eu nem teria ido embora há 5 anos — me afastei e soltei o ar pela boca. — A senhora soube que o pai dele faleceu?

— Já tem algum tempo. De que isso importa? — bebeu um pouco do suco e bateu o pé no chão dando um susto no Legolas. 

— Por que não me contou?  

— Você estava ocupada com o trabalho. E... Eu o expulsei da nossa casa pouco antes de você ir para Massan, ele precisava saber que seu futuro era maior do que tudo aquilo — arregalei os olhos e ela desviou parecendo nervosa. — Mas você estragou tudo!

Mamãe foi para a sala como se estivesse buscando ar e eu a segui com os lábios pressionados.

— A senhora o mandou embora quando eu ainda o namorava? — perguntei séria. — Sem motivo nenhum para isso?

— Você tinha acabado de passar na seleção — passou as mãos no cabelo. — Parecia tão difícil para você escolher entre ele ou seu futuro. Pensei que ele tivesse te contado.

Não. Ele nunca contou.

— Mãe! — abri a boca sem saber reagir. — Eu não posso acreditar que você foi rude desse jeito com a pessoa que eu amava!

Sentei no sofá perdida em tudo aquilo. Com toda certeza, seria ainda mais difícil encará-lo. 

— Você já o reencontrou? — perguntou e apenas concordei com a cabeça sem olhar para ela. — Eu só vim saber como estava — andou até a porta apressada. — Se precisar de nós, só falar.

Ela saiu no mesmo instante, mas eu continuei olhando para o nada. 

✴✴✴

Fui ao consultório veterinário, onde o Kevin trabalhava, de propósito. Poderia ir em outro e evitar ao máximo vê-lo, mas eu deveria no mínimo prestigiar seu trabalho. Sara nem questionou em me dizer onde ele trabalhava.

Era uma associação de veterinários e eu perguntei a secretária se meu cachorro poderia ser atendido pelo Dr. Kevin Davies. Preenchi a ficha com as informações do Legolas e me sentei na sala de espera  percebendo que não sabia quase nada sobre o cachorro. Tivemos que aguardar um pouco até chegar a nossa vez. 

Legolas entrou no consultório fazendo bagunça e Kevin quase derrubou o calendário que estava sobre sua mesa quando me viu. Fechei a porta e me aproximei tentando controlar o cachorro. 

Ele se aproximou com uma tensão entre seus olhos e colocou as mãos no jaleco branco. 

— Dr. Kevin? — perguntei sorrindo um pouco e ele acenou com a cabeça. 

— Eu não sabia que tinha um cachorro — falou dando uma olhada no Legolas.

— Nos encontramos ontem — alisei a cabeça do agitado. — Como o vi na rua, queria saber se ele está bem. Embora eu acredite que ele está ótimo!

Kevin tomou a guia da minha mão sem encostar em mim e levou o Legolas, o fazendo subir numa espécie de cama. 

— Vou examiná-lo — disse concentrado no cachorro. — Mas esse Golden retriever parece realmente estar bem.

— Ohh, ele é um Golden retriever! — repeti estalando os dedos. 

Kevin sorriu um pouco quando olhou para mim, mas não nos encaramos por muito tempo.

— Qual o nome dele? — perguntou apertando as patas dele.

— É... — fiz uma careta para mim mesma. — Não decidi ainda!  

Se eu dissesse para ele que nomeei o cachorro com um dos apelidos que lhe dei no passado, será que ficaria estranho? De qualquer forma, eu não queria forçar uma aproximação, e esperava que ele não pensasse isso.

Kevin acenou e continuou examinando o Legolas. 

— Eu não lembro se te agradeci por ter me acompanhado até o metrô ontem — falei observando seu semblante concentrado. 

— Agradeceu sim — respondeu apenas. — Você chegou bem?

— Sim! — sorri. 

Olhei em volta analisando seu consultório. Havia uma foto dele com os pais sobre a mesa e seu nome bordado no jaleco. 

— Fico feliz em ver que você se tornou tudo que queria! — comentei vagando pelo local.

— Assim como você — respondeu guiando o Legolas na descida. 

Fiquei perdida numa resposta. Ele me acertou em cheio com uma farpa. Apenas sorri um pouco e peguei a guia quando ele me ofereceu.

Kevin se sentou e fez um gesto para que eu me sentasse na outra cadeira. 

Fiz uma careta involuntária em ver a ficha que eu tinha preenchido sobre sua mesa. Bem, eu deveria ter imaginado.

— O... — olhou para a ficha. — Legolas, está bem! — acenei com a cabeça com a expressão de uma culpada, mas ele não reagiu nenhum pouco. — Devemos vaciná-lo por precaução, mas ele parece tão bem que é como se tivesse se perdido há pouco tempo. 

— Será que tem alguém procurando por ele? — suspirei. Poxa, eu já sentia que o cachorro era meu.

— Cuide dele por enquanto — sugeriu escrevendo alguma coisa. — O Legolas é um Golden retriever adulto, saudável. 

— Que bom! — respondi nervosa. 

Nos despedimos logo. Kevin deu um biscoitinho ao Legolas, e o adeus não chegou nem a ser um aperto de mãos. 

Andei pelo estacionamento pensando que talvez ele ainda estivesse magoado, ou decidido nunca mais se relacionar comigo. Eu não era acostumada com sua friezae foi inevitável ficar desanimada com aquilo. 

— Hora do banho — disse para o Legolas. — Eu devia ter te dado outro nome. Acho que ele me odeia!

Abri a porta do carro e o cachorro pulou para o banco do passageiro. Talvez Legolas fosse adestrado, porque ficava quietinho no carro, e apenas colocava a cabeça para fora.

— Wendy! 

Olhei para a entrada do consultório e Kevin veio correndo. Seu jaleco branco voou contra o vento. Já estava segurando a porta do carro, mas fiquei parada o esperando chegar até mim.

Ele recuperou o fôlego e ajeitou seu cabelo rapidamente.

— Você tem estado ocupada? — perguntou me fazendo levantar as sobrancelhas. — Você acha que devemos tentar conversar?

— Devemos? — respondi intrigada. — Quero dizer, você quer conversar?

— Bem... — passou a mão na nuca olhando para os lados. — Talvez devêssemos. 

Pressionei os lábios para não sorrir e confirmei com a cabeça. 

— Tudo bem! — respondi. — Vamos conversar. 

— Você está livre amanhã? — disse com o cenho ainda franzido. 

— Tenho tido muito tempo livre.

✴✴✴

(Lembrança)

Apontei para a TV depois de assistir Senhor dos Anéis pela quarta vez. Kevin abraçou a almofada emburrado, ele estava irritado de me ouvir falar o quanto os atores eram bonitos.

— Você serviria para ser um elfo! — falei o cutucando. — Todo delicado, limpo, e lindo!

— Hum — virou o rosto. 

— Poderia interpretar o Legolas, e eu iria adorar assistir!

Ele sorriu daquele jeito marrento, fazendo só o canto da boca subir.  

— Eu mereço um sorriso maior — cutuquei sua bochecha fazendo-o se virar para mim.

— Acontece que eu sou mais bonito que ele — deu de ombros me fazendo gargalhar. 

Olhei para a tela vendo Orlando Bloom com aquele rosto escultural e os cabelos loiros compridos, e depois encarei meu namorado de pele alva e orelhas pontudas. Eu era loucamente apaixonada por ele, e ninguém conseguia ser mais bonito a meus olhos. 

— Tudo bem, Legolas! — encostei a cabeça em seu ombro. — Quem eu seria?

— Talvez Frodo — espremi os olhos e me afastei para encará-lo. 

— O mais importante de todos? — sorri.

— A mais dramática — me afastei dele até me encontrar na ponta do sofá. Kevin deu risada e se arrastou até mim. — Estou brincando! 

— Sai! — empurrei o garoto ainda ouvindo sua risada. 

— Você não pode estar entre esses homens grandes e barbudos — falou afastando meu cabelo do rosto. — Ou vou morrer de ciúme! 

— Ridículo — sorri um pouco. 

Ele me deu um beijinho, mas fomos interrompidos em ouvir a voz da minha mãe. Desliguei a TV e levantei do sofá. 

— Precisamos ir, antes que ela diga que só sei namorar — ofereci minha mão a ele. 

— Isso está ficando chato — suspirou pegando minha mão.

— Deixe que eu resolvo isso! — coloquei força para puxá-lo do sofá. — Vamos, Legolas! — pedi lhe causando uma risada.

— É isso que sou? — levantou finalmente, parecendo divertido.

— Sim, meu elfo favorito!

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