Capítulo II: A noite conhece seu tempo

 Nico não tomou o chá, como esperado, embora Mercstzine quase tenha perdido a paciência duas vezes e feito ele engolir à força com xícara e tudo. Ela foi piedosa, mas o obrigou a ficar na sua tenda enquanto fazia uma limpeza em várias partes da estalagem. Não se passara muito tempo desde a última vez, mas montes de teias de aranha surgiam de um dia para o outro, acompanhadas de um pó acinzentado que se acumulava sobre os antigos móveis da família, que exibiam um leve ar suntuoso em meio àquele cenário humilde.

 Apesar do cheiro deliciosamente chamativo, o caldo de Mercstzine não dava sinais de que faria uma boa venda naquela manhã, porém até o meio-dia e o fim da paciência de Nico, o fundo da panela foi ficando visível sem muito esforço e uma bolsinha ganhou o peso de algumas moedas. O pouco que era muito quando se tinha quase nada.

 Nico retornou à estalagem e encontrou Mercstzine na cozinha. Terminara a limpeza e colocava uma panela sobre o fogo enquanto falava consigo mesma.

 — Só pode estar louco. Perdeu os olhos e agora a cabeça...

 Se ficou surpresa ao notar que Nico escutara, não demonstrou. Virou-se para ele com o olhar sereno e perguntou com uma voz contida:

 — Como foi?

 Nico pôs a panela vazia sobre a mesa.

 — Alison Anders causou problemas de novo, mas...— tirou a bolsinha que estava presa em seu cinto e jogou para Mercstzine, que a aparou no ar— eu diria que não foi tão ruim.

 — Eu diria o mesmo— ela sorriu.

 Monotonia foi o sinônimo do resto do dia. O vento ficou estagnado e permitiu que a copa das árvores fizessem o mesmo. O contrário ocorria com as nuvens, que pareciam indecisas entre se unirem e caírem em forma de chuva sobre o solo de Ertiron ou se deveriam continuar o seu misterioso curso no imenso oceano deslumbrante do céu.

 Nico sentia-se muito melhor em relação ao corpo, mas sua mente começava a trazer a noite anterior aos seus olhos, como se fossem fantasmas sombrios que insistiam em persegui-lo. Vozes agarravam-se aos seus ouvidos e ecoavam sussurros de gritos da noite anterior, a plateia da Arena comemorava sua derrota. Rostos distorcidos lentamente se tornavam pinturas a serem colocadas nas paredes da sua memória.

 O mais atormentador, porém, entre as estranhas faces que surgiam era reconhecer o rosto de uma pessoa. Nico vira nitidamente Johen sorrindo para ele, o mesmo sorriso torto de desdém que sempre tivera. Essa única pintura estava terminada, começava a tormenta.

 — Evite ficar pensando nessas coisas— Mercstzine o pegou distraído durante o almoço.— Apenas aproveite a minha comida.

 — Sim, senhora— ele sorriu. O dia pareceu ficar bem melhor após isso.

 Quando terminaram e lavaram a louça, Mercstzine recolheu-se em seu quarto para ter seu tão merecido descanso e Nico ficou solitário na espaçosa sala de estar, olhava pela milésima vez os vários retratos da família Mercstzine.

 Era espantador como sempre conseguiam causar um tipo diferente de estranhamento. Alguns olhares estreitos davam a impressão de que não o queriam ali. Outros, cujos olhos estavam quase saltando das órbitas, pareciam demonstrar surpresa por ainda o verem ali. Os Mercstzine podiam ter lábios grossos ou finos, serem pálidos como cadáveres ou vermelhos como carvão em brasa, porém existia um traço comum em todos que também se notava na atual dona da estalagem: as bochechas protuberantes.

 — Bochechudos— disse, fazendo as várias feições se tornarem mais ameaçadoras. Só que apenas em sua mente... ou talvez não.

 O tempo caminhava com passos de formigas preguiçosas. Nico desejava uma lupa e um pouco de sol naquela tarde maçante para fazê-lo andar mais depressa. Queria que o próximo dia viesse sem demora, que fosse embora tão rápido quanto tivesse chegado e os seguintes mantivessem o mesmo ritmo até formar uma nova semana. Ele esperava retornar à Arena e mostrar a todos que podia derrotar Abnor, sabia que conseguiria se tivesse mais uma chance. Era mais tentador ficar pensando nisso do que na sua última derrota.

 O Lustre de Ferro ainda balançava sobre sua cabeça, podia ver, mas ao mesmo tempo a noção de que estava imóvel vivia. Era seu corpo que estava girando com um abraço apertado, roubando-lhe o ar. Estava sem peso, voava antes de cair em um sonho macio. Decidiu que essa sensação de ser abatido por Abnor morreria para sempre, não mais seria repetida.

 Quando cansou de ficar imaginando como as sobrancelhas do senhor Alho Mercstzine cresceram de forma tão peculiar, Nico decidiu subir para o seu quarto, sentir as velhas escadas rangerem sob seus pés descalços não foi algo agradável.

 Um ronco baixo o recebeu quando abriu a porta. O aposento estava escuro, as cortinas cobriam as janelas e as teias de aranha que pendiam do teto se moviam lentamente com o passar de um vento suave. Mercstzine não passara pelo quarto, pois Endrick dormia. Ele estava ao chão sobre os cobertores de um lado da cama, não se levantara desde que se despedira na cozinha. Nico sentiu-se um pouco tolo por não ter seguido o exemplo, talvez dormir realmente fosse o melhor.

 Fechou a porta atrás de si sem muita pressa, o habitual ranger quase inaudível. Ignorando a poeira que se agarrava aos seus pés, andou até o lado oposto em que Endrick dormia e deitou-se silenciosamente sobre seus cobertores que também estavam ao chão. Era o que Mercstzine chamava de “A mais completa asneira!”. Os dois dormiam ao chão para não dividirem a cama estreita ou alugarem outro quarto. Claro que um deles poderia ficar com a cama, contudo discordavam. Sempre diziam “Meu conforto não é mais valioso que o dele”. Mercstzine sempre respondia “Asnos!”. Lembrar dessas palavras trouxe um sorriso.

 Olhou para o teto e suas teias que balançavam com cadência lenta e indefinida. Pensou mais uma vez no sonho de Tarci, sobre a razão de ir a Elisesile sozinho e retornar apenas à noite. Sonhos mostravam-lhe visões de coisas misteriosas, fragmentos do passado ou do futuro, raramente interpretados de forma correta ou que faça sentido.

 Tarci era considerado louco pelos habitantes de Ellefen. Nico tinha o mesmo pensamento até bem recentemente, dois meses atrás, quando começou a morar na Casa Mercstzine. Contudo, mudou de ideia após histórias contadas por Mercstzine e uma breve demonstração:

 — Ei, garoto— chamara Tarci.— Ele vai estar com o ombro ferido, o direito, eu acho...

 — Ah, obrigado— respondera, franzindo a testa sem entender.

 Nico teria sua primeira luta na Arena. E sim, o oponente estava com o ombro direito machucado. Foi uma informação bastante útil para sua primeira vitória em Cinstrice. Desde então, Tarci não teve mais visões. Nico estava ansioso para ir a Elisesile e ver o que poderia descobrir. Cruzou os braços e permaneceu olhando para cima, acordaria Endrick quando visse a noite se aproximar.

 Uma voz rompeu o silêncio do quarto.

 — Não pega fogo de novo— resmungou Endrick.

 — Como é?— Perguntou Nico, olhando por debaixo da cama.

 Escutou-se algo indistinto e Endrick virou-se para a parede, roncando. Não era raro que falasse enquanto dormia, Nico acostumara-se após algumas semanas. Às vezes, acontecia uma breve conversa, da qual Endrick dizia não se lembrar quando acordava e tampouco acreditava que falava dormindo.

 —O que mesmo não deve pegar fogo, Vanmorrênio?— Nico fitou o teto novamente, com um sorrisinho.

 Permaneceu calado enquanto esperava uma resposta, que talvez viesse acompanhada de um tapa. A única coisa que veio foi o sono que o derrotou sem se revelar como oponente e aparentemente foi embora batendo a porta com força para que o acordasse. Nico imediatamente olhou para o outro lado da cama e se colocou de pé quando percebeu que era Endrick quem acabara de sair.

 Realmente não esperava ter adormecido, sua noção de tempo estava confusa, não sabia se horas ou minutos haviam se passado. Sentia-se tonto por se levantar muito rápido. Apesar do frio, suor escorria por sua testa. Nico enxugou o rosto e caminhou até a janela, afastando a cortina para olhar pela vidraça. A tarde se encerrava, o céu estava escuro e sem crepúsculo, devido às nuvens que se uniram afinal.

 Sem perder mais um segundo, pegou uma capa e saiu correndo do quarto, descendo as escadas três degraus por vez até a porta. Encontrou Endrick com a carroça pronta, as mãos nas rédeas, quase saindo.

 — Você não estava dormindo?— Perguntou ele.

 — Eu acho que sim.

 — Você quer ir?

 — Ele disse para nós dois irmos.

 — Você pode ficar se quiser.

 — Eu posso?

 Endrick deu de ombros.

 — Você quer que eu vá?

 — A menos que você queira ficar.

 — Mas eu quero ir— disse Nico, subindo e encerrando o assunto.

 A cidade de Elisesile ficava ao leste de Ellefen, não muito distante. Umas poucas árvores margeavam o caminho, a vegetação rasteira era parca e as colinas davam impressão de esconderem algo que seria revelado quando a noite deixasse para trás suas primeiras horas. O pio de uma coruja lembrou Nico de que outros animais observavam nas sombras.

 A estrada que percorriam costumava estar movimentada a essa hora do dia com o retorno dos mercadores de Ellefen e de outros vilarejos da região. Estranhamente, isso não acontecia.

 — Voltaram mais cedo por causa do tempo— disse Endrick, quando Nico perguntou.

 O sol se pôs sem ser visto. Felizmente, Endrick não esquecera o lampião dessa vez. As árvores se apresentavam na forma de silhuetas tortas e perdidas em meio a uma delicada cortina de névoa. O vento soprava, parecia vir de longe, das Montanhas Farynan ao norte de Ertiron.

 O atrito das rodas da carroça com o chão era o único som que os acompanhava na estrada, sendo cortado poucas vezes por pios de corujas e zumbidos de insetos. Nico olhava para o céu e sentia a falta das estrelas. Costumava admirá-las e diferenciar as diversas constelações. Em noites como essa, ele desejava estar sobre as nuvens, para poder ver a beleza que escondiam.

 Um galope acelerado quebrou a ordem dos ruídos que os cercavam. Alguém vinha de longe e se aproximava rápido. O barulho ficava cada vez mais intenso e quando Nico resolveu olhar, tudo que viu foi um borrão veloz passar ao lado deles na direção oposta.

 — Isso foi um cavalo?

 — Sim— respondeu Endrick.

 — Quem correria com tanta pressa

 — Ninguém. A sela estava vazia.

 — O que você acha que aconteceu? Bandidos?

 Endrick suspirou.

 — Eu não sei, mas posso ver as luzes de Elisesile, logo estaremos retornando. Esperemos não ter mais nenhuma surpresa.

 O cobertor do silêncio foi posto novamente, apenas trovões distantes passaram a ser ouvidos. A neblina se abria aos seus olhos à medida que avançavam. Um lampejo repentino fez da noite um dia por uma fração de segundo, deixando visível a figura de um homem que caminhava na direção deles. Uma faixa escura estava amarrada em volta da sua cabeça, cobrindo os olhos.

 Os dois permaneceram em silêncio e quando a carroça se aproximou o suficiente, o homem, com uma voz embriagada, disse:

 — Eu conheço essa carruagem.

 — E nós conhecemos esse andarilho solitário— disse Nico.

 — Como está, Tarci?— Perguntou Endrick.

 — Estou andando, qual de nós é cego?

 O odor inconfundível de cerveja deixou Nico enjoado.

 — Eu acho que ele encheu a cara.

 — Eu acho que ele foi além disso— disse Endrick, quando Tarci tropeçou no próprio pé.

 As rédeas foram parar nas mãos de Nico e o trajeto de volta a Ellefen se iniciou em um ritmo mais acelerado. Tarci não dissera uma palavra desde que montara na parte de trás da carroça, dando as costas para ambos. Apesar da curiosidade, Nico concordou com Endrick em ficar calado até chegar à estalagem, no entanto...

 — Você gostaria de brincar um pouco, Endrick?

 — Às vezes esqueço que você não teve infância— foi a resposta.

 — Vamos brincar de adivinhar a razão que levou Tarci a Elisesile e o porquê de irmos buscá-lo antes do anoitecer?

 — Não é o momento, rapaz.

 — Esse é o momento. Eu vim com você, não foi?

 — Eu disse para você ficar se quisesse— Endrick deu de ombros.— Deixa de ser chato.

 — Mas ele disse para nós dois irmos.

 — Eu disse apenas Endrick— Tarci enfim se pronunciou.

 Nico resmungou.

 — Acho melhor conversar com quem passa seus recados.

 — E eu disse ao anoitecer.

 — A noite chegou um pouco mais cedo. Como você sabe que já é noite, afinal?

 — A noite sempre conhece seu tempo, Nico— disse Tarci.— Por que eu não conheceria também?

 — Claro que conhece, mas qual o motivo de ser ao anoitecer? Não poderia ser às sete horas ou oito, é tudo noite.

 — Duas razões— o vidente apontou o dedo para o céu— eu precisava de tempo e a outra...

 Um relâmpago revelou a eles a silhueta assustadora das nuvens tempestuosas que estavam acima, o trovão estrondando com força como uma montanha de encontro a outra.

 — Vocês podem ver. É melhor nos apressarmos. O céu está quase desabando.

 — Claro— disse Nico.— Você explicou sua pressa ou a falta dela, agora só precisa dizer o que o levou a Elisesile.

 — Esse mesmo caminho.

 — Seu humor melhora bastante quando fica bêbado. Então, Endrick, vamos brincar?

 Endrick revirou os olhos, grato por Mercstzine não estar ali.

 — Vamos— disse Tarci.— Mas vai ser de algo novo, vamos brincar de calar a boca até chegar em casa! O próximo que falar vai cair da carruagem.

 Ninguém ousou abrir a boca para descobrir se a ameaça era verdadeira. Até chegar à estalagem, escutou-se apenas os sussurros inquietos do vento gélido e as graves vozes das nuvens, que pareciam retumbar por todo o reino.

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