Contos de uma Fada 4 - A Nascida das Trevas
Contos de uma Fada 4 - A Nascida das Trevas
Por: Letícia Black
Capítulo Um: A Notícia

Capítulo Um

A Notícia

Ainda era começo da noite quando atravessei os portões do castelo. Os humanos estavam correndo de um lado para outro, tentando consertar o que tinha se quebrado, limpar o que manchara e tudo o que eu tinha pensado era em como eu gostaria de ir embora logo. Levaria semanas para que o castelo voltasse à sua glória e a coroação de Melissa fosse realmente consumada e apesar de ter gastado minha lábia e diplomacia por algumas horas, meu trabalho ali estava feito.

Encontrei meus companheiros em uma barraca improvisada um pouco mais ao leste da entrada do castelo e caminhei para lá, despreocupada. Os humanos mantinham uma distância segura e respeitosa de mim depois de minhas demonstrações de poder e sentia o temor e admiração deles no ar; inesperadamente, isso me deixava confiante.

— Pela maldita mãe dos infernos — conseguia ouvir o grito de Lorena alguns passos de distância. — Que merda você está jogando aí? É fogo-vivo?

Ellen estava rindo enquanto passava seu creme de ervas medicinais nas feridas de Lorena e por isso a gritaria. Guilherme foi o primeiro a me notar e levantou-se para me dar um abraço e um beijo estalado em minha bochecha. Kieran estava sentado ao lado de Lorena e tinha um sorriso divertido em seu rosto, deu uma piscadela em minha direção, o que significava que a distração de ver Lorena sofrer com curativos fizera com que ele me perdoasse por tê-lo afastado da batalha. Meu bom irmão não era de guardar rancores.

A exaustão me fez apoiar o corpo contra Guilherme, que não se importou. Estava prestes a perguntar sobre como nos organizaríamos para a partida quando um trote rápido chamou a minha atenção e um borrão verde se jogou na minha frente; Sophia tentara desmontar de seu cavalo em movimento como eu fazia e caiu de cara no chão.

— O que houve? — questionou, sem se abalar com nossas risadas. — Já acabou?

Nossas risadas aumentaram e eu ajudei Sophia a se levantar e expliquei o que havia acontecido. Agradeci-a por ter atendido o chamado com tanta prontidão. Sentamos ao redor da tenda que os guerreiros elfos montaram e começamos a partilhar a caça que conseguiram enquanto eu estava em reunião com Melissa. Tinha deixado Karmark em meu lugar e agora ele vinha em nossa direção com uma tocha iluminando o caminho da noite que já tinha caído.

Ele reverenciou-me ao nos alcançar e era uma cena ridícula, porque ele estava imaculado em suas vestes élficas de alto escalão e eu estava suada e toda suja de gordura de coelho.

— A rainha Melissa afirma não conseguir dispor de aposentos para todos — comunicou-nos. — Mas um quarto foi oferecido para princesa e seu consorte e outro para o príncipe.

Torci os lábios e acenei, despreocupada.

— Agradeço a preocupação, mas vou dormir com minha corte e meus soldados — informei-o.

Eu sabia que era a decisão certa quando minhas conselheiras me olhavam com os olhos admirados, como se jamais tivessem visto alguém dizer aquilo antes.

— Ei, onde está Siena? — Sophia finalmente notou sua ausência e sorri amarelo, vendo Kieran se levantar da pedra em que estava para se afastar da conversa que iria iniciar.

Deixei de prestar atenção na explicação de Ellen quando senti os lábios de Guilherme em meu ouvido.

— O que há com seu irmão? — perguntou-me, baixinho.

Suspirei. Ainda era uma surpresa incrível tê-lo comigo em meu mundo e não sabia se iria me acostumar.

— Ele gosta de Siena — expliquei. — E Siena gosta de um humano. Provavelmente está com ele agora.

Enlacei meu braço no dele, deixando meus olhos pesarem com o cansaço. Tínhamos passado a noite na estrada e depois de usar um bocado dos meus poderes, achava que poderia dormir por três dias seguidos. Mas eu sabia que dormiria algumas horas e partiríamos de manhã cedo para Lammertia.

Foi exatamente o que aconteceu. Guilherme perguntou onde poderíamos nos deitar depois que eu quase desmaiei de cansaço em seus braços algumas horas mais tarde. Nos concederam um espaço na tenda que também seria ocupada por Lorena, Kieran, Ília, Ellen, Sophia, Karmark e dois outros guardas élficos que eu não recordava o nome. Em algum momento da noite, Siena também se juntou à nossa tenda e a ouvi negociar com Lorena para tentar deitar-se ao lado de Kieran, sem sucesso. A cada um que se juntava para deitar, eu despertava, apenas para sentir os dedos de Guilherme acalmando-me e adormecer novamente.

Levantamos antes do nascer do Sol e partimos em direção à Asa Real sem nos despedirmos. Duvidava que Melissa fosse se importar, seria menos um peso em seu já complicado início de reinado.

Foi com indolência que ignorei o fato que Guilherme se recusava a retornar à Alvorada, apesar dos pedidos de minha mãe, mas, como a delegação élfica não seguiria caminho para Agulha sem antes nos deixar em segurança em nossa cidade, não reclamei. Depois, tinha certeza que Karmark conseguiria convencê-lo com alguma mágica que vinha da experiência de centenas de anos.

Em nosso caminho, percebi o afastamento do conselheiro de meu pai. Ele era sempre falante e gostava de contar histórias e tecer explicações sobre todas as coisas; eu mesma o tinha escutado tentar ensinar algumas palavras em élfico para meu marido enquanto cochilava em seu ombro na noite anterior. Chamei-o algumas vezes para o meu lado, sem sucesso. Ele permaneceu ao lado de Ília com acenos respeitosos.

Guilherme, ao meu lado, alertou-me todas as vezes em que Siena tentou aproximação com Kieran em nossa viagem, sem sucesso. Meu irmão tinha sofrido pelos últimos meses com a desatenção da rosa, envolvida com a presença constante de seu primeiro amor, o melhor amigo da princesa Melissa. Kieran tinha dito, algumas vezes em alto e bom som, que estava ansioso para reencontrar Bel. Esperava que não estivesse fazendo isso apenas para deixar Siena com ciúmes, mas era uma possibilidade.

Ao nos aproximarmos dos portões de Asa Real, Karmark finalmente aceitou meu convite e veio até meu lado, acompanhado de Kieran. Guilherme abriu um sorriso e soube que os dois já estavam desenvolvendo uma amizade, mesmo que um pouco atrapalhada pelo problema linguístico.

— Gostaria de ter um momento a sós com a senhora e seu irmão, vossa alteza — disse, formalmente.

Gui deu de ombros quando olhei para ele, não entendendo muita coisa do que o conselheiro de meu pai tinha dito. Foi Lorena que traduziu.

— Ele quer conversar a sós com os príncipes — disse. — E não está falando de você — implicou com ele, fazendo-o rir. — Com todo respeito, conselheiro, não pretendo deixar minha princesa sem proteção na estrada.

Karmark não pareceu satisfeito com a resposta da minha amiga, mas concordou com a cabeça. Vendo seu desconforto e apesar do olhar decepcionado de Guilherme, curvei-me em sua direção e beijei-lhe de leve a boca, não me importando com a proximidade da capital das fadas.

— Depois conversamos — sussurrei para ele. — Você não entenderia metade das coisas ditas de qualquer maneira.

Guilherme sorriu e beijou-me de volta.

— Você tem certeza que ninguém vai querer me matar assim que eu cruzar essas portas? — perguntou, em brincadeira.

Meu rosto se fechou porque, apesar de estar brincando, era uma preocupação que eu tinha.

— Não — murmurei. — Mas vá com Ellen e você deve ficar bem. Não vou demorar.

Guilherme estranhou minha mudança repentina, mas era possível perceber que Karmark estava um pouco impaciente com nossa despedida demorada e acabou me dando mais um beijo e virando seu cavalo para seguir o comboio. Ele estava começando a se tornar um bom cavalheiro, mas parte disso era facilitado pelo cavalo élfico dócil que meu pai havia lhe presenteado antes de nossa partida de Agulha.

Voltei-me para Karmark e ele virou o cavalo em direção à floresta que circundava os muros da cidade, onde Kieran tinha se escondido nos primeiros anos em Castelo Alado e onde caçávamos, às vezes. Procurei o olhar de Kieran com dúvidas e ele me deu os ombros, sem entender, também. Lorena nos seguia, a asa esquerda enfaixada depois da batalha em Estamina, o que a tinha feito deixar a lança para trás por uns dias. Em seu ombro, o arco talhado em madeira clara se destacava sobre seu tom de pele e o azul de suas asas e roupas.

Karmark parou alguns poucos metros de floresta adentro, ainda conseguíamos ver a estrada de onde estávamos, o que me dizia que o que ele tinha para falar não era segredo, apenas buscava um pouco de privacidade às centenas de olhos da cidade.

Karmark desceu do cavalo e eu e Kieran os imitamos. Lorena avaliou a situação e deu alguns trotes para trás, nos dando espaço, satisfeita com a localização que o conselheiro de meu pai escolheu. Ele mexeu nos bolsos e retirou um papel, apertando-o contra os dedos, parecendo ansioso. Levantou o olhar para nós dois e só de ver a expressão em seu rosto, sabia que havia algo muito errado.

— Seu pai queria estar aqui, com vocês, para poder contar-lhes o que está acontecendo, mas... — Karmark pausou-se, tomando um ar. — Tem algumas coisas que nem o tempo nem a experiência nos ajudam a passar — ele sorriu, triste.

— Do que você está falando? — Kieran perguntou, impaciente.

Segurei seu braço, transmitindo um pouco do meu fogo, na esperança que isso o acalmasse. Kieran andava um pouco mais estressado que o normal com todo seu drama de relacionamento, mas conseguia compreendê-lo. Meu próprio estômago estava se revirando com o pressentimento ruim que sentia.

— Seu pai recebeu uma carta de Castelo Alado um pouco antes de sairmos para Estamina e eu vim com vocês não só para auxiliar nas resoluções diplomáticas, mas... — ele torceu os lábios, insatisfeito. — Como portador da notícia.

Eu fechei os olhos, lembrando de meu pai escondendo um papel de meus olhos, o fogo brilhando em sua íris e eu tinha reconhecido como raiva, mas por mais que tentasse descobrir o que tinha lhe acontecido, não pude. E minha partida se deu antes que conseguisse fazê-lo quebrar e me contar.

— Por favor, só fale logo — pedi, minha voz falhando.

Se tinha sido algo capaz de fazer meu pai quase perder seu autocontrole, não devia ser nada muito bom. Ele era sempre tão contido, tão cuidadoso com seus poderes, com sua figura de liderança. Vi-o demorar para conseguir se controlar e vi sua natureza lutando contra ele diante de mim.

Sabia que eram notícias ruins.

— A rainha Kathelynn — ele começou e eu engoli a seco. — Sua mãe. Sua mãe está grávida.

Soltei a mão de Kieran, arregalando os meus olhos. Estava esperando que o fim do mundo se iniciasse, mas mais um irmão não era uma notícia ruim. Deixei meus lábios formarem um sorriso e olhei para Kieran para encará-lo ainda em total surpresa.

— Não, não, me desculpem — Karmark pediu. — Me desculpem, eu contei da forma errada — ele respirou fundo, massageando suas têmporas enquanto eu o encarava, em dúvidas. — Ela está grávida, sim, mas... Embora não esteja desmentindo que Tharlion seja o pai, ele não é. Ela teve a... Gentileza... de avisá-lo sobre isso.

Engoli a seco. Meus pais estavam bem em meu aniversário, em meu casamento. Fizeram minha união juntos em um momento de máxima intimidade que eu jamais achei que conseguiria presenciar dos dois. Senti-me tão honrada e tão feliz, não só por ter conseguido meu intento com Guilherme, mas por saber que meus pais se amavam do jeito estranho e proibido deles.

Como ela poderia estar grávida de outro homem?

— Há dois problemas sobre isso, crianças — Karmark continuou. — O primeiro é que sua mãe não está bem de saúde. A informação nos chegou escassa, mas sei que ela está acamada e quem está regendo o país, nesse momento, é Violeta. Agora que está de volta, princesa, acredito que parte do fardo, ou todo ele, recaia sobre a senhora — ele reverenciou-me com delicadeza. — Se meus serviços forem requisitados, tenho permissão para ficar em sua corte — concordei com a cabeça, ainda assimilando as informações, mas satisfeita que meu pai o tivesse oferecido. Karmark era sempre uma companhia agradável e tinha vasta experiência em gestão. — O segundo problema, meus príncipes, é que não sabemos sobre a origem da criança que está para nascer. E se o pai da criança for um humano...

Fechei os olhos, sentindo Kieran apertar meu pulso tal como eu havia feito anteriormente para acalmá-lo.

— Ah, não — murmurei, entendendo e interrompendo Karmark. — Vai ser tudo de novo... — Virei-me para Kieran, com urgência. — Você precisa voltar para Alvorada e ficar lá.

— O quê? — Kieran pareceu chocado com minha demanda. — Não, claro que não vou.

— Kie, se essa criança for metade humana, nós não somos úteis. Vão querer nos prender ou pior. Vá, por favor. E leve Guilherme com você.

Kieran teve uma crise de risos e me segurou pelos ombros, sacudindo.

— Você é louca se acha que eu vou te deixar sozinha, irmã — apertou as mãos em meus ombros, firme. — Duvido que seu companheiro aceite isso, também.

Neguei com a cabeça, apavorada. Como minha mãe tinha permitido que isso acontecesse?

— Vamos manter a calma, princesa — Karmark pediu. — Primeiro descobriremos o que está acontecendo e depois tomamos as medidas necessárias. Vocês sempre serão bem-vindos em Agulha Erudita e seu pai está preparado para resgatá-los e protegê-los se necessário. Não seria a primeira vez que elfos e fadas entram em conflito.

Queria ficar calma. Queria sorrir e fingir que estava tudo bem, mas nada em minha vida tinha sido muito fácil e eu estava sempre esperando o pior. Naquele momento, o pior era não conseguir proteger Kieran no iminente nascimento de uma criança vermelha pura. Se eu não fosse mais necessária, meu irmão seria descartado com ainda mais rapidez.

Mesmo assim, concordei com a cabeça para o que Karmark sugeria porque era a única coisa que eu poderia fazer.

Não montei Princesa em meu retorno ao Castelo; estava tão perdida em pensamentos que apenas passei direto por ela e deixei que Kieran reunisse suas rédeas e de Eniak e os guiasse atrás de mim. Ao passar por Lorena, batendo os pés, ela desceu de Flecha e parou ao meu lado.

— Não se preocupe, vossa alteza — disse, chamando minha atenção. — Para pegarem vocês, terão que passar por cima do meu cadáver.

Acenei em agradecimento, mas era disso mesmo que eu tinha medo.

Quantas das pessoas que eu amava poderiam morrer se minha mãe tivesse cometido aquele erro? E quantas mortes seriam necessárias para que eu surtasse e me transformasse em uma Etorn?

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