2. Capítulo

Eu já não era capaz de dizer o que guiava: o medo de definhar até morrer, presa com um demônio saído de pesadelos profanos;

O horror de se quer imaginar o inevitável confronto que se desenharia casos eu tentasse fugir ou a mais pura insanidade;

Vamos dizer que, por absolutamente nenhum motivo além do impulso natural de sobrevivência, arrisquei uma nova olhada, ciente que ou eu encontraria uma forma de sobreviver agora ou cederia meu último resquício de sanidade pra este espetáculo de horror.

Abaixei o meu corpo ao máximo que fui capaz, com lentidão e esmero, aproximando a cabeça do vão entre a porta do banheiro e o chão gelado. Era quase insuficiente para espremer meu rosto de forma que permitisse a visão. Também me mantive atenta e tomei cuidado de não encostar a cabeça na porta, evitando a todo custo produzir qualquer ruido que fosse.

Eu sabia que o único motivo de continuar viva até que aquele momento era o fato de não me ter feito até então. A tal altura, ainda era impossível pra mim deduzir qual seria o grau de audição daquelas coisas, por isso o menor estalo que meu corpo produzia já era suficiente para enviar uma onda de gelo por toda minha espinha.

Por baixo da porta, fui capaz de enxergar um par de tênis Vans pretos a dois metros de mim. As canelas de quem os calçava eram brancas, maculadas por fios de sangue que desciam até se perderem no algodão das meias brancas. Ao lado do Vans, uma poça d água se formava, com uma espessa espuma branca nas bordas. Aquilo que outrora fora uma estudante parecia estar completamente imóvel. Eu não sabia se fitava algo, ou se quer se era capaz de prender a sua atenção em alguma coisa. Qualquer que fosse essa resposta, apenas a realização de que eu somente via a parte de trás do tênis - que significava que aquilo não estava virado na minha direção – era o suficiente. No meu campo de visão, não era possível ver mais nada além disso.

Ousei perguntar-me por que parara de comer a sua amiga, mas simplesmente pensar nisso quase me fez ficar mais maluca que eu já estava.

Ainda com cuidado, ergui-me até ficar em pé. A operação teria que ser bem cuidadosa, mas imaginei que eu seria capaz de produzir o mínimo barulho. Que Deus permitisse que isso fosse suficiente.

Em câmera lenta, eu comecei a subir no tanque, colocando uma perna por vez, ouvindo alguns estalos que a porcelana fazia sob meu peso. Espalmei as mãos nos ladrilhos gelados da parede, tentando deixar a maior parte do peso apoiado somente nelas. Cada movimento milimétrico que eu fazia me permitia sentir a instabilidade do tanque. Todo meu corpo – as minhas axilas, principalmente – ficaram úmidos conforme o meu nervosismo aumentava.

Quando comecei a me erguer em pé, tive cautela antes de ficar completamente ereta. Consegui ver, por sobre a porta de madeira, que Soraia realmente estava de costas pra mim, fitando a pequena janelinha no alto da parede, permitindo-me ver apenas seus compridos cabelos castanhos. O som que vinha do lado de fora (gritos) parecia mantê-las devidamente interessada. Não conseguia ver seu rosto e agradeci por não ter de ver novamente aqueles deformados olhos vermelhos.

Da altura que eu estava, olhei ao meu redor e precisei de muita força para não desisti imediatamente: próximo a porta, o corpo sem vida, com o rosto mutilado, estava estirado no chão. Quis evitar olhar, mas era inevitável: estava tão próximo a porta que seria impossível não ter que arrastá-lo para o lado para abrir passagem. Uma crescente poça de sangue se formava ao redor do cadáver.

Certamente o único motivo pelo qual não vomitei foi por não haver mais nada no meu estômago.

Eu não saberia dizer quanto tempo eu tinha, mas a partir do momento em que encontrei coragem para m esgueirar para fora do banheiro, minha agonia tornou-se crescente a cada segundo que eu passava dentro daquela cabine. Em certo momento, eu pouco ligava para que horrores eu teria de enfrentar no momento em que cruzasse a porta que me separaria daquele banheiro. A ideia de continuar ali para sempre era o único impulso que eu necessitava para começar a me movimentar em direção a liberdade.

Não precisei pensar muito para identificar que a melhor rota de fuga seria evitando sair pela porta da cabine e dar de cara com o monstro que esperava para devorar minha carne. Como a havia feito uma vez imaginei que passar pela parte de cima de cada cubículo, tentando fazer a menor quantidade de barulho possível, seria a única forma de garantir uma fuga segura. Ainda que o espaço para esgueirar meu corpo deixado entre o final das paredes de divisória e o teto fosse estreito, tive certeza que conseguiria me locomover por lá.

Cria o plano era fácil, colocá-lo em prática logo mostrou ser outra história. Da primeira vez que pulei de uma cabine para outra, não precisei me preocupar com fazer barulho ou ser delicada; somente pude sentir o meu instinto desesperado. Dessa vez, imediatamente sentia a dificuldade de segurar o peso do meu corpo por muito tempo, conforme me movimentava a fim de evitar qualquer barulho. Apoiei meu pé na parede e tomei um leve impulso que me ajudou a colocar a outra perna em volta da divisória, permitindo que eu ficasse sentada sobre ela, uma perna para cada lado. Encontrei-me arfando apenas nesse esforço: graça à lentidão dos movimentos que eu precisava executar, tinha que segurar o meu próprio peso por muito tempo.

Sentada sobre a divisória, dei uma boa olhada na garota monstro que estava de costas pra mim. A minha movimentação não havia despertado-lhe a atenção, pois mantinha os olhos virados em direção a pequena janela do banheiro. Pela primeira vez, hesitei perante uma assombrosa ideia: aquele ser tinha vontade própria? Poderia simplesmente mover-se e virar em minha direção, mesmo que não houvesse nenhum estímulo?

Já surpresa por ter encontrado coragem pra chegar até ali, decidi tentar ser rápida. Era muito fácil enquanto eu tinha a certeza que o monstro não me via, mas não desejei descobrir se eu teria forças para continuar se ela se desse conta da minha presença.

Estiquei os braços até alcançar o topo da parede da divisória seguinte e encontrar o apoio. Posicionei as pernas de forma a ficar de joelhos e “engatinhei” de uma divisória pra outra. Senti o incômodo da minha canela contra o concreto, mas busquei abstrair. Sob uma pequena dor, consegui fazer a minha primeira travessia, terminando sentada na minha posição inicial, com uma perna para cada lado e as costas curvadas por causa da altura do teto.

Haviam seis cabines de banheiro e agora eu me encontrava na divisória da segunda com a terceira, contando a partir da que eu saí. Precisaria repetir aquele movimento mais três vezes até chegar em uma posição onde eu acreditava que conseguiria pular e sair pela porta antes da coisa ter qualquer reação. Não ousei pensar se quando eu chegasse até o final, teria coragem para realmente fazer isso.

Respirei fundo e repeti os movimentos, tomando o devido cuidado de não me apressar e mantendo os olhos vidrados nas costas do que um dia fora uma estudante do mesmo colégio que eu. Se me dissessem que demorei 10 minutos, eu acreditaria tão cegamente quanto acreditaria que foram apenas 10 segundos. A adrenalina mostrou-se novamente presente, não apenas me ajudando-me a encontrar forças para realizar aquilo, mas também encharcando as palmas das minhas mãos e fazendo meu coração palpitar. Eu já não era capaz de distinguir se eram batidas normais de alguém nervoso ou se haviam evoluído para uma taquicardia. Mas sabia dizer que doía.

Quando finalmente me posicionei sentada em cima da divisória seguinte, desviei pela primeira vez o olhar do zumbi a minha frente e olhei para a cabine embaixo de mim. Senti o coração parar conforme o arrepio gélido atravessou a minha espinha, congelando meu corpo em completo terror. Gotas involuntárias da urina escorreram. Sem importar em jogar todo o meu esforço anterior no lixo, puxei a perna rapidamente pra cima, quase com força suficiente para me desequilibrar.

A poucos metros de mim, no cubículo seguinte, estava a outra estudante. Aquela que, não conseguindo escapar após ser atacada, trancou-se no banheiro. Amaldiçoei-me por ter me esquecido de sua presença de uma maneira tão idiota.

O único motivo para que eu ainda estivesse viva é que a menina naquela cabine estava no chão, sentado sobre os joelhos, com o peso do corpo apoiado contra a parede, os cabelos loiros embolando-se. Fitava a porta de madeira a sua frente. Minha perna não havia entrado em seu campo de visão e chamado sua atenção. Uma nova onda de náuseas me dominou quando imaginei que o motivo para estar daquela forma era que a garota deve ter morrido naquela posição. Percebi que já estava se tornando mais fácil para mim afastar aquela figura monstruosa do ser humano que autrora fora. Não pude refletir se eu estava certa em dividi-los dessa forma.

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