1. Continuação

 Quando, por fim, calaram-se, o silêncio caiu sobre o banheiro e choramos juntas. Elas, em prantos e eu, baixinho. Meu corpo estava congelado e a vergonha de ter me escondido por esse tempo todo me castigava. Ainda assim, não era capaz de sentir nem o menor impulso pra sair daquela cabine. 

Uma das garotas perguntou a outra se deveriam sair, ouviu uma negação, e o silêncio volto9u a predominar. Isso resumiu as horas que se seguam. As vezes, uma das duas chorava e a outra dava algum tipo de consolo. Tentavam uma conversa, esboçavam planos de sair dali, mas logo o assunto morria em seus lábios. Assim como eu, temiam a inevitável hora em que se viram obrigadas a sair daquele banheiro. Uma hora tentaram forçar a porta da cabine em que eu me escondia, o que quase me levou ao infarto, mas logo desistiram. 

Quando finalmente a monotonia se interrompeu, foi apenas iniciar nossos pesadelos. 

Um novo som chegou aos meus ouvidos, diferente de todos os outros. Uma espécie de rosnado profundo e gutural, que parecia invocar os próprios demônios para a terra. As garotas chamaram pelo nome da terceira novamente, Soraia com as vozes chorosas. O que parecia ser alívio, transformou-se rápido em horror conforme as palavras aliviadas transmutaram-se em gritos. 

Também havia aquele rosnado. Um calafrio glacial fez meu corpo chacoalhar, mas além da tremedeira, esse foi o único movimento que fui capaz de fazer. O entorpecimento atrapalhava até para executar funções básicas, como respirar.  

Eu nunca havia sentido tanto medo em minha vida, tremia como se estivesse presa em um eterno frio polar. 

Ouvi passadas, batidas contra as portas de madeira e outro grito de dor sair da boca de uma das garotas com quem dividi o banheiro. A segunda não parava de perguntar se havia algo errado com a tal Soraia, mas logo desistiu. O inferno sabia o que tinha errado com a Soraia

Através de seus gritos, entendi que a menina dada como morta havia acordado e mordido uma das colegas. Os sons que seguiram, não consegui identificar, mas pareciam intermináveis. Naquela bagunça, só me era distinguível o constante rosnado. Encontrando um pouco de força, fui capaz de me levantar e tremendo, subir no tanque daquela cabine para ver o que aconteceria. Precisava confirmar o terror que eu só era permitida ouvir. 

Por cima da porta, vi que, próxima da minha cabine, aquela que deveria ser Soraia se erguia lentamente, provavelmente após ser derrubada pelas outras garotas. Foi fácil para mim identificá-la pelos olhos arregalados e com grosseiras veias vermelhas destacando-se. Além disso, seu pescoço era uma indistinguivel massa de carne viva e sangue sexo. Um de seus dedos estava torcido em posição irreal, mas ela não parecia se incomodar. No canto de sua boca, uma espuma espessa de baba branca se formava. 

Olhei para a direção das outras duas, onde uma delas de cabelos castanhos, tentava ajudar a amiga a se levantar quase arrastando-a na direção da porta. Era inútil tentar descobrir onde a segunda havia sido mordida, sua blusa que autrora fora branca agora estava empapada de um vivo vermelho sangue. 

Somente uma espécie de som esganiçado escapou da minha garganta, diante do que se sucedera. Mesmo se eu quisesse ter avisado, a movimentação da Soraia (deveria chamá-la assim?) foi rápida demais para que eu se quer pudesse processar. Com as pernas flexionadas antes de se levantar, atirou-se em um pulo predatório nos longos cabelos castanhos da que tentava ajudar a amiga, e puxando-a para o chão, onde abriu a boca de uma maneira quase irreal e cravou os dentes na cabeça da garota. 

Enquanto a boca da menina de cabelos castanhos abriu-se num “o” digno de desenhos animados, a colega ensaguentada também foi ao chão, tendo sido puxada quando a primeria levou o bote. Em desespero, desvencilhou-se da amiga e arrastou-se para uma das cabines, trancando a porta atrás de si. 

A menina que agora estava no chão gritou conforme o monstro erguia a cabeça, segurando na boca um grotesco pedaço de carne, úmido de sangue. O rosto da garota nada mais era do que um buraco desfigurado. 

Uma contração forte no meu estômago obrigou-me a descer do tanque e antecedeu um vômito amargo. Mesmo não vendo mais nada, o terrível som de carne molhada sendo mastigado foi o suficiente para me manter curvada sobre o tanque por incontáveis minutos. Naquele momento descobri o motivo primordial que guaiva os seres atacarem os semelhantes. 

Eles os comiam… 

Com pesadas gotas de suor se formando em minha testa, liguei a torneira do tanque para limpar o rosto e os rostos do meu café da manhã, mas desliguei imediatamente. Eu não sabia se o pequeno ataque havia chamado atenção, mas tudo indicava que a coisa ainda estava ocupada. 

(comendo)....

Com a garota que ficou para trás… 

Mesmo tendo lavado o rosto, as gotas de suor logo voltaram. Na verdade, escorriam por todo meu corpo, criando uma incomoda sensação gélida. Meu corpo tremia em completo descontrole enquanto eu me ajoelhava, abaixando até o chão e ficando em posição fetal. Aquela cena grotesca se repetia em loop na minha mente, com o infectado arrancando um pedaço do rosto daquela garota com os dentes. 

Penso que elas haviam se desenrolado sobre a terra enquanto eu permanecia deitada, abraçada aos joelhos e tremendo. Acredito que cheguei muito perto de entrar em choque e nunca mais responder pelos meus atos. 

Aquela peça de horror se desenrolou bem ao meu lado e eu não fui capaz de fazer anda. Certamente, estar presa com aquele zumbi logo ao meu lado era a punição que Deus escolhera para mim pela minha omissão. Quando pensava que nem mesmo tentei ajudá-las, setnia a sensação da bile ardendo minha garganta novamente. 

A ideia de morrer ali era tão terrível quanto pensar em sair daquela cabine e encarar novamente aqueles olhos arregalados e vermelhos. A cada segundo que eu tentava esboçar um plano para me esgueirar pra fora, meu corpo desatava a tremer como se fosse eletrocutado e meu coração batia tão forte que chegava a machucar. Tudo isso com a dissonância macabra daquele infindável grunhido desumano. 

Eu nunca sairia daquele banheiro. 

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