Infectados
Infectados
Por: Chrys
1. Capítulo

Meu coração cavalgou novamente ao lembrar da necessidade de sair daquele lugar, como se a simples menção dessa ideia já evidenciasse a minha ruína. Ainda assim, fato era quem em uma manhã eu já havia visto mais carnificina do que se quer seria capaz de figurar em meus pesadelos mais viscerais e sobreviver aquele show de horrores para morrer de medo trancado em uma cabine de banheiro que parecia ser a coisa menos digerível do meu dia. Pesei que se fosse para morrer, que fosse de exaustão tentando lutar contra esses monstros, em vez de padecer com um rato assustador.

Uma pena que esses pensamentos heroicos fossem inúteis para me motivar a deixar aquele banheiro fétido em que eu estava trancada. A coragem é linda nos livros, mas na vida real ela pesa em uma tonelada e fede como a morte.

Ouvi mais uma vez os gemidos e soube que eles estavam lá, como se alguma hora eu realmente tivesse sido capaz de esquecê-los. Também tinha um cadáver, esses elementos me eram conhecidos porque eu ouvira o desenrolar da peça macabra que os originaria, enquanto obrigava-me a ficar quieta, pressionando as mãos contra a boca para impedir meu desespero de se fazer presente.

Antes de tudo começar a ir pro inferno, nós havíamos sido avisados, mas naturalmente ignoramos.

A minha primeira vez que lembro de ter escutado algo sobre o caso foi nas férias de verão. Sei que houve outras notícias antes, mas não haviam atraído suficientemente minha atenção para se quer serem lembradas.

Estava na sala de espera do posto de saúde aguardando o término do atendimento de minha avó, com os olhos preguiçosamente pousados na televisão, acompanhando o jornal do almoço.

Lembro de ter assistido despreocupadamente 15 minutos de notícias corriqueiras até o anúncio feito por uma mulher de terninho e saia azul marinhos ter chamado a minha atenção: tratava-se de um espécime completamente novo, que estava congelado pelo que acreditavam ser, no mínimo dois mil anos. Os pesquisadores responsáveis justificaram o repentino retorno a atividade do vírus com a progressão do aquecimento global, responsável pelo derretimento das colatas polares.

Logo, o foco mudou.

O homem de meia idade que dividia a tela com a apresentadora questionou sobre recentes boatos que começaram a se espalhar sobre a morte de cientistas responsáveis pelo caso. Ainda havia poucas informações sobre essa nova doença e suas formas de transmissão, mas seis mortes já haviam sido confirmadas até aquele momento no instituto responsável pelas pesquisas, em Monarca e nos EUA.

A partir daí, minha memória se perde, pois lembro que minha avó Anastácia saiu da sala de consultas abrindo um sorriso ao me ver. Era uma senhora de quase 80 anos, seus cabelos já estavam brancos e seu rosto era dominado por linhas de expressão, porém tinha a saúde em dia e sem muito esforço era possível ver a beleza que autrora tivera quando era mais nova.

Senti lágrimas quentes escorrendo pelo meu rosto ao me lembrar dela, agora parecia tudo muito distante, presa há mais de quatro horas dentro do último cubículo do banheiro feminino do meu colégio, acompanhada somente pleo cheiro da podridão e do sangue, além do constante grunhido vindo do lado de fora. Todas as vezes que chorei nesse meio tempo, tive de fazer silêncio. Pouco sabia sobre o que quer que fossem aquelas… coisas do outro lado da porta, mas acreditava que se eu conseguisse me manter quieta, ficaria a salvo.

Por enquanto, pelo menos…

É pouco, mas “por enquanto” era tudo ao que podia me apegar, tive uma implicável impressão de que, a partir desse dia, cada segundo contaria como se valesse uma vida. Pois pelo que eu percebi nesse curto tempo em que andei pelo inferno, cada segundo, de fato, pode significar a sua vida.

Abracei novamente os joelhos, colocando o rosto entre eles, pensando que só tomaria um pouco de fôlego e sairia dali. Aquela altura até eu já sabia que se tratava de uma mentira. Eu tentei de verdade na primeira vez, quando chegue a espiar por cima da porta, enquanto escalava a parede, mas imediatamente desisti e desatei a chorar, segurando aquela sensação intermitente de vômito (embora já não houvesse mais nada para sair do meu estômago).

Eu estava na última das cabines do banheiro feminino, encolhida no chão. Era lá onde ficavam os instrumentos de limpeza das responsáveis pela faxina do colégio: produtos químicos, vassouras, panos de limpezas, baldes e estoques de papel higiênico. Não havia uma privada, mas sim um tanque para lavagem. Aquela última cabine ficava trancada, ao acesso somente das funcionárias da limpeza, por isso foi necessário que eu pulasse por cima da parede divisória para chegar até ela. No momento, apenas havia me parecido sensato ficar em uma cabine trancada, mas distante da porta e que dispunha de alguns centímetros a mais do que as outras.

Quando corri para me esconder nesse banheiro, no segundo andar da biblioteca, o escolhi justamente por estar sempre vazio, mas talvez essa houvesse sido a minha ruína. Cheguei em completo pânico e desespero, desejando fugir do caos que se instaurava do lado de fora. Gostaria de dizer que quando finalmente pulei as cabines e sentei no chão com as costas rentes a parede, desfrutei do silêncio, porém que ilusão cruel esta seria: ainda era possível ouvir gritos frenéticos, grunhidos assustadoramente próximos e a confusão digna da mente de um louco.

Pude desfrutar da estranha tranquilidade de me ver longe do campo de guerra por algum tempo, o qual eu não soube calcular, já que não estava com meu celular. Posso dizer que quase consegui me acalmar completamente, rascunhando um plano de tentar recuperar os meus pertences e sair do colégio pela parte de trás, quando um estrondo congelou o meu coração e me levou novamente ao encontro do desespero.

A porta principal do banheiro abriu e pares de passos adentraram, trazendo consigo vozes femininas assustadas.

A biblioteca do colégio tinha dois andares, sendo o segundo onde ficava a sala de informática e locais para palestras. Era pouco frequentado, por isso acreditei que seria bom para me esconder por um tempo. De fato, parecia, ser, já que não fora a única que me interessei por ele.

A porta foi fechada e comecei a ouvir o desespero se espalhar, pude perceber que eram três garotas que me faziam companhia, porém apenas ouvia duas vozes, a terceira só conseguia emitir gemidos e um choro abafado. Ouvi papéis sendo puxados e torneiras ligadas, enquanto uma das garotas, em prantos, fazia referências sobre “aquela mordida” e a febre da amiga que não parava de subir.

Tinham as vozes nervosas e inquietas, mas demorou pouco para terem discrição e diminuírem o tom de conversa.

Naquele momento, pensei em revelar que eu estava lá, mas hesitei com a menção da “mordida”. Eu sabia pouco sobre o que quer que estava acontecendo, mas tinha noção de que tinha a ver com aquele vírus que começara a invadir as notícias e os fóruns de discussão. Ninguém poderia adivinhar o tamanho que aquilo tomaria e, em meio a notícias falsas e superstições, começamos a conhecer um pouco sobre aquilo que viera para ceifar o futuro a humanidade.

Eu não queria pensar naquilo, afinal era ridículo. Parecia uma espécie de filme de terror deturpado e estúpido. A diferença é que era real. Eu havia lido um pouco a respeito algumas semanas antes de tentarem impedir as discussões de se espalharem: o vírus era capaz de deixar as pessoas completamente violentas e irracionais. Fazia com que elas atacassem qualquer coisa, incluindo outras pessoas.

Então aconteciam as mordidas, e assim se espalhavam o vírus.

Na verdade, o que diziam era que qualquer contato entre fluidos corporais era o suficiente para espalhar a doença, mas as mordidas acabaram ficando conhecidas. “Mordidas” trata-se de um eufemismo generoso para ataques brutais de canibalismo.

Por minutos intermináveis, acompanhei em silêncio as duas garotas conversando sobre o que deveriam fazer: permanecer e esperar ou sair e buscar ajuda para a sua amiga. Aquela altura, já estava claro que qualquer interferência de minha parte não serviria de nada além de denunciar o meu esconderijo. Eu queria voltar a ficar sozinha e me concentrar em meu plano mental de fuga. Não queria dividir aquele banheiro com mais ninguém e muito menos alguém que já fora atacado por alguma criatura e agora carregava consigo a doença. Além do que, cada segundo que se passava tornava ainda mais inconveniente a minha situação, ouvindo escondida se sem demonstrar qualquer ajuda aquela cena macabra. Então, apenas, permaneci quieta, esperando a gloriosa hora em que elas abandonariam aquele banheiro em busca de ajuda.

Mas essa hora nunca chegou e agora eu estava bem fudida… 

Logo a situação se tornou pior conforme, pelo que consegui entender, a garota mordida perdia a consciência e calava os seus tortuosos gemidos para sempre. As colegas, desesperadas, sacudiram-na e gritaram o seu nome pelo que parecem décadas. Ainda em meu completo torpor, um gosto amargo dominou a minha garganta, sinalizando a ânsia de vômito. Quais horrores não se passavam diante dos olhos daquelas garotas, sendo elas apenas estudantes tão comuns quanto eu? Que mundo blasfemo era aquele que as obrigava a segurar o corpo (com ou sem vida) de alguém tão jovem quanto elas próprias. 

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