Filho Da Areia

As Sabuja Jami, ou Terras Verdes, no idioma comum, não eram lugares fáceis de se viver. Era uma boa terra, fértil e como o nome mesmo diz, repleta de verde. Nas serras que abundam pela região, um musgo grosso e alto, de um verde vivo, cresce no lugar do capim, os camponeses o consideram uma praga porque mata o pasto e até mesmo arbustos menores. Suas raízes rasteiras, dominam as plantas que crescem a sua volta, sugando os nutrientes até matá-las. A maioria dos velhos diz que o nome da terra vem dessa planta que é capaz de sobreviver ao mais rigoroso inverno e ao estouro de uma manada de Rochosos.

Aldeias, vilas e cidadelas tentavam sobreviver e ganhar espaço por entre florestas de palmeiras e samambaias de tamanhos colossais. As matas gritavam o tempo todo com suas criaturas de diversos tamanhos e formas, terrestres, voadoras ou aquáticas. Lugares que revelavam os antigos habitantes eram proibidos, exceto é claro para os aventureiros. Os tesouros e armadilhas dos templos antepassados poderiam destruir vidas de gerações. Lagos e rios daquela região eram impiedosos. Com suas águas turvas enganavam em profundidade e força podendo matar até mesmo um exímio nadador.

Essa terra já foi considerada uma terra livre. Seres de todas as raças habitaram ali. Isso até os primeiros humanos aparecerem. Tudo mudou com a chegada do primeiro navio. Colocaram fogo na mata para abrir caminho e limpar terreno. Um incêndio tenebroso que afugentou criaturas e outros para o interior do continente, na Costa Branca foi construído o primeiro assentamento humano. Logo mais navios chegaram e mais para dentro das matas os humanos avançaram. Não bastava o extermínio de povos inteiros que habitavam ali, os humanos começaram a guerrear entre si por causa de terras. A paisagem mudou ao longo dos anos, alguns povos desapareceram, outros se multiplicaram, adaptando-se aos humanos.

Ainda era um continente novo e haviam muito a ser descoberto, com certeza. Os sábios estimaram que apenas vinte por cento daquelas terras havia sido explorada. Por isso o Reinado investia tanto em exploradores, aventureiros, cartógrafos e etc. Era algo bastante dispendioso e as cidades estavam constantemente envolvidas em problemas com arruaceiros, mas os tesouros segundo os sábios compensavam todos os gastos. De fato, foram encontradas riquezas além da imaginação e claro, houve mortes e mais guerras por causa deles.

Irmãos matando irmãos, pais expulsando filhos, templos queimados, pessoas queimadas. Realmente era uma época tensa.

Não devo dizer que era tudo extremo ou ruim. Lugares sobreviveram a ganancia e existiam bons homens. Esses foram os que prosperaram em lugares que ninguém acreditaria. Alguns se uniram a tribos locais e se tornaram um só povo. Em um lugar uma arvore poderia morrer, mas em outro ela crescia com força total.

Era sim uma terra selvagem e cheia de mistérios, lendas e forças desconhecidas. Bela e mortal para os tolos. Lar e refúgio para os verdadeiros de coração.

Um sino tocou assim que o velho Barbello terminou sua preleção. “como ele faz isso?” perguntava- se Beniali, “esse velho sempre acaba sua lição poucos segundos antes do sino bater e sempre tem uma finalização, nunca fica incompleto ou em aberto o que ele tem a dizer.”  O velho sorriu como se adivinhasse os pensamentos do garoto.

Beniali tinha treze anos, mas já treinava com o sabre desde os cinco. Ser filho do comandante da guarda real responsável por guardar a Rota de Exploração não o fizera ter uma vida fácil. Aos sete ele despertou para a magia, controlando com maestria os ventos quentes e cortantes do deserto. Aos nove ninguém da tropa, além do seu próprio pai conseguia vencê-lo em duelo.

Agora com treze anos as cicatrizes pelo corpo eram sua marca registrada juntamente com a pele queimada de sol. O sábio Barbello dizia que o deserto e as areias endureciam seus filhos para que o mundo não os ferisse facilmente, e isso podia ser bem verdade. Os olhos claros eram uma lembrança constante da mãe, que seu pai odiava mencionar e provocavam nele uma reação de asco e violência, constantemente Beniali era surrado por somente essa característica que fazia seu pai ver alguém que um dia amara. E mesmo assim Beniali não era um garoto rancoroso, era muito alegre e sorridente. Piadista demais as vezes, como o lince brincando com a presa antes de matá-la.

Não era o suficiente pra ele. Ali no deserto tudo era areia, suor e sangue. Insetos venenosos, dragonetes irritados, Goblins Arenosos e raras vezes aparecia algum Efrite furioso tentando destruir a pequena cidadela que os guardas da Rota Deserta se mataram para pôr de pé. Ele só precisava resistir até os dezesseis anos, a idade em que poderia desafiar seu pai e escolher seu destino, se perdesse se tornaria mais um guarda subordinado e ficaria preso ali pra sempre cumprindo seu dever. A opção menos honrosa era a fuga. Fugir pra longe e viver como um renegado.

Mas após a aula do velho o céu se tornou mais vermelho e as areias pareciam revoltadas como ondas do mar em fúria. O ar estava pesado, parecia que uma terrível tempestade estava vindo. Beniali sentiu as vibrações na areia e no ar. Seu pai Akali tal Murah, sabia que algo tambem estava vindo. Algo grande, perverso, assassino. Algo tão poderoso que as linhas do destino seriam alteradas de forma irrecuperável.

Akali ordenou que todos fossem para os abrigos em segurança enquanto preparava seu equipamento para a batalha. Ben estava pronto. Com uma cota de couro e suas manoplas de aço, partiu para o coração da tempestade que se formava. Ao longe era possível divisar um vulto gigantesco, se formando em meio a trovoada da nuvem gigante de areia. Dava pra sentir a imensa aura sinistra que o vulto emanava.

Na entrada da cidade Akali olhou pra o filho.

_ Nunca diferenciei você de nenhum outro irmão da nossa ordem. Você é meu filho e vejo nos seus olhos o brilho da mulher que me abandonou. Não sou um bom pai, sou um bom soldado e te criei para ser o mesmo. Não sei que tipo de demônio é aquele, mas sinto que vai ser ali que nossa sorte será traçada. Vamos a batalha agora como dois guerreiros e não como pai e filho, me mostre a sua força, me mostre o quanto você é grande e melhor que eu.

Akali correu na direção da gigantesca e trovoante nuvem vermelha com sua lança em riste, a armadura vermelha da guarda brilhando impecável e polida.

Beniali não estava entendendo nada. O que aquele velho quadrado queria dizer? Preferiu não ficar matutando isso e também correu na direção da tempestade. Um calafrio percorreu sua espinha. Algo estava muito errado. Mas não havia tempo para pensar. A forma de um terrível Efrite sobressaiu por entre as ondas de areia e poeira.

O calor era infernal, o vento correndo mais forte do que nunca.

Ben estava acostumado com isso, mas o ar estava sufocante, doía respirar. Mesmo um pouco longe a areia já invadia seus pulmões. O barulho era ensurdecedor, como milhões vozes gritando e assobiando ao mesmo tempo.

“Com certeza era o coral do Mundo Inferior cantando em altos brados”, pensou Ben.

Seu pai em segundos havia sumido no meio do turbilhão de areia, que se aproximava cada vez mais revolto e violento. Ele achou que não podia ser pior, mas sua confiança estava a ponto de cair por terra. Até então a criatura estava escondida, engolida pela tempestade avermelhada. Só pela sua sombra era possível imaginar o seu tamanho.

O garoto avançou, quase às cegas, a areia subindo cada vez mais alto, não era mais possível diferenciar o céu e o chão do deserto. No meio dos relâmpagos que riscavam abruptamente as nuvens densas, um rugido longo e gutural, profundo e indicativo de toda a fúria de uma criatura infernal, foi seguido de um enorme pilar de fogo que cortou a tempestade em direção aos céus. Como se fosse possível, o ar se tornou ainda mais quente e pesado. Ben inalou uma boa quantidade de areia quente antes de conseguir avançar.

Nesse tempo que ele observava o cenário, ouviu o barulho de metal sendo brandido com força e precisão. Era seu pai, tinha certeza. Ele reconheceria esse som em qualquer lugar. O velho já estava na luta. Para ele estava difícil conseguir se aproximar. Estava um pouco tonto e as forças escapavam por entre seus poros. As duras penas ele penetrou no rodamoinho denso e o seu queixo caiu de assombro. O que ele imaginava ser o centro do tumulto, o olho do furacão, o ninho das serpentes, era calmo e tranquilo. Não havia areia, não havia poeira. A monotonia era quebrada pelos movimentos intensos de seu pai, que saltava por todo o canto, girando com maestria a sua lança, tentando de alguma forma atingir o Efrite.

“Que criatura formidável”, pensou Ben.

O Efrite era grande, alto como uma torre de templo, o torso musculoso e poderoso, a pele de um vermelho chamejante coberta de runas incendiadas. Ben nunca tinha visto runas como aquelas, pareciam de algum dialeto esquecido de algum povo já extinto. O rosto da criatura era a fúria desenhada em grossos traços do deserto contra os homens, apesar de sua face aparentemente lembrar um rosto humano ela com certeza, já havia deixado a humanidade para trás. Grossos e longos cabelos de fogo, balançavam-se em todas as direções, como se um vento forte os sacudisse. Uma barba longa e avermelhada acompanhava todo o conjunto em movimento. Fogo saía pelos olhos e pelas narinas. Era mesmo um ser em toda plenitude da fúria, disposto a destruir tudo que atravessasse seu caminho. Da cintura para baixo havia apenas uma nuvem avermelhada, que mesmo a certa distância, era possível sentir o calor que emanava.

O chão estava como vidro. O calor foi o suficiente para transformar a areia. Ben estava tonto demais para ter certeza se estava sonhando ou não. Sabia que tinha que lutar, mas mal conseguia se manter em pé. Sabia que o pai estava em perigo, a criatura era poderosa demais, até o momento o velho conseguiu se esquivar da maioria dos ataques da criatura, mas já estava visivelmente cansado e a força dos seus golpes já começando a diminuir, era visível que ele não causara nenhum dano ao monstro até o momento.

Ben tentou controlar a respiração, aquele era o seu momento. A hora em que mostraria ao pai que era digno de si. Com um salto se pos entre o pai e a criatura. Por um segundo viu o rosto, suado e sujo dele exultante, parecia feliz em estar lutando. O garoto sorriu enquanto esquivava de um murro potente e caloroso de boas vindas da criatura. Tentou atingi-lo com sua lança, o metal ricocheteou na pele do Efrite com tanta força que um formigamento subiu por suas mãos até o braço. Em instantes notou que seus golpes não faziam diferença.

_Pelo menos, - gritou seu pai – paramos o seu avanço. Ele não está indo mais para a cidadela.

Ben não tinha a mesma noção e experiencia de combate que seu pai. Ele sabia que ia demorar muito tempo para se igualar a ele nesse quesito e logo ele também já estava ofegante. Tentou não desperdiçar golpes, direcionando-os em todos os pontos vitais de uma criatura normal, mas tudo se provara inútil. Além de casado, a lâmina da sua lança estava a ponto de partir. Além de força descomunal a criatura atacava com fogo, dificultando o seu controle de respiração. Tentou alguns ataques em conjunto com o pai, mas nada feria o demônio.

Ele viu Akali desferir um golpe com a lança bem dentro de um dos detalhes de runa, ela ardeu em chamas mais intensas um segundo antes da lâmina se partir e o velho ser atingido por um poderoso soco flamejante. Ele foi arremessado como um fardo leve, o sangue esguichando da sua boca e os olhos revirados. Ele rodou no ar, tentando encontrar um ponto de equilíbrio, mas caiu com força e desajeitadamente no chão. Num instante saltou para perto dele.

_ Vai seu tolo! – falou o velho com a voz fraca entrecortada por tosse de sangue. -  Ou fuja agora, ou morra lutando.

Ben se levantou. A criatura se aproximava lentamente, disposta a esmagar os insetos que ousaram desafiá-la. O garoto não estava disposto a morrer. Ele tentou se concentrar nas runas no corpo da criatura. Com certeza deveriam dizer algo, o problema era fazer isso se esquivando e defendendo dos golpes perigosos do Efrite. Se é que fosse possível, o monstro estava mais furioso ainda diante de tanta ousadia. A cada golpe, o garoto anotava mentalmente uma runa, parecia estranho, mas, naquele momento crítico ele entendia cada uma delas.

“Acordado”, esquiva, “obediência”, estocada e rolamento. “Destruir”, respira e salta para o lado. “Passagem”, um milésimo de segundo para respirar, cabelos queimando, salto para trás, “Senhor do Chamado”, soco flamejante recebido, dificuldade para levantar. aproximação de um sopro de fogo, “sacrifício de libertação”. Essas foram as runas que conseguiu ler, aparentemente fora de ordem. Ben estava no chão, achou que era o fim, não conseguiu entender, achava que era forte, que poderia ser livre, descobrir o mundo e fazer fama, mas era fraco e agora com seu pai no chão e ele a beira da morte, todo o seu sonho ia para a pós vida com ele.

Diante da labareda de fogo, Ben tal-Murah desistiu, entregou a alma aos deuses. De relance viu uma sombra a sua frente.

_ Pai! - gritou rouco.

O velho estava diante de Ben com os braços abertos.

“Se mantenha acordado

Obedeça ao Lorde do Chamado,

Dominação e Destruição

Essa será sua missão,

Libere a passagem,

Destrua a paisagem,

Abra caminho.

Só terás libertação

Com o sacrifício da redenção”

Essa foram as últimas palavras dele antes de ser engolido pelas chamas. Ele sorria, pela primeira vez demonstrando seu amor pelo filho que sempre rejeitou. Ben gritava, mas não conseguia mais ouvir a própria voz. Seu pai se sacrificara por causa de sua incompetência e fraqueza. Ele apenas assistiu o pai ser incinerado pelo fogo intenso do Efrite.

Mas algo fora dos padrões aconteceu. Assim que o fogo cobriu o velho e o consumiu completamente, não deixando mais qualquer traço de sua existência, o demônio começou a se retorcer como em agonia intensa. Sua nuvem começou a diminuir e seu calor atingiu o ápice. A criatura berrava loucamente, se contorcendo cada vez mais. O fogo dos seus olhos e suas narinas jorrava com mais intensidade.

Uma explosão de energia insuportavelmente quente aconteceu, atingindo o garoto, machucando seus olhos e queimando a sua pele. Uma chuva de areia ameaçava enterrá-lo vivo. Parecia que toda a magia do Efrite havia desaparecido. Em seu lugar uma pira brilhava em fogo azulado. Um sabre cravejado dos mesmos tipos de runas flutuava no meio da pira. Lutando para vencer a areia que caia sobre sua cabeça o garoto, que já não conseguia sentir o próprio corpo, enfiou a mão no fogo azulado e puxou a pesada espada. Suas mãos começaram a queimar e ele sentiu uma dor acima de todas as que sentia pelo corpo. Uma runa foi gravada a fogo no seu braço. A runa da fúria.

Seu pai, o único homem que odiara, que respeitara, que amava apesar de tudo e sempre o havia julgado achando que ele o desprezava como filho, se sacrificara para salvá-lo. Só teve tempo de sentir várias mãos o puxando. Eram os soldados da cidadela que vinham resgatá-lo da chuva de areia.

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