O draco dá uma leve baforada e encara Allatês de perto, descendo sua enorme cabeça com barbatanas e chifres até a altura do velho amigo:

_Hum! Deve ser algo muito sério, desembucha velho sábio, como posso ajudá-lo? – “Velho sábio” era uma maneira carinhosa de se referir ao amigo.

_Karbeth, tenho tido fortes pressentimentos ruins, a angústia tem sido mais forte a cada dia e não consigo descobrir qual o motivo desse mal-estar. – Allatês respira fundo, levanta a cabeça e continua. _Quero apenas pedir que redobre sua atenção, fique mais atento do que de costume, e mantenha seus amigos dracos igualmente em alerta.

_Não se preocupe meu bom homem estaremos atentos; - O draco observa Allatês, com a expressão de desânimo colocando as mãos para trás, como se estivesse algemado, e pensativo passa a andar em círculos; _É meu amigo humano, os tempos são outros, tempos difíceis, meu conselho é que “todos temos que estar preparados para o pior”.

_Concordo com você, vamos ficar atentos e dobrar nossos cuidados. – Allatês olha para o draco, que está com as narinas bem próximas dele, escapando uma leve fumaça por ambas, o draco sorri e se despede.

_Agora vou indo, mas amigo, sempre que precisar me chame, pois quando eu precisar lhe chamarei. – Depois de se despedir deu um impulso e bateu asas, subiu como um foguete voou em direção á oeste, fez uma longa curva á direita e retornou em um rasante deixando um rastro de vento e poeira, subiu em linha reta, desafiando a gravidade, e sumiu por entre algumas nuvens.

Ao voltar ao seu aposento pedregoso o draco fica pensativo e absorve a preocupação do velho sábio, pois sabe que Allatês tem uma percepção aguçada do que possa acontecer, e se o velho está tão preocupado a ponto de lhe acordar no meio da noite é porque o assunto é muito sério.

Allatês pensativo retorna até a “Casa Grande”, ele está só, esquenta água para preparar um chá com ervas, acende o forno com lenha, sua mente viaja por pensamentos de preocupação, quando escuta um barulho, um lento ranger na porta principal, ele para o que está fazendo e se vira, a grande porta de madeira maciça se abre, deixando entrar os primeiros raios da alvorada juntamente com a sombra de “alguém”.  Quando a porta termina de abrir e encosta na parede oposta, Allatês abre um sorriso, deixando no passado sua feição de preocupado, ele percebe que é Emmerif, sua querida neta, sorridente ele exclama:

_Bom dia minha querida bruxinha!

Emmerif corre para abraçá-lo.

_Bom dia vovô!

_Não é muito cedo para uma jovem bruxinha estar de pé? – Allatês sorriu; _ Venha, vamos preparar um maravilhoso desjejum, logo o pessoal chegará e você sabe, são uns comilões.

Emmerif sorriu e concordou balançando a cabeça, enquanto preparavam tudo, eles cantavam, Allatês fazia piadas e dançava, sorriam muito. Os primeiros pães estavam sendo retirados do forno, o ancião preparou um cantinho em uma mesa para ele e a neta e se sentaram, por um breve instante Allatês deixou que seu rosto fosse novamente tomado pelo semblante de preocupação, e sua neta não deixou passar despercebido.

_Vovô! Está acontecendo algo?

Ele ficou meio sem jeito e respondeu.

_Não minha flor do campo, não está acontecendo nada, tome seu chá.

Emmerif insistiu.

_Está acontecendo sim, você não pode esconder nada de mim. – ela colocou as duas mãos no rosto do avô e o encarou nos olhos; _Diz pra mim o que é, quem sabe posso ajudá-lo?

Allatês se rendeu.

_Certo, certo, sua bruxinha esperta, não consigo esconder nada de você mesmo. – Ele tomou um gole de chá que arrepiou todo seu corpo, estava faltando mel, balançou a cabeça rapidamente, como um cão que tenta se enxugar quando está molhado, a menina sorriu e ele continuou; _O vovô tem estado muito preocupado nos últimos dias, talvez não seja nada, talvez seja a idade que chegou.

Emmerif sorri levemente e diz:

_Já se aconselhou com os dracos?

_Sim princesa, falei a pouco com Karbeth e infelizmente ele não pode me ajudar, o jeito é se prevenir e esperar. – Allatês sorriu e deu um salto da cadeira cantando... “_ prevenção é a solução, prevenção é a solução... – Pegou Emmerif no colo segurou sua mão e como se tivessem a mesma altura e rodaram pelo salão dançando, ele girava em passos de valsa e cantava “..._prevenção é a solução...”

Após alguns instantes ele parou e sentou no primeiro banco que encontrou, exausto ele disse quase sem fôlego:

_Minha linda, o Vovô não tem mais idade para bailes! – Sorriu enquanto Emmerif sentava em um banco a frente.

_Tenho uma ideia vovô, porque o senhor não usa a magia da necromancia? Li em um de seus antigos pergaminhos sobre este feitiço, dizia que é possível falar com os mortos e eles podem dar informações do futuro.

_Muito bem pequena feiticeira, agradeço sua sugestão, vou pensar no assunto, agora deixe de “espertalhices” e vá chamar sua mãe para o desjejum. – Deu um carinhoso beijo na bochecha rosada de Emmerif e foi lavar os copos.

Enquanto Allatês lavava os copos pensava no que Emmerif havia dito,

“_Não é que ela teve uma boa ideia? Pena que tal prática é um desrespeito aos mortos, esta é uma lição que logo terei de explicar À Emmerif.”

Os dias passam lentos, é uma época de grande estiagem que acomete o rio Aamitaru, há uma grande baixa do nível de seu volume d’água, o que passa a ser mais uma preocupação aos líderes de Edafir. Allatês passa por dias difíceis de preocupações, uma angústia toma-lhe o peito e em certa noite todo esse mal-estar lhe afeta o sono e o acomete a um pesadelo.

“A escuridão toma todo o reino, sem luas e sem sol, apenas escuridão, flashes de centenas de rostos angustiantes e ensanguentados piscam rapidamente, impossível identificar a quem pertencem, sons de gritos e gemidos, choro de mulheres e crianças, um caos alucinante que vai lhe arrancando suor, tilintar de espadas, zunir de flechas, surgem também enormes criaturas passando rapidamente de um lado á outro, algumas dessas criaturas pareciam ser dracos, mas, outras não eram possíveis identificar com exatidão, apenas que todas as criaturas tinham ódio, e de repente o silêncio, no escuro absoluto uma risada maléfica incessante”.

Allatês se debate de um lado a outro até que consegue escapar daquela tortura, acorda em um salto, encharcado em suor, o coração á ponto de sair pela boca, ofegante ele vai tentando se acalmar, retomando a consciência que se tratava de um pesadelo, respira fundo e se senta na cama, fica ali por alguns minutos até se acalmar, se levanta e vai direto esquentar um chá, senta-se e enquanto toma a bebida morna tenta entender o pesadelo. Tratava-se de algo muito ruim que afligiria não uma pessoa, ou uma família, ou uma cidade, mas muitas pessoas e havia alguém muito feliz e satisfeito com tudo aquilo.

Após alguns momentos o ancião acende a lareira e queima uma espécie de ramalhete seco que solta um aroma agradável por toda a casa, ele senta ao chão com as pernas cruzadas e passa a meditar, o futuro é impossível de prever porque qualquer detalhe ou acontecimento, o altera, ele ainda está sendo escrito, o que faz determinar os fatos futuros é o presente, mas uma certeza ele teve, muitos passariam por um período de sofrimento e esse tempo estava muito próximo de chegar.

Sem ter muito que fazer a respeito de seus pesadelos, sua possível premonição ruim, Allatês passa a se dedicar com mais ênfase, se é que isso fosse possível, aos problemas sociais de Zamorra, era preciso conscientizar a população sobre a necessidade de economizar água devido a atual escassez, era preciso criar métodos de irrigação para a lavoura que fossem mais eficazes e gastassem menos água, para esse assunto Allatês buscou a ajuda de Ruffos.

Allatês caminha pelas ruas de Zamorra e percebe que a população está tranquila, apesar dos tempos difíceis, essa talvez fosse a maior virtude de seu povo, a paciência para transpor momentos conturbados. Ele vai se aproximando mais ao leste da cidade até chegar à casa de Ruffos, mais parecia um galpão, o lugar tinha o pé direito alto, mais de quatro metros de altura e a porta frontal pelo menos uns vinte metros de largura, o ancião sorria sempre que ia visitar seu amigo, pelos exageros. No centro da grande porta de madeira frontal havia uma argola de metal grande e pesada apoiada em uma chapa de metal igualmente grande, Allatês pegou a argola e com vontade a bateu na chapa, o barulho de metal batendo um no outro era altíssimo, impossível um deficiente auditivo não escutar. Momentos depois uma pequena janela acima da argola se abre e um grande olho esbulhado e castanho claro surge, em seguida um gemido de espanto e um tilintar da tranca da porta.

_Mestre Allatês! Quanta honra recebê-lo aqui em meus aposentos! – Ruffos não continha sua alegria enquanto abria a porta. Ele era solteiro apesar de seus trinta e quatro anos, quando adolescente namorara uma jovem local, uma linda garota que muitos achavam merecedora de alguém melhor que ele, eles eram apaixonados e namoraram por dois anos, quando uma doença desconhecida se abateu sobre a garota, rapidamente ela ficou acamada e perdera o controle das pernas, sem poder se locomover passou a depender da família, amigos e do próprio Ruffos para se deslocar e conseguir fazer suas coisas, então o jovem apaixonado passou a dedicar a maior parte de seu tempo criando invenções que facilitassem a vida de sua amada entre elas uma cadeira com rodas, todas as quatro rodas tinham o mesmo tamanho e eram fixas, o que dificultava muito movimenta-la, porém, mesmo assim por um breve período ajudou bastante a garota no dia a dia, logo depois a doença se agravou atrofiando outras partes de corpo como os braços e alguns órgãos, até que seu pulmão atrofiado a impediu de respirar. Após esta tragédia Ruffos se isolou e passou a se dedicar com mais afinco em criações que ajudassem na rotina das pessoas. Allatês tinha um carinho muito grande por ele e o admirava pela força espiritual e criatividade.

_Sim Ruffos, sou eu. – Allatês sorri ao ver o inventor.

_Vamos entrando mestre! Fique à vontade! – Ruffus cordialmente recebia Allatês que observava um monte de cacarecos por todo lado enquanto entrava, havia muitas coisas espalhadas por todo lado, era tudo desorganizado. _Aceita um chá?

_Não se preocupe, acabei de tomar. – Allatês queria evitar trabalho ao seu amigo. _Vejo que aumentou bastante o número de cacarecos por aqui.

_Ora mestre, cacarecos? – Ruffos ficou um pouco sem jeito. _Prefiro chamar de material de trabalho.

_Me desculpe, é que eu não sei como chamar isso tudo, mas você rotulou muito bem, “material de trabalho”. – Allatês sorriu e partiu para o assunto principal. _Ruffos, vim para pedir-lhe ajuda.

Ruffos ficou apreensivo com as palavras do ancião.

_Ajuda?

_Isso mesmo, como sabe, estamos passando por um momento de escassez de água muito grande e nossas lavouras agravam essa situação com um desperdício enorme de água. – Allatês olha no olho de Ruffos como se desafiasse o homem. _Preciso que você desenvolva um sistema de irrigação que seja eficiente e econômico.

_Acho que é possível mestre. – Ruffos falava já pensando no assunto, no poderia fazer.

_Ruffos! Vejo que você tem um grande acúmulo de ferro por aqui. – Allatês falou enquanto olhava para um acumulado de ferragens no canto do barracão.

_Sim, sim, mestre, tenho bastante. – Ruffos fica um pouco sem jeito achando que vai tomar uma bronca por acumular tanta coisa.

_Você sabe fabricar armas?

_Armas? – Espantou.

_Sim, armas. – Allatês fica um pouco apreensivo, pois tem medo que esta conversa se espalhe pela cidade e de alguma forma deixe a população preocupada, mas não consegue segurar e vai falando. _Sabe aquelas armas de ferro, tipo um porrete com uma bola de pontas, pontas de flechas, espadas, essas coisas.

Com expressão de espanto Ruffos responde com receio do que pode vir depois.

_Sim mestre, sei fazer.

_Seria de extrema importância que você, juntamente com Carthlan, o ferreiro fabricassem algumas armas com essa ferragem.

_Tem certeza mestre?

_Claro que tenho. – Allatês tenta ter cuidado, pois tudo deve ser feito com descrição. _Peço que vá falar com Carthlan sobre isso, se ele tiver dúvidas, pode me procurar, mas é imprescindível que vocês sejam extremamente discretos em relação a este assunto.

_Claro mestre! Pode deixar.

_E não se esqueça do meu sistema econômico de irrigação.

_Sim, claro.

Allatês se despediu e seguiu para a lavoura, estava muito pensativo, seu povo era pacífico, não sabiam o que era uma guerra, aliás, a maioria dos povos de Maddems eram pacíficos, pouquíssimas províncias chegaram a ter que lutar com pequenos grupos de desordeiros. Isso era preocupante e talvez fosse necessário que este assunto chegasse até seus conselheiros para juntos pensarem em algo. O fato é que, Zamorra sempre foi um lugar tranquilo e era praticamente impossível imaginar qualquer tipo de brutalidade vinculada a aquele paraíso, contudo, apesar  de não vivenciar qualquer tipo de maldade, Allatês sabia muito bem do que se tratava tal sentimento, era capaz de distinguir o bem do mal e acima de tudo sabia que onde há o bem há o mal, considerando que Zamorra é um lugar onde flui o bem com excesso, quando o mal surgir ali, certamente será com a mesma intensidade.