A Rosa Perfeita
A Rosa Perfeita
Por: Cristina Valori
Capítulo 1

Sara passou o dorso da mão pelo rosto banhado em lágrimas. Percebeu a mancha negra deixada pelo rímel. À prova d’água uma ova! O pensamento desconexo com a ocasião fazia parte do seu mecanismo defesa. Quando menina, principalmente nos momentos onde broncas lhe eram dirigidas, a técnica a carregava para tantos mundos imaginários que, às vezes, sua mãe necessitava de algo mais forte do que um leve som de pigarro, para chamá-la de volta à realidade. Exatamente como o advogado à frente fazia.

— Menina Sara, está prestando atenção? — A intimidade condizia com os anos prestados à família Tisiros. Duas gerações desfeitas num piscar de olhos. Na verdade, em vários piscares, sendo mais honesto. Ele encarou a menina, agora mulher, sentada no outro lado da sua mesa. Ombros caídos, face voltada para o colo, cabelos lisos que escondiam seus verdadeiros sentimentos... Ela vai me dar trabalho, o senhor de aparência solene e bigodes com as pontas voltadas para cima, ponderou.

— Sim. Sim. Pode continuar...

A inconsolável mulher de vinte anos deixou de lado o diálogo mental que travava com a vendedora da loja de cosméticos, para fixar sua atenção no roliço amigo da família. Ele precisa se cuidar mais, seu colesterol deve estar alto. A bronca pelo desvio veio de si mesma quase no mesmo instante. Empertigou o corpo e forçou a mente pelo caminho solicitado.

— Resumindo, você herdou tudo. Desde a remota cabana de férias na ilha particular da família, até a presidência da rede de restaurantes. — Doutor Castelo baixou os documentos para visualizar a mais nova herdeira de uma fortuna com vários dígitos depois da vírgula.

Sara respirou fundo. Tanto tempo presa naquela sala, ouvindo os últimos desejos do seu avô, para descobrir o que ela já tinha conhecimento. Não havia mais parentes vivos, ou tecnicamente próximos e dignos da confiança do senhor Vargas.

Progênita de pais falecidos, Sara fora criada pelo avô contraditório: rigoroso com as regras, mas coração mole diante do olhar entristecido da neta. Filha única, assim como seu pai, Lauro, ela não possuía tios, primos, amigos íntimos ou até mesmo algum parente de segundo grau. Claro que da parte de sua mãe, Bárbara, a conversa era outra. Ali, Sara, tinha uma gama de pessoas mesquinhas e interesseiras. Porém, o senhor Vargas tratou, desde o casamento de Lauro, quando todos acreditavam se tratar de um ingênuo trabalhador assalariado, afastar os maus agouros. Uma história bonita. Recheada de acontecimentos típicos de filmes românticos: mulher se apaixona pelo garçom; a família rejeita o intento; eles fogem e se casam; ela é deserdada; para depois descobrir que o moço de avental branco sempre encardido fazia pesquisas de campo para o pai no restaurante da família.

— Ainda não terminei a faculdade. E tenho quase certeza de que não estou apta a assumir a presidência.

Sara falou com a sua voz mais centrada. Apropriar-se daquele papel, estava traçado por ela. Não tão cedo, claro. Muito menos por vontade própria. Contudo, seu senso de responsabilidade e gratidão pelo carinho recebido do avô a guiaram na escolha da carreira. Administração. Quando na verdade, Botânica era sua paixão. Plantas, terra, fertilização, flores... qualquer item, desde que suas unhas estivessem manchadas de terra, e as palmas das mãos marcadas pelos espinhos.

— Não se preocupe, menina. Seu avô pensou em tudo. O conselho continuará tomando as decisões, até você assumir. Ele me passou uma procuração, dando-me poderes para intervir caso haja algum problema mais grave. Além, é claro, de que você também pode exercer o seu direito, no momento que achar mais oportuno. — Sara relaxou no encosto da cadeira. Doutor Castelo levou os dedos aos olhos, apertando-os. Sua enxaqueca estava pronta para assumir o posto.

— Então... — Sara levantou-se. Tudo resolvido, era hora de regressar para a segurança do seu quarto e chorar a perda do seu melhor amigo, concluiu. Preciso encher o tanque de combustível do carro, não posso esquecer. — Como essa parte já está acertada, tenho um pedido a fazer.

As lágrimas haviam cessado, mas seu coração estava apertado de saudades. As imagens dos últimos dias do avô se misturavam às lembranças vividas ao lado dele. Brincadeiras, broncas, abraços afetuosos e risadas no final da noite. Amor e atenção incondicional, mesmo que o senhor Vargas tivesse que ficar até altas horas, escutando as reclamações da neta e esquivando-se dos conselhos sobre meninos.

— Não posso mais ficar naquela casa... — O advogado meneou a cabeça. Uma requisição já imaginada. Mandou uma mensagem para esposa, avisando que chegaria mais cedo. Iria de táxi, pois uma de suas vistas costumava ficar fora de foco, quando a dor era intensa.

— Tudo bem, Sara. Ele também previra essa sua vontade. — Castelo tirou um envelope da gaveta e entregou a ela. Notou as unhas marrons. Outra vez ajudando o jardineiro, ele concluiu.

— Nem mesmo depois de... — Sara clareou a garganta, pegou o documento e emitiu um sorriso amarelo. — Ele perde a oportunidade de mostrar a sua astúcia.

Castelo imitou o gesto. Senhor Vargas era esperto demais para o próprio bem, ele pensou.

— Nesse envelope tem o endereço de um apartamento que faz parte da herança. Seu avô mandou arrumá-lo no início do ano. Talvez precise de uma boa faxina e de mais alguns móveis. Fica próximo da sua faculdade, fácil acesso, boa vizinhança. Diferente de onde você mora, nesse local, as despesas ficarão por sua conta. Mas acredito que não haverá problema, pois, o seu avô também providenciou para que o seu salário fosse alterado para suprir todas as suas necessidades.

Sara não se envergonhava de ganhar salário, vulgo mesada. Ela era uma ótima neta, fazia trabalhos voluntários, ajudava o avô nos trâmites burocráticos, quando ele trazia serviço para casa, trabalhava como pesquisadora de campo nos restaurantes e, para deixar Vargas orgulhoso, não esbanjava dinheiro e não possuía qualquer veia esnobe em seu corpo.

— Obrigada. — guardou o documento dentro da bolsa de tecido amarela.

— Quando pretende se mudar?

— Talvez amanhã. Assim terei tempo para organizar os meus pertences. — O mais rápido possível, seria a resposta certa. No entanto, achou melhor omitir o seu desespero.  Esqueci de lavar os cabelos hoje. 

Ocultando os verdadeiros sentimentos, Sara levantou-se e estendeu a mão na direção do advogado. Seu vestido longo de verão estampado farfalhou com o movimento de suas pernas compridas. 

Castelo rejeitou o cumprimento formal. Deu a volta na mesa e abriu os braços para acolher a menina que ele viu crescer. Cinco centímetros mais alta do que ele, Sara apoiou o queixo no ombro protegido pelo terno e suspirou pesadamente. Nada de choro. Chega por agora. Ela afugentou as lágrimas.

— Sei que está no testamento, mas, independentemente das questões jurídicas, quero que você me ligue se precisar de algo, Sara. Qualquer assunto. Entendeu? — Ele se desvencilhou para fitar os olhos azuis embaçados pela tristeza. Enxergou a dor em cada canto do rosto ovalado. O viço havia deslizado do seu sorriso se perdendo pelas circunstâncias da vida. Seus pais, sua avó, seu avô... quantas perdas mais uma menina de apenas vinte anos poderia suportar sem tornar-se uma pessoa amargurada, ele se perguntou.

— Pode deixar. — Sara deu um beijo na bochecha fria do advogado. Sorriu sem vontade e dirigiu-se para saída. Hora de fazer as malas e seguir para o novo apartamento. Ele está com mau hálito, foi seu pensamento quando saiu do escritório.

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