Capítulo 3

Rosas...O quarto dela cheirava a rosas, as mesmas que estavam sobre a cômoda quando ele entrou. Depositando-a na cama, ainda desmaiada. A lama que fatalmente denunciaria que ela estivera fora, e como esconder aquilo? A mente dele trabalhava numa solução, nos violetas que buscavam por respostas no cômodo. Silencioso, como as sombras que se apossavam do quarto, ele abriu a cômoda, tomando uma peça limpa de dormir entre os dedos, na certeza de que se a criada a acordasse nas primeiras horas do dia, nada encontraria além da moça entre os lençóis macios. Lençóis sobre os quais ele se sentou quando começou a despi-la. Quando a sua pele fria tocou a quente dela, fazendo-o estremecer. Os dedos correndo lentamente sobre o corpo de menina exposto, como o desejo tornava seus olhos tão intensos e rubros, sentindo o cheiro de sua inocência nas linhas do quadris, nas curvas dos seios, que ele tentava, em vão, ignorar o conhecimento. A boca se aproximou de seu pescoço, inalando o perfume doce, fazendo-o hesitar e fechar os olhos. Abandonando seus instintos. Ela não era igual as outras, seria tão fácil tê-la sem chance de defesa... Mas ele não era assim, nem o que sentia ao vê–la entre seus dedos parecia ser aplacado como das outras vezes, somente por beijos e gemidos. Envergonhava–se até mesmo de pensar isso, e o mais rápido que suas mãos o permitiram, Alejandro a vestiu.

Cobriu–a com a coberta, afastando-lhe a mecha de cabelo preto do rosto, apreciando seus traços. Talvez fosse melhor a ignorância dos fatos para um deles, ele decidiu, e do carinho no rosto se fez o toque do esquecimento. Ele partiu minutos depois pela janela, levando a única lembrança daquela noite consigo... A camisola manchada de lama.

...xxx...

Onde estava? – Rámon o interpelou assim que o viu entrar na cabine. Os olhos presos ao tecido entre os dedos do irmão, que foi depositado sobre a mesa. – E o que é isso?

Uma camisola – ele rebateu cínico, retirando o laço do colarinho.

Isso significa...

Significa que a moça está em sua cama, segura – interveio ríspido, deixando o casaco sobre a cadeira ao seu lado. – Nada além disso.

Achou a resposta para o que ela queria?

Alejandro não respondeu, desabotoando o colete com rapidez.

Seu silêncio não é reconfortante – ironizou o irmão ao fitá-lo atentamente.

Seu descaso com a moça é menos ainda.

Ela o procurou porque você a induziu, como sempre faz, Alejandro – rebateu firme. – Por uma noite ou duas você se permite saciar seus desejos humanos, e é só. Tudo acaba entre lençóis... O que há de errado com essa? A virgindade lhe assusta?

Cale–se... – Ele fechou os olhos, murmurando baixo.

Eu vi o modo como a protegeu de Gaston – Rámon continuou sem se intimidar com o aviso. – Vi seus olhos quando ela desmaiou em seus braços. Por que não agiu como sempre?

Os punhos cerraram sob a manga da blusa branca em busca de controle.

Eu não vou permitir que rompa nossas leis! – esbravejou.– Que se exponha ao perigo por uma mulher qualquer! Há muito em jogo, sabe disso melhor do que eu...

O movimento de Alejandro foi tão rápido e preciso, que Rámon foi erguido do chão com apenas uma mão do irmão fechada ao redor de seu pescoço. Os olhos rubros sobre os pretos dele, e os dentes pontiagudos à mostra antes de sentenciar:

Eu jamais a machucaria, entendeu?– Pretos surpresos sobre ele. – E, também, jamais a trataria como as outras. – Arfou ferozmente e devolveu o irmão ao chão enquanto escarlates voltavam aos violetas.

Eu lhe disse para partir... – Olhou Alejandro se sentar na cama e passar as mãos longas pelos cabelos escuros, inquieto. – Por que não me deu ouvidos?

Porque já era tarde demais.

Violetas fitavam a madeira escura sob suas botas, não conseguia esquecer a inocência da menina.

...xxx...

Joaquim! – esbravejou pela quarta vez em menos de dois minutos. – Onde raios esse menino se enfiou?

Piérre ia e vinha da porta do escritório para sua mesa, agitado.

Joaquim!

O menino surgiu afoito pela fresta, empurrando-se para dentro com o rosto assustado. Possivelmente, estaria corado se sua pele permitisse tal visualização aos espectadores da cena, mas nada se notava além da respiração ruidosa, que demonstrava a corrida empreendida por ele até ali.

Até que enfim! – reclamou o governador. – Ande logo, quero que entregue essa correspondência no porto, me entendeu?

Os passos no corredor se tornaram furtivos ao detectarem a palavra porto. Pés pequenos que deslizavam pelo assoalho e se detiveram diante da porta entreaberta. Aquela era definitivamente a notícia do dia e, de onde estavam, eles se mantiveram atentos ao final da conversa.

Não quero erros, compreendeu? – Passou às mãos do menino, o pergaminho selado pelo brasão. – Isso chegará as mãos do Conde de Aramayona e você só retornará com a resposta do mesmo...

O menino assentiu firme, apertando o envelope entre os dedos.

Alguma dúvida? – Castanhos estreitaram sobre ele.

Não, senhor Duque. – Os lábios grossos se moveram rápidos assim como os pés calejados, e deixou o aposento numa concordância de Piérre.

Mal fechara a porta atrás de si quando uma mão fina e delgada o puxou para o canto escuro do corredor, onde se abrigara. Metida numa calça larga, os olhos de Ellen brilharam nos dele.

Me dê isso...

Seu pai me mata. – Negou com a cabeça, escondendo o envelope atrás de si.

Vamos, Joaquim, me dê – ela exigiu num tom acima do anterior, ainda que sussurrado.

O que tanto quer com aquele Conde?

Já lhe disse, eu quero pedir-lhe desculpas por meus maus modos – sentenciou severamente, a mão estendida na direção do menino. – Deixe que eu entrego isso pessoalmente e papai nem saberá de nada.

Ele revirou os olhos contrafeito, a carta quase tocando os dedos dela quando ele interrompeu o gesto e rebateu:

Eu vou junto.

Não confia em mim? – Ela sorriu, escondendo o envelope no decote da blusa branca.

Não – afirmou o menino. – Muito menos nele.

Então está feito. – Tomou-lhe a mão entre as suas, puxando-o. – Vamos logo.

Não vai por um vestido?

Formalidades demais para quem já deveria estar a caminho do porto. – Ela sorriu novamente sem que o menino visse, mas ainda o arrastando pelo jardim.

Você não parece a filha de um nobre – ele protestou enquanto se escondiam entre os teixos e deixavam a propriedade.

Não se cansa de dizer isso? – retrucou ao abrir e fechar o portão. – Eu não me importo com o que pareço.

Ele não vai achá-la bonita – finalizou decidido, Joaquim.

Ela estacou diante das palavras dele... Aquilo remotamente lhe era preocupante? Por que agora cogitaria sobre isso? Seria pela lacuna em branco que sua mente parecia ter adquirido durante a noite? Ela bufou, ironizando:

O encontro dele será com papai, não comigo. – E voltou a andar seguida de perto por Joaquim.

...xxx...

O homem parado a sua frente a fitava num misto de curiosidade e preocupação quando ela insistiu:

O Conde não se encontra? – Fitou, por sobre os ombros dele, a porta que ostentava o brasão dourado.

Eu vou verificar se ele está acordado – rangeu entre os dentes. – Espere aqui, Lady de Telliard.

Rámon fez questão de frisar-lhe o nome mesmo que seu olhar, correndo sobre ela, quisesse negar-lhe o título. Num movimento rápido, desapareceu pela porta.

Esse navio me dá arrepios – segredou Joaquim ao ouvido da amiga.

Ele me fascina – murmurou Ellen entre os lábios, os olhos na porta.

O Conde? – indagou com malícia o menino.

O navio... – ela replicou, impaciente.

... xxx....

Ela veio só? – a voz baixa e pausada preenchia a escuridão a sua volta.

Não, está com o menino... o tal de Joaquim – Rámon explicou, olhando-o atentamente. – Peço para voltar mais tarde? Ela insiste que tem que entregar o bilhete em mãos.

Mande–a entrar...

Como? – o irmão disse aturdido. – Ainda é muito cedo, você quase não descansou...

Eu disse para deixá-la entrar. – Ele estava de pé, fechando metodicamente o casaco sobre o colete escuro, como sempre.

Mas Alejandro...

É uma ordem, Rámon. – Atou o laço ao colarinho. – Preocupe-se com os preparativos para a viagem, eu cuido dos negócios.

Como queira – consentiu num suspiro forçado, deixando-o na escuridão da cabine.

...xxx...

A porta se abriu lentamente, para que pretos caíssem sobre ela, sérios.

Entre, Lady de Telliard...

Merci. – Chocolates brilharam nos pretos enquanto Joaquim a seguia.

O braço forte, no entanto o impediu de seguir adiante, estirado ao longo do portal.

Só a Lady. – A porta se fechou. – Nós voltamos daqui.

O menino consentiu assustado, não lhe restavam alternativas.

Os pés que paralisaram ao ouvir a porta se fechar, envolvida pelo aroma de cravos e sombras, esperando os olhos se acostumarem à pouca luz. Apenas as velas iluminavam a cabine, dando-lhe, o que Ellen classificou de um ar de mistério.

Bonjour, mademoiselle de Telliard.

A voz a arrepiou, ainda que não visse o Conde.

Bonjour, Conté – ela devolveu, esperando que ele aparecesse.

Seu pai pediu que viesse aqui? – Novamente a voz a envolveu como veludo, mas desta vez ela o distinguiu na cadeira atrás da mesa ao seu lado. Calmo, as pernas cruzadas e os cabelos pretos caídos sobre os ombros.

Sim... – Estendeu-lhe o envelope, que foi pego pelos dedos longos de Alejandro. – Pardon pela hora, vejo que o tirei da cama – observou, assim como os seus olhos paravam sobre os lençóis desalinhados da peça de madeira. Sem evitar que ele percebesse como chegara aquela conclusão, e o Conde curvou a linha dos lábios longe do olhar dela.

Ellen analisou tudo a sua volta enquanto esperava que o Conde lesse a carta, absorvida pelo silêncio que inevitavelmente acompanhava-lhe o gesto. Sua curiosidade era tanta e tão pueril, que não notou que há muito os olhos dele já estavam sobre ela. Então era ali, o refúgio do Conde? Engraçado, esperava algo mais pomposo, a não ser pelo veludo verde-musgo das cortinas, os móveis eram simples, inclusive o piano de armário, ao canto. Ela fitou a peça com interesse, ele tocava? Por segundos se perdeu nesse pensamento, ela simplesmente fugira de todas as aulas daquele instrumento.

Eu irei à noite – ele disse suave, fazendo–a voltar o olhar até si. As mãos sob o queixo, na posição que lhe parecia fixa. – Aqui está a resposta. – Estendeu-lhe o pergaminho.

Como ele conseguira fazer isso tão rápido que não lhe percebera os movimentos? O piano... Desviou o olhar até a peça de novo, demorara muito tempo analisando-o.

Toca? – Era ela, agora, que era analisada por violetas. Tremeu.

Não...

Por que? O som do piano não lhe agrada? – Ele não pareceu querer abandonar a conversa. Admirava cada traço da beleza dela, até mesmo aquela que ele sabia estar por baixo das roupas de menino. Lembranças da noite anterior... Ergueu-se.

Eu nunca gostei do convencional... – Ellen rompeu o silêncio.

Posso? – ele indagou quase ao ouvido dela, assustando-a. Não lhe percebera o movimento de novo.

Ela assentiu sem entender por que, talvez apenas para não fitá-lo... Envergonhava-se de parecer um menino. Devia ter posto o vestido, como observara Joaquim. Alejandro deslizou até o piano, abrindo-o, e dedilhou as notas. Os dedos longos brincavam com as teclas, tão seguros na música triste que preenchia o ar, um lamento. Ela se surpreendeu, esperava uma valsa, uma suíte. Mas aquilo? Tão emotivo, tão intenso. Sentimentos... Nunca vira ninguém tocar assim, a alma nas mãos.

Admirou–o entregue aquelas notas, até que cessaram e violetas a fitaram atentos a cada linha deliciada do rosto dela, como se delas rompessem os aplausos de plateia.

É lindo... – ela achou que ele esperava por palavras.

É Beethoven – ele aceitou o elogio, sem emoção exposta. – Deveria aprender a tocar, se aprecia a peça... – Ela não sabia como, mas ele estava novamente junto a ela, suas mãos nas dele.

Não há mais professores aqui – ela rebateu firme, o mais que conseguia. – No entanto, Emilie faz isso com perfeição, pode pedir para que ela toque hoje á noite.

Queria ouvi-la tocar... – interveio, os dedos que escorregaram nos dela. O toque, precisava sair dali, a mente ordenou. Os pés calaram.

Talvez quando voltar à França... possa arrumar um preceptor... – Ela concebeu uma leve nota de satisfação diante do futuro.

Vocês pretendem voltar? – Os dedos que abandonaram os dela, frios, a expressão séria que ela não entendeu.

Sim... – murmurou preocupada. – Esse ano ainda.

É perigoso... – ele contrapôs firme, o coração já comprimido, falseando nas notas como um piano mal afinado. – Deveria ficar aqui... – pausou, deixando violetas nos chocolates dela, e segundos depois completou sério: – e aprender piano.

Seria um aviso? Ela não soube dizer, mas seu coração dedilhava tons harmônicos diante do complemento à frase dele:

Se permitir... eu a ensino.

Não esperava por aquilo... Chocolates arregalados quando violetas cerraram numa reverência.

No te molesta?

Nunca... – Calou-a com um beijo no dorso da mão. – Mañana, la final de la noche... espero.

Graci...– a palavra não terminada entre os violetas e o castanho dela. A boca que ainda deslizava na pele de menina.

A porta que se abriu e fechou rápido, o gosto de rosas nos lábios abandonados dele. Ele ergueu violetas até a porta formando uma pequena linha sobre os lábios.

...xxx...

Partimos quando der a ordem – anunciou Rámon ao entrar na cabine e ter se livrado da tarefa de entreter Joaquim. – Fechou o negócio do cacau?

Não...– respondeu de costas para o irmão, os olhos fitando o piano. – Arrumei uma aluna... – informou num meio sorriso que ninguém, exceto ele, via.

Aluna? – repetiu Rámon incrédulo. – Como assim uma aluna?

Ellen... Ensinarei piano a ela – completou ao se virar e encará-lo.

Alejandro, precisamos voltar – o cortou severamente. – Não pode ficar aqui brincando de ser Conde.

Há anos você me acompanha, mon chére... – Foi até o irmão, envolvendo o pescoço dele com um dos braços e trazendo-o próximo ao seu. – Sabe que não abandono minhas promessas, meus objetivos – segredou ao beijá-lo na testa, soltando–o em seguida. – Não se preocupe.

Caminhou até a mesa e se sentou, os olhos ainda presos a algo que o irmão não sabia dizer o que era, mas imaginava.

Como iremos nos camuflar aqui quando a notícia do nosso navio, parado nesse porto, se espalhar pela África?

Não vamos... – Ele suspirou fundo, fechando os olhos. – Tenho um pedido a lhe fazer...

Rámon desviou os pretos dele, sabia o que significava aquela cruzada de mãos sob o queixo do Conde. Aprendera a entender os mais sutis movimentos daquele que era, para ele, um exemplo. Ainda que os anos carregados em seu rosto, não fossem demonstrados no homem a sua frente. Alejandro era quase vinte anos mais velho que ele, no entanto, a maldição no seu sangue o poupava dos anos em troca de uma eternidade de sofrimento... Muda, velada... Escura. Uma eternidade que ele, Rámon, aprendera a compartilhar de longe quando Alejandro fora deixado com sua família... pelas mãos dos Aramoyanas.

Diga... – Baixou os olhos ao chão em assentimento. Nada que dissesse poria fim ao brilho no olhar de Alejandro, ele sabia. – Eu nunca viraria às costas para qualquer pedido seu.

Eu vou ficar... – Não fitou o irmão, apenas meneou a cabeça para o lado – E preciso que faça aquele trabalho por mim.

Eu entendo. – Foi a vez de Rámon fechar os olhos em consentimento aquilo que ele sabia ser errado.. – E farei o que me pede, distribuirei a parte que cabe a cada um da tripulação e darei a parte prometida aos Jacobinos... mas e quando ela descobrir o você realmente é? O que você fará?

Silêncio negro e doce, ele rolou o anel com o brasão em seu dedo.

Niente...

Há uma Revolução na França, um movimento que você está ajudando... – retorquiu o irmão. – Um movimento contra o que ela e a família representam.

Eu sei... – frio, distante, ele murmurou. – Assim, como sabes que há mais envolvido nisso para mim.

Que isso lhe chame à razão! Você está longe da realidade dela em todos os sentidos, Alejandro! – esbravejou, a voz soando perigosa pela cabine.

Eu nunca estive tão próximo dos sentimentos humanos, como agora, irmão... – ele disse simplesmente, baixo. Os olhos violetas nos pretos, sem brilho. – Não há nada para mim em Limoges, ou Espanha. Castelo, terra e títulos nada mais são que ninharias perto do que ela capaz de fazer comigo... Num simples olhar. E ainda que ela me odeie pelo que eu sou, e fiz, que garantias eu tenho que a eternidade me possa ser tão doce quanto o cheiro de rosas dela? Ao menos terei algo realmente bom para lembrar quando a hora de fazê–los pagar por seus atos chegar...

Falas como se odiasse o que é – assustou-se Rámon. – Como se odiasse todos eles.

Nunca mereci condescendência de meus semelhantes...

Porque nunca os encontrou, realmente – interveio o irmão, preocupado.– O Conselho não pode ser a base de suas análises... É uma fraude pela qual jurou lutar, e o conheço muito bem para saber que não faria isso levianamente. Acredita na causa...

Suas palavras não abonam minha existência.

E o amor por ela?

Talvez...

Violetas que calaram os pretos, silenciosamente.

Você sabe que isso exigirá...

Mais sangue... – ele assentiu com a cabeça e depois nos lábios mexidos: – Sim, mas não precisas temer nada. Não atacarei ninguém, nada além do que venho fazendo... Não romperei as leis.

Eu volto em três meses... Ainda temos um encontro com o Rei, não pode fugir a isso.

Reis... – Fechou os olhos, retendo os chocolates em sua mente.

Sorriu ao ouvir a porta fechar.

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