3 - A Filha do Ourives

Ingrid

08 de dezembro de 1999 - 05h30min

Acordo e imediatamente me sento, com cuidado, tentando não acordar Anne, Lina e Louise que dormem comigo em uma cama de casal. Ao nosso lado, em uma cama de solteiro, estão espremidos meus outros irmãos, Camille e Angel, o caçula.

      Ainda zonza de sono, olho para o relógio na parede e suspiro, em frustração, pois já são 05h30min, o que significa que tenho que levantar se não quiser chegar atrasada no trabalho novamente.

      A vida de uma empregada doméstica não é nada fácil. Cheguei em casa quase duas da manhã e já estou tendo que sair novamente, antes das sete. Embora, para ser bem honesta, eu não estava limpando até tão tarde, e sim fazendo outras coisas... Ok, admito, eu estava no quarto de Lucas Martinelli, fazendo exatamente a mesma coisa que eu vivo me prometendo que não voltarei a fazer.

      Delicadamente, tiro meu braço de debaixo da cabeça de Anne e saio da cama tentando não fazer barulho, empurrando gentilmente Lou para o lugar onde eu estava, para que ela não caia da cama... Pelo menos não tão facilmente, visto que, mesmo sem mim nela, continua pequena demais para as três.

      Tomo um banho rápido, gelado, pois esse mês tive que escolher entre os uniformes escolares de meus irmãos e a conta de energia elétrica. Visto o uniforme de faxineira, arrumo meus cabelos em um coque perfeito e coloco um sobretudo preto, não para esconder a roupa cinza de empregada, mas sim para me aquecer.

      Não estamos no inverno e está fazendo cerca de vinte graus na rua, mas nos últimos dias tenho andando indisposta, com enjoos e vertigens, resultantes de uma provável virose, mas como não tenho tempo para ir ao médico, tenho apenas procurado me manter aquecida.

      Já pronta, entro no quarto e arrumo os uniformes de todos os meus irmãos e coloco seus materiais em suas mochilas, de forma a facilitar o trabalho de Lina, a segunda em comando quando estou fora, na hora de saírem. Com tudo pronto, dirijo-me até Camille, a primeira em comando, parando no caminho para empurrar Lou mais para o centro da cama, e sacudo seu ombro.

      - Camille, acorde meu amor. - Ela abre os olhos, imediatamente alerta. Apesar da pouca idade, ela já é muito responsável, tanto quanto eu, e, assim como eu, está sempre pronta para tudo quando se trata dos mais novos.

      - O que aconteceu? - Ela começa a se erguer, mas Angel, enrolado em seu corpo, resmunga. - Precisa de alguma coisa? Nossos pais estão bem? - Coloco meu dedo sobre os lábios, fazendo sinal para que ela fale mais baixo para não acordar os outros que ainda dormem profundamente ao nosso redor.

      - Ei, se aquiete, está tudo bem. - Acaricio seu rosto e sorrio, para acalmá-la. - Estou de saída, meu amor, só queria avisar que deixei o material e o uniforme de vocês prontos e que tem uma lasanha para vocês no freezer, basta colocar no forno, como eu te ensinei. Ok? Só não esqueça de verificar se a barra está limpa antes de todos saírem do quarto. - Ela assente, entendendo o eu quis dizer com “barra limpa” e, ao mesmo tempo, parecendo aliviada por não ter que cozinhar, tornando possível dormir por mais um tempo.

      - Certo irmã, obrigada. - Ela sorri para mim, começando a fechar os olhos novamente, sonolenta enquanto deita a cabeça no travesseiro. - Lina vai ficar muito feliz. - Ela sussurra, já voltando a dormir imediatamente.

      Dou um beijo na testa de cada um dos cinco e então saio do quarto novamente. Na sala, encontro meus pais, já acordados, sentados na mesa da cozinha, de costas para mim.

      Meu pai, Jonas, já foi um homem bonito, com olhos castanhos alegres e uma pele cor de cacau linda e brilhosa, e minha mãe, Fernanda, também foi, com seus longos cabelos castanhos claros, seus olhos cinzas como o céu de inverno e sua pele morena, mas agora, em consequência ao vício e ao uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas, os dois estão magros e com olhos fundos, como se tivessem em meio à um apocalipse zumbi e não estivessem se saindo nada bem.

      Vou até o balcão da cozinha para pegar minha bolsa, notando que o conteúdo no interior dela está revirado e, surpresa, todo o dinheiro que tinha na carteira, que era para comprar leite e outras coisas que estão faltando em casa, sumiu.

      Volto-me para meus pais, pronta para questioná-los sobre o destino do dinheiro, quando noto que minha mãe está arrumando duas fileiras de pó branco, que só pode ser cocaína, sobre o tampo riscado e manchado da mesa de madeira da cozinha. Meu pai aguarda ansiosamente ao seu lado, batendo o pé no chão de forma impaciente.

      - Sério? Antes das seis da manhã? E no meio da sala, onde qualquer um dos seus cinco filhos menores de idade podem ver essa merda que vocês estão fazendo? - Pergunto, desviando o olhar quando minha mãe começa a inalar o pó, com uma satisfação nauseante.

      - E em que outro lugar faríamos isso, senhora dona da razão? Essa casa é minúscula e possui apenas um quarto. Ah, caso não tenha percebido, você o encheu de pirralhos. - Volto a olhar para meu pai, enquanto minha mãe, sorrindo, massageia a narina, limpando os resquícios de pó que ficaram em seu rosto.

      - Pirralhos? O quarto está cheio com os seus filhos. Filhos estes que você, por sinal, poderia ao menos se dar ao trabalho de cuidar, ou, no mínimo, fazer essa merda que estão fazendo em um lugar onde não corra o risco de eles acabarem vendo. - Meu pai pega o tubinho transparente das mãos de minha mãe e faz um sinal grosseiro com o dedo em minha direção, completamente focado no pó sobre a mesa.

      - E você, senhora dona da razão que não faz nada errado, para onde está indo? - Desvio o olhar novamente, não suportando o som que faz quando meu pai inala o pó, suspirando, após, em sinal de alívio e satisfação.

      - Vou trabalhar, já que sou a única nessa casa que faz isso. - Digo, arrumando minha bolsa, jogando-a sobre meu ombro e indo em direção a porta velha e rachada da casa.

      Assim que toco a fechadura da porta, no entanto, sou acometida por uma onda de náusea tão intensa que quase caio, precisando me segurar com força em algo para me manter de pé, que acaba sendo o braço de meu pai, doce e atencioso.

      - Opa, opa, querida. - Meu pai, já sob os efeitos da droga que acabou de inalar, ri, com gosto, enquanto me aprumo, soltando seu braço e abrindo a porta para sair.

      - Ingrid, quando voltar, passe na farmácia e me compre algumas seringas novas, já que colocou as antigas no lixo. - Vá sonhando, penso, já saindo pela porta, mas minha mãe jamais me deixaria sair sem a alfinetada final. - Ah, e já aproveita que vai na farmácia para mim e compra um teste de gravidez para você, minha querida, pois está precisando. - Fecho a porta, abafando o som das suas risadas estridentes, e saio pela rua.

      Teste de gravidez... Se eu parar para pensar, até pode fazer algum sentido. Enquanto caminho rua abaixo, em direção a mansão da família Martinelli, tento me lembrar da última vez que menstruei. De acordo com os meus cálculos, já fazem mais de dois meses... Paro, assustada, fazendo com que a pessoa que andava atrás de mim esbarre contra meu corpo, quase me derrubando.

      - Ei, moça, preste atenção. - Ele fala, com certa grosseria.

      Estou tão assustada com a constatação que acabei de fazer que nem ligo para suas palavras. Eu e Lucas não temos realmente um relacionamento de verdade, apenas... Apenas transamos de vez em quando, como todo adolescente faz, e conversamos sobre coisas irrelevantes de nossa vida.

      Há sentimento? Da minha parte sim, e muito, mas não acho que seja correspondido por Martinelli e... Ai meu Deus. Sou a empregada e ele o herdeiro da máfia. No meu mundo não há espaço para ele e no dele não há nada de espaço para mim, ou para um filho.

      Ao invés de ficar pensando sobre isso, olho para meu relógio e percebo que ainda tenho alguns minutos. Corro até a farmácia mais próxima, compro três marcas de testes de gravidez diferentes, escondo-os no fundo de minha bolsa e corro em direção a mansão dos Martinelli, rezando o caminho todo para que todos deem negativo.

      Enquanto corro, meus pais voltam a minha mente, fazendo-me lembrar do pior dia das nossas vidas, o dia que acabou arruinando tudo e nos condenando a isso, a pobreza e ao desespero.

23 de dezembro de 1995 - 19h30min

- Seu pai está demorando demais para chegar, Ingrid, seus irmãos estão impacientes para voltarem para casa. - Minha mãe joga os longos cabelos castanhos por cima dos ombros, espiando pela porta de vidro da joalheria a rua lá fora, já escura, a espera de meu pai, seu marido.

      No dia anterior, Jonas chegou na joalheria, radiante, contando para mim, sua filha mais velha, e minha mãe, sua esposa, que havia fechado um negócio com uma grande família, o que poderá resultar em grande fortuna para nós todos.

      Eu sou contra, na verdade, pois isso implicará em abrir mão de uma porcentagem muito grande de nossos negócios, que foi criado pelo avô do meu pai e foi passando de geração em geração, mas meus pais são ambiciosos, e não veem mal algum em fazer isso se, no futuro, há a possibilidade de sermos muito ricos, mais ricos do que somos agora.

      Começo a guardar os anéis de diamante no cofre, preparando para fechar a loja, quando minha mãe abre a porta, radiante, e meu pai entra, muito bêbado e fedendo a cigarro.

      - Jonas, o que aconteceu? - Minha mãe dá um passo em direção ao meu pai e, ao mesmo tempo, meus irmãos entram correndo, para comemorar a chegada dele.

      Ao sair, meu pai disse que deveríamos espera-lo alegres e prontos para comemorar, então é exatamente isso que eles fazem, mas eu, minha mãe e Camille, notando que há algo errado, esperamos pacientemente pelas más notícias, sabendo que elas virão.

      Meu pai afasta meus irmãos com impaciência e agressividade, um gesto nada comum para ele, que sempre foi gentil e afetuoso conosco, e vem em minha direção, sentando-se ao meu lado, na cadeira livre atrás da caixa registradora da loja.

      - Fale logo, Jonas, o que aconteceu? - Minha mãe pergunta novamente, colocando-se entre meus irmãos e meu pai e fazendo sinal para que eu vá para trás dela também, mas eu não o faço. Ao invés disso, me ajoelho ao lado de meu pai e coloco a mão em seu joelho.

      - O que aconteceu? - Sussurro. Meu pai me olha, com lágrimas escorrendo pelo seu rosto, e então desvia o olhar, colocando a cabeça entre as mãos, em sinal de absoluto desespero.

      - Você falou, Ingrid, você me falou que eu não deveria fazer isso, mas eu fui um tolo... - Louise, com apenas cinco anos, começa a chorar baixinho, assustada.

      - Um tolo de que forma? - Meu coração está acelerado, parecendo prever o que vem a seguir. Minha mãe parece também já ter entendido, pois lágrimas escorrem livremente por seu rosto.

      - Perdemos tudo, Ingrid. Eles eram uns idiotas e eu confiei neles, ou seja, sou mais idiota ainda e... - O silêncio toma conta da joalheria, enquanto todos nós tentamos absorver as palavras de meu pai e, ao mesmo tempo, não entrar em pânico com a sua revelação.

      - Perdemos tudo? Tudo o que temos, Jonas? Fale logo homem, está quase me matando de ansiedade. - Minha mãe se desespera, gritando com meu pai e fazendo com que meus irmãos comecem a chorar.

      - Perdemos tudo, Fernanda. Perdemos a joalheria, as joias, nossas contas bancárias, tudo, até a casa onde vivemos. - Ele grita de volta e então todos começamos a chorar.

      Por um longo tempo, tudo o que fazemos é chorar e nos lamentar, pensando em como a vida será amanhã, o que faremos e, o pior de tudo, como viveremos daqui para a frente se não temos mais nossa única fonte de sustento, Céus, não temos nem mesmo onde morar.

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