Sentimentos

A neve caía por todo o jardim, o vento fazia meu cabelo chicotear ferozmente pelo meu rosto e eu já podia entrever, em meus pensamentos, as grandes sacadas do castelo Ernöyi. Eu me agitava interiormente, como se várias borboletas revoassem juntas, de uma vez só. Victor estava à minha frente no coche, ele fizera questão de vir em seu próprio carro, o que me forçara a ser sua companhia na viagem. Eu odiava estar ali, sozinha com ele, naquele pequeno espaço. Meu nariz estava quase colado ao vidro, mas eu senti quando a mão dele roçou as minhas coxas por sobre meu vestido e depois, sem cerimônia nenhuma, segurou-as. Eu ainda tentei me esquivar, me encolher contra a janela, mas o idiota tinha o braço longo e garras em vez de mãos, que subiam meu vestido, alisavam a minha pele, e eu queria gritar... Mas quem me ouviria?

Ele sorriu da minha aflição, totalmente ciente da minha impotência.

Por que eu não podia usar meus poderes e secá-lo ali mesmo? Porque matar um sangue puro é um tabu! Malditos eram todos esses tabus! A mão que me aliciava não deveria ser punida? Eu precisava de algo que me fizesse abandonar a sanidade, eu pedia e implorava por isso quando o castelo surgiu majestoso entre a neve e a escuridão da noite. Eu nem ao menos esperei o coche parar, abri a porta e me atirei à neve... E corri. Como eu corri! Eu queria sumir! Queria arrancar o toque daqueles dedos ásperos da minha pele enquanto sumia na escuridão da floresta atrás da construção, sem palavras... Apenas dor... A dor de ser usada. Um brinquedo.

Eu tentava conter as lágrimas, enxugando-as com o dorso da minha mão, mas era em vão. Elas manchavam a paisagem... De vermelho.

O ódio corria nas minhas veias e eu sentia vontade de matar. Sede de sangue. Tudo realmente voltara ao que era, minha mente praguejava, eu estava entregue de novo às loucuras do meu irmão. Os rubros brilhavam e algo pulou na minha frente em meio às folhagens, tão branco quanto a neve. Um coelho. Eu me deixei cair no chão, de joelhos. A neve fofa e os flocos intensos sobre mim. Que eu morresse de frio, de dor, mas que ele não mais me tocasse. Eu me encolhi em meio à umidade do manto branco e chorei. Em soluços, agarrada ao meu próprio corpo. Eu tremia.

Elise...

Não, ele não. Escondi meu rosto entre as mãos. Ele não ia me deixar morrer ali.

Fale comigo — a urgência na voz, as mãos que me ergueram do chão, me escorando no seu corpo. — O que aquele imbecil fez? Eu a vi chegando — As pontas dos dedos retiram a neve do meu rosto, os fios de cabelos pretos molhados. — Diga-me o que aconteceu, por que você fugiu assim?

O cheiro... O cheiro daquele animal... e eu me agitei nos braços dele, agarrada a blusa branca.

Por favor, Edmund — eu disse baixo — Me tire daqui. Não deixe que ele me toque. Por favor...

Ele me apertou contra o peito, acarinhando meus cabelos.

Não vou deixar, Elise. — Beijou-me os fios escuros. — Eu prometi isso a você há muito tempo, não vou voltar atrás.

Mas seria mesmo linda a cena — o deboche na voz do Victor me fez arrepiar, ainda que abrigada nos braços dele —, se ela não fosse minha noiva. Pode deixar que eu cuido dela, Edmund. — Ele se aproximou, os cabelos ruivos ao vento, chicoteando seu rosto.

Não, ela vai comigo. — Fui erguida nos braços dele, em meio às camadas de tecido do vestido. Castanhos brilhavam nos amarelados do meu irmão, um aviso velado para ele não tentar interferir, e eu sabia que Victor estava muito longe de pensar em reagir. Não, ao menos, ali. — Eu não sei o que você fez, mas se a machucou, não vou deixar que saia ileso desta vez, Victor — sentenciou calmamente, sem fitá-lo, tomando o caminho do castelo.

Victor silenciou, tornando-se um borrão ao longe. Eu estava segura e com os braços ao redor do pescoço dele. Murmurei:

Obrigada, Edmund.

Está tudo bem, Lise. Você está segura agora.

Eu sorri agradecida e cerrei os olhos.

                                                                                    ...xxx...

Eu corro, corro... e aquelas mãos...

Eu quero gritar, mas o som não sai.

Eu quero abrir os olhos. É um sonho. Acorde...

Sentada na cama, eu olho tudo à minha volta, tão escuro... tão sozinho.

Que bom que acordou, querida — a voz de mamãe chegou doce aos meus ouvidos e eu me virei para ela. — Deixou-nos todos preocupados. O que a assustou? — Os olhos pretos brilhantes nos meus.

N-não sei...

A porta se abriu e o Edmund me fitou do portal.

Fico feliz que tenha acordado, Elise. — Apesar da suavidade na voz, ele me olhava sério. Eu sei que queria respostas, mas não queria falar nada na frente da minha mãe. Nem sei se queria falar com ele. — Está melhor?

Sim...

Tia, estão chamando a senhora na biblioteca — ele disse ao desviar o olhar para minha mãe. — Não se preocupe, eu faço companhia a Elise enquanto vocês conversam.

Obrigada, Edmund — ela agradeceu cortês e me beijou a testa, completando: — Eu volto assim que puder, Lise. — Eu assenti e ela se retirou.

Desviei meu olhar da porta, que fatalmente cairia sobre ele, já que sabia que se aproximava da cama, e o vi puxar uma cadeira até a cabeceira e se sentar.

Quer me contar o que aconteceu, Elise?

Não, eu não queria. Baixei meus olhos até minhas mãos, mas ele era um príncipe e eu devia-lhe uma explicação.

Só me assustei, alteza. — retroci minhas mãos. — Desculpe-me se o preocupei.

Eu sei que não foi só isso, Lise — ele rebateu baixo, segurando minhas mãos nas dele. — Sei que não sairia correndo daquela forma se o Victor não tivesse feito nada. — Deixou os olhos nos meus, levando o dorso de uma das mãos ao meu rosto num carinho. — Por que não confia em mim?

Desviei meu olhar do dele, envergonhada, não sabia como dizer que meu irmão tentara me tocar mais intimamente... Não para ele.

Não gosto da forma como ele a trata, nem tampouco de saber o quanto está exposta a isso. Eu me preocupo com você, Elise... Muito.

Meus olhos se alargaram nos dele num tom de castanho intenso.

Ele tentou me beijar. Ele queria... — eu recuei, sem conseguir sustentar o olhar no dele, sentindo-me suja, escondendo meu rosto entre as mãos. A mera lembrança das mãos de Victor me apalpando as coxas me enojava.

Calma, Elise. Não precisa me contar mais nada — segredou entre meus cabelos ao me puxar para junto dele. — Não quero que chore mais — pediu baixo, próximo ao meu ouvido. — Eu queria tanto ver o seu sorriso, pensei nele todos os dias.

Edmund...

Ele pareceu não me ouvir, mantendo-me cativa dos carinhos dele, sempre gentis entre meus cabelos, sussurrando:

Me perdoe por não ter conseguido proteger você como devia... Como eu queria.

Mas vossa alteza estava longe — balbuciei, erguendo meu rosto até o dele, centímetros acima do meu. — Não tinha como fazer nada.

A mão dele passeou carinhosa sobre a minha bochecha, num toque medido, demorado. Eu não desviava os olhos do seu rosto, sentindo uma onda de eletricidade vinda dele passar por todo meu corpo, se transformando num magnetismo, do qual me era impossível fugir. Num simples movimento, a mão livre fechava-se ao redor da minha cintura, colando-me a ele. Os lábios se partiram, roçando os meus. Os dedos deslizaram até minha nuca, entrelaçando-se, pelo caminho, aos fios pretos do meu cabelo. A pressão leve e doce que se fez sobre minha boca pediu permissão para prosseguir, me deixando arrepiada, entregue aos carinhos que me dispensavam. Correndo lábios nos lábios, experimentando a sensação nova que aquele gesto provocava em mim... me fazendo separá-los e deixá-lo entrar. Vagaroso, lento. Os caninos arranhando levemente meus lábios, me seduzindo; a língua envolvendo a minha, assim como meus braços enlaçavam o pescoço dele enquanto seus dedos se enterravam em meus cabelos, aumentando sua posse sobre mim.

Eu pecava diante dos imortais, entregava a ele o que deveria ser de outro, prometido a outro: o meu coração.

Entregava-me nas unhas entre os cabelos escuros, que eu acarinhava sem pudor; na boca que não queria abandonar a dele; no meu sangue que corria cada vez mais rápido nas minhas veias, me inebriando, despertando minha sede. Sede dele, não mais calada e infantil. Eu não respirava, não pensava, sentia-o serpentear a língua ao longo do meu pescoço, sob as rendas da minha roupa que cedia aos dedos dele. Sabia o que ele iria tomar em seguida e, ao contrário do que faria com Victor, eu o daria de bom grado, meu corpo todo vibrava suspenso no êxtase das presas em minha pele. Eu me surpreendia em como abandonava minha razão, de como o pensamento dele me mordendo me fazia desejar tê-lo exatamente ali... No meu sangue. Queria que o arrepio em minha coluna se multiplicasse, que pela primeira vez a dor me alcançasse intensamente; queria tudo que viesse dele... Ainda que eu retesasse por resguardo e inexperiência.

Ele parou, voltando até meu rosto em rubros nos meus, as presas à mostra... Sem o meu sangue.

Eu nunca te machucaria, Elise. — Tomou-me o rosto entre os dedos. — Eu gosto de você.

Mas isso não é certo, Edmund.

Não, não é... — Ele me pareceu triste e baixou o rosto, encostando a testa no meu colo, os braços ao redor da minha cintura sem nos tirar daquele contato enquanto minhas mãos acarinhavam os cabelos escuros dele. — Você não sente o mesmo que antes por mim, não é mesmo? Ainda que não goste do Victor...

Não! — Ergui o rosto dele, fitando os orbes agora vermelhos com carinho. O medo de perdê-lo no brilho dos meus olhos castanhos. Eu esperara muito para ouvir aquilo. Não podia deixar ir embora assim, e nervosa, balbuciei: — Eu nunca esqueci você, Edmund...

Elise... — Ele me beijou uma vez mais, sem pedir permissão, tão calmo quanto antes. — Deixe-me tomar conta de você.

Sua alteza já toma — impus a formalidade a nós dois, mas foi inútil. Corei vendo-o sorrir, os braços ainda atados a mim. — Alteza — eu o chamei baixo. Ele fixou seus olhos rubros em mim. — Se lhe sou tão cara, não me importaria que me provasse...

Ele demorou ainda alguns segundos, os olhos vermelhos passeando em mim, como se minhas palavras fossem além do que esperava ouvir, e fixando minha boca. O polegar pousando sobre ela, deslizando suavemente em sua extensão ao se aproximar do meu rosto, retirando meu ar com seu olhar intenso, a boca tocando meu pescoço. Os lábios novamente sobre minha pele, delicados, enquanto ele me deitava na cama lentamente e se debruçava sobre mim, afastando a alça da camisola do meu ombro. Sem pressa, os dedos pressionando levemente minha pele nua ao beijá-la. Meu corpo arfava sob o dele, ansiava trêmulo, mas não por medo. Eu simplesmente desejava que a onda de calor que ele provocava em mim me consumisse. A língua dele provou uma vez mais meu gosto, me domando por completo, percorrendo sedutoramente o caminho do ombro até o pescoço, arranhando-me com as presas, me fazendo arrepiar e ferver, voltando até abaixo da linha do maxilar. E eu sentia meus olhos também rubros pela excitação do sangue que queimava minhas veias. Havia algo novo em mim, algo que implorava por ele e que me roubava de mim mesma.

As minhas mãos seguraram seus cabelos quando ele ameaçou me morder, cerrando os dentes sobre minha pele. Eu estava suspensa em minha própria respiração e no frenesi que a sede dele despertava na imortal adormecida. Um dos braços me envolvia a cintura, me mantendo colada a ele, quando o desejo dele sobrepujou o meu e o pressionou sem hesitar contra meu pescoço, enterrando as presas na minha pele. Eu estremeci, e ele me abraçou ainda mais forte, me sugando e deixando o sangue escorrer pelo meu braço. Gemi de dor, de prazer... Mas ela se entorpecia e se alimentava do desejo, da sensação do quente e frio se chocando num mesmo instante, congelando cada parte do meu corpo, para fazê-lo arder segundos depois, num martírio que parecia não ter fim, não enquanto o meu Edmund se saciava de mim, despertando-me para aquele mundo escuro, onde outro jamais entraria, onde havia somente um mestre, ele... Dono da minha vontade. Correu a língua sobre os traços de sangue escorridos, apagando-os delicadamente e voltando até meu rosto.

Eu quis tanto isso, Lise. Esse seu cheiro de Lis... — Afastou os cabelos do meu rosto, me admirando, sorvendo o meu perfume. — Tomá-lo para mim... Só para mim e te fazer minha — segredou ao beijar meus lábios uma vez mais, molhando-os com o meu sangue.

...xxx...

Neve de novo...

Branca e fria.

Os olhos castanhos me receberam carinhosos antes mesmo de circundarmos a casa, caminhando até o lago, como sempre fazíamos. E quando mais nenhum olhar podia nos alcançar, ele entrelaçou sua mão à minha, me levando por entre as árvores até uma parte escura da floresta. Nós raramente íamos ali, as copas das árvores se uniam uma às outras impedindo a visão de qualquer coisa, até mesmo do luar. Senti o arrepio e as mãos dele me seguraram firmemente contra o tronco atrás do meu corpo. Eu fechei os olhos, esperando por ele. E o beijo veio tão lento e doce quanto a língua que se mexia sobre a minha, se apropriando de todos os meus pensamentos. Ele se moveu sobre a minha pele, na minha boca, em carinhos intensos... Tão dono de mim. Inchando meus lábios com beijos, rasgando-os em pequenos veios de sangue.

O que foi? — indagou de repente, deixando castanhos sobre mim, preocupados. — O que seu irmão fez agora?

Ele voltou a pressionar papai e mamãe pelo nosso casamento. — Devolvi-lhe o olhar. Desde a festa oferecida pelos Hakkinen há dois meses, em comemoração ao retorno dos Ernöyis, quando eu me encontrara com o Edmund e sumira com ele por várias horas cheias, Victor redobrara seus esforços em me ter. (Aqui, devo fazer uma pequena intervenção, jamais pensem nos Hakkinen como imortais... Para mim, não são mais que horripilantes criaturas seduzidas por poder e ambicionando-o ainda mais, sem limites. Aquela máxima humana de que quanto mais se tem, mais se quer, aplica-se perfeitamente a esse clã. Um clã de vampiros, fiel aos imortais. Teoricamente, eu devo acrescentar. Na prática, descobriremos o que realmente são juntos. Voltemos ao meu irmão, que, depois desse baile, vivia lançando indiretas para meu pai sobre como e quando seria nosso enlace.) Isso, quando não fazia ameaças veladas para mim, cerradas entre seus dentes... Entre as sombras do aposento do castelo. — Eu não me caso com ele, Edmund — abandonei-me em seu braços. Saudade daquele cheiro, do revoar de borboletas no meu estômago ao senti-lo. Saudade de estar segura.

Eu vou dar um jeito nisso, Lise. — Acarinhou meu rosto junto ao seu peito.

Eu tenho medo — murmurei encolhida, resguardando o meu corpo no dele. — Medo do que possa acontecer a você. Sei o quanto esperam de você e de Augustus.

Augustus está prometido a Sophie. — Ele me sorriu gentilmente e completou em seguida: — E eu escolhi você. — As duas mãos retendo meu rosto entre si.

Tenho medo do que Victor possa fazer. Eu não sou livre, Edmund, para sentir o que sinto. — Pus as minhas mãos suavemente sobre as dele, triste. — Eu não tenho escolha.

Tem... Sorria para mim, por favor. — Deu-me um beijo na testa e voltou a me fitar. — Não vou deixar você ficar com ele, Lise.

Lise? — a voz da minha irmã chegou até nós, à minha procura, e ambos tomamos a direção do lago, encontrando-a próxima à sua margem. — Alteza — ela completou ao vê-lo, cumprimentando-o com a cabeça. — Vamos patinar, Lise? — disse ao me ver.

Logo atrás dela surgiu a menina de cabelos castanhos, que fixou o olhar no irmão, corando. Eu nunca notara esse rubor na face da Sophie, mas isso não causou o mínimo efeito sobre o Edmund. Ele sequer percebeu o olhar dela, e comecei a achar que minha mente pregava-me peças. Suspirei fundo e perguntei para ele:

Vem conosco, alteza?

Edmund, papai quer lhe falar — ela interveio baixo, sem fitá-lo. — Desculpe-me... Por atrapalhar.

Não tem problema, Sophie. — Desalinhou os cabelos dela com a mão e, virando-se para mim, completou: — Eu venho patinar assim que souber o que meu pai quer, não estraguem todo o gelo sem mim.

Eu sorri enquanto ele deixava um olhar doce no meu, mas não pude deixar de sentir uma pontada de ciúmes quando abraçou a irmã e voltou com ela para a mansão.

Vamos, Lise! — Inês me puxou pelo braço e me segredou: — Não fique com essa cara! Ele volta... Eu vi no olhar dele.

Inês! — eu ralhei.

Oras, é verdade — ela emburrou.

Não te conto mais nada — retruquei ao passar por ela.

Mas eu vou saber de qualquer forma, nós somos gêmeas — debochou, correndo atrás de mim com a sacola dos patins nas mãos. — Você não vive sem mim, Lise!

Sem me virar para ela, eu sorri. Não viveria mesmo, minha irmã era tudo na minha vida. Minha amiga, minha confidente, meu sol. Talvez, o que a Sophie sentisse pelo Edmund fosse isso também.

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