Vida Fácil
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Por: Moreira Filho
Capítulo 1- Lygia.

     

                                                             Sinopse:

            Um ato egoísta, fruto de um intelecto vingativo, provoca um trágico incidente. Subitamente, o ambiente burlesco se torna caótico. Esse evento dramático reúne, sob o mesmo teto, um diverso grupo de indivíduos desafortunados. Agora, já não há culpados, cúmplices ou inocentes. Todos se tornarão vítimas de escolhas feitas num passado, recente ou remoto. Sempre sádico, o destino faz com que os caminhos tortuosos desses sujeitos se cruzem em um ponto que, para alguns será o de partida, rumo a redenção e, para outros, será o instante derradeiro. Sem aviso, uma verdadeira avalanche de infortúnios os arrasta diretamente para o fundo de um abismo repleto de tormentos. Para escapar ileso, ou permanecer impune, cada personagem terá de agir com extrema maestria... e contar com uma generosa dose de boa sorte.

Estudiosos garantem que o tempo não é mesmo linear. Sendo assim, não é possível deixar, definitivamente, o passado para trás.

Somos, todos, feitos de carne, ossos, sangue e segredos.

                                                        Capítulo 1

                                                             Lygia

 Por trás das cortinas, do segundo andar de um edifício de apartamentos, uma figura sombria espreita através de uma janela lateral, deliberadamente mantida entreaberta. A construção remota, isolada na paisagem bucólica se destaca no topo de uma pequena colina. Semelhante a um antigo castelo que há muito fora abandonado pela nobreza que o habitara em seu auge, o prédio se encontrava completamente entregue a degradação causada pela passagem do tempo e pela ação de vândalos oportunistas. Agora, após uma grandiosa reforma, o lugar está revitalizado, por completo, e ganhara um novo propósito. Relativamente segura dentro de um dos inúmeros quartos, supostamente oculta pelo véu da noite e pela distância em relação ao solo, ela observa a movimentação de um carro que atende as emergências municipais. Com certa dificuldade, o veículo percorre os poucos metros da estreita, acidentada e sinuosa ladeira de terra batida, descendo em direção à rodovia. Logo abaixo da espectadora um trágico evento se desenvolve.

Ainda de joelhos sobre o cascalho. A mulher, corpulenta e de idade avançada, não percebe ou apenas ignora, o fato de que eles sangram. A infeliz tem as mãos e as roupas, a calça jeans e a camisa masculina, tingidas de vermelho. Este sangue, porém, não é o dela. Há poucos minutos amparava em seus braços uma jovem que lutava pela vida. O volume de sangue derramado aumentava constantemente e a temperatura do corpo já indicava um rápido declínio da força vital da moribunda. Fatalmente, quando a moça lhe sorriu e em seguida fechou os olhos, Lucille soube, mas se recusou a aceitar, que o destino da jovem estava selado.

Na ânsia de saborear o momento, a espectadora sinistra se esquecera de trancar a porta. A curiosidade leva outra jovem habitante do prédio a adentrar o mesmo quarto. Aparentemente, o cômodo proporciona a melhor vista para o pátio de terra batida, utilizado como estacionamento pelos frequentadores do recinto. É justamente nesse local que a comoção acontece. Inadvertidamente, a invasora aciona a luminária central do ambiente, dissolvendo, parcialmente, a premeditada escuridão. Mesmo pálida, a pouca luz é suficiente para projetar uma silhueta inconfundível. O delicado e pomposo narizinho de princesa, os longos cabelos divididos em duas tranças caídas sobre os ombros, uma de cada lado da face, como os de uma menina, não deixam dúvidas... A efigie nefasta... Lygia!

Por alguma razão a mulher, mesmo debulhada em lágrimas, percebe, e reconhece a presença maligna acima. Rapidamente, a dor se transforma em fúria e o pranto evapora dos olhos em brasa. Movida pelo ódio ela cerra os punhos com força, tanta que o sangue lhe escorrendo pelas mãos goteja, sobre a terra e sobre o cascalho. Em seguida, o líquido espesso se funde ao sangue derramado pela jovem moribunda. Mesmo à distância, Lucille encara Lygia como se estivessem nariz a nariz.

— O que foi que você fez!

Clamadas por Lucille, essas palavras removem a expressão debochada e vitoriosa, do rosto da garota travessa e, no mesmo instante, o tempo regride... Nove anos.

Subúrbio. Longe do caótico centro da cidade, em uma residência de médio porte vive uma família que pode ser considerada neotradicionalista. O pai é um sujeito extrovertido, de boa aparência, sempre bem vestido, próximo dos quarenta anos de idade, carismático e bem-sucedido na profissão de vendedor. A mãe, que exerce a função de enfermeira, trabalha durante a noite, em plantões alternados. Ela é uma mulher de beleza mediana, na casa dos trinta, austera e dedicada ao trabalho, um pouco mais do que a própria família. Nitidamente, seus raros sorrisos escondem algumas mágoas. O casal tem duas filhas. Lygia, com nove anos de idade, é uma jovem travessa, despreocupada, e verdadeiramente feliz. Lívia, a primogênita, agora com quatorze anos de idade. Até poucos meses atrás, as irmãs eram muito parecidas, inclusive no comportamento infantil. No entanto, a mais velha passou a conviver com os dilemas da adolescência. A complicada transição, o niilismo recorrente, as dores e os torturantes incômodos mensais ofuscaram na personalidade dela a alegria, a espontaneidade e até mesmo a sinceridade, por vezes inoportuna, de uma criança. Tantas transformações físicas, psicológicas e hormonais, provocam uma alteração no comportamento da menina maior e, naturalmente, o distanciamento entre as irmãs se tornou inevitável. A rotina de trabalho dos pais os obriga a dividir todas as tarefas domésticas, além dos cuidados físicos com as filhas, eles revezam a responsabilidade de levar e apanhá-las na escola, se esforçam para cumprir algumas atividades extracurriculares e comparecer a monótonas interações sociais. Mesmo assim, a família consegue estar toda reunida para o café da manhã, em certos dias da semana.

Dizem que os pais amam os filhos, de igual maneira. Dizem, também, que as meninas amadurecem muito antes dos meninos. Aos quatorze anos, Lívia já está madura o suficiente para perceber que o pai se dedica de maneira mais intensa à filha caçula. É claro que por ser ainda uma criança ela inspira maiores cuidados do que a outra, já adolescente. No entanto, Lívia passa a se sentir preterida. Toda a atenção, carinho e cuidados dedicados à irmã passam a incomodá-la, de maneira insistente e cada vez mais acentuada. Isso se torna recorrente em quase toda atividade que a família realiza, nas cotidianas, nas mais formais e, principalmente, quando as interações eram de descontração, lúdicas. Lívia está crescendo, amadurecendo, o comportamento tendencioso do pai não passa despercebido. Observando com mais atenção a conduta da mãe, a garota percebe que esta trata as filhas de maneira equilibrada, o que oferece a uma também oferece a outra, o que exige de uma, da mesma forma exige da outra. A verdade, conclui ela, é que os pais, apesar de negarem, não amam igualmente cada um de seus filhos, e não poderiam, ainda que desejassem. A afinidade é um fator decisivo nessa equação.

Estar em segundo plano e ter consciência desse fato, provoca na garota uma reação inusitada, quase desesperada. Um grito por atenção. Por algum motivo, talvez inveja, Lívia repara na vestimenta da irmã e se recorda de um vestido que possuí, exatamente igual ao que a caçula está usando, e se apressa em pescá-lo do fundo de uma gaveta. Sem perder tempo, ela tranca o quarto e, ligeiramente atrapalhada pela ansiedade, muda de roupa. A mãe havia comprado as peças para elas, anos atrás, por conta de uma brincadeira em que fingiam ser gêmeas, mas nascidas em anos diferentes. Devido à grande dificuldade de encontrar vestidos iguais, mas de tamanhos distintos, o de Lygia viera dois números acima do correto e por isso ainda servia na menina, perfeitamente. Já o de Lívia, agora estava curto e justo, com o caimento beirando a indecência. A imagem da adolescente refletida no espelho, não era mais a de uma menina que ainda brinca no colo dos pais. Colado ao corpo, o vestido revela os atributos físicos de uma mulher, muito jovem, porém, insinuante. Diante do espelho, Lívia acaricia o próprio corpo. Em suas formas ela descobre algo que julga belo e valioso. A satisfação da garota, evidente no brilho dos olhos e no sorriso maroto, largo, deixa bem claro que ela agora possuía um trunfo precioso. O próximo passo era aprender a usá-lo, com sabedoria. Um novo traço surgia na personalidade da jovem, o narcisismo. Adorando a própria imagem, ela segue com os preparativos necessários para concluir seu plano bizarro. Com a intenção de se tornar o mais parecida possível com irmã, Lívia trança os cabelos até que o penteado reproduzir, em detalhes, aquele feito pela mãe na cabeça da caçula. Feito isso, ela ensaia as falas de uma menina enquanto remove dos lábios o batom. Revoltada, a adolescente segue amaldiçoando a puberdade, responsável direta pelas acnes espalhadas pelo rosto e por constantes alterações no tom da sua voz.

Pronta para recuperar o lugar que entende ser seu, por direito, no coração da família, Lívia desce correndo as escadas em direção à sala de estar e não hesita em se atirar no colo do seu genitor, aproveitando o impulso concedido pelo movimento linear. Uma brincadeira apenas, aparentemente inocente, a qual o pai retribui com o carinho de um abraço, moderadamente apertado, sem conseguir esconder um certo constrangimento. Ao reparar nas vestes e na postura da filha, a mãe imediatamente a repreende e ordena que ela volte para o seu quarto.

— Você está ridícula, garota!

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