02: Shopping

    1. IRIS

Mamãe tamborila os dedos no volante impaciente comigo. Ela é uma mulher bonita, mas que engordou muito depois que engravidou de mim e de minha irmã mais velha Keira. Foi por esse motivo que meu pai divorciou-se dela e se casou com uma outra mulher vinte anos mais nova e quarenta quilos mais magra. Tenho pena de minha mãe, a vida não tem sido boa com ela.

Se você entrar, podemos provar calças, quem sabe encontramos algo na promoção que sirva em você.

Ela está tentando me comprar. É o que ela faz sempre para tentar me convencer a sair do carro, mas não quero descer. Tenho medo de pisar do lado de fora e acho que já estive fora de casa tempo o suficiente por hoje! Quer dizer, eu tive que caminhar do terraço para a rua, onde o carro estava estacionado e rodamos por quinze minutos até chegar no shopping. Eu quero ir para casa. Para o meu quarto. Lá é onde me sinto segura de verdade.

Você estava dizendo que estava sem dinheiro… — Eu coloco a mão nos óculos escuros gigantes que uso para esconder o meu rosto. Costumo estar com eles em quase todos os lugares que eu vou. Menos na escola, porque não me deixam ficar com eles na classe, mas lá eu coloco um capuz sobre a minha cabeça e tudo fica bem. Não é bem uma escola, é mais um grupo de estudo particular.

Posso parcelar no cartão. Você não estava dizendo que não queria ir na reunião do Centro Pearse porque não tinha calça?

Cruzo meus braços e comprimo a boca de um jeito que consigo sentir o gosto do meu batom. É verdade, estou sem ter o que vestir. Eu tenho duas calças jeans idênticas. Comprei elas no Natal do ano passado e foi uma promoção única. Todo mundo acha que são a mesma e que eu só tenho uma calça para usar todo dia. Por causa disso, eu tentei decorar uma delas com cola decorativa para tecido, roxa e com purpurina. Ficou horrível. Não tenho talento nenhum em artes. A Keira tem.

Fico pensando um tempo. Eu sei que mamãe só quer me dar uma calça para eu ir nessa reunião. Ela sempre barganha tudo comigo, mas fazer o quê? É o jeito dela achar que me ajuda a superar meus traumas.

E seria mesmo muito bom ter uma calça nova! Mamãe normalmente não compra coisas para mim, só para a Keira. Nós duas temos uma mesada simbólica e temos que nos virar com ela até o fim do mês… eu prefiro gastar meu dinheiro com outras coisas e sempre acabo deixando as roupas para depois. É que a Keira rouba minhas roupas e como ela é mais gorda, estraga todas. Ela já rasgou minha camiseta favorita, quando eu reclamei, ela riu. A Keira é impossível e a pessoa mais egoísta da face da terra… e não dá para usar as roupas dela, ficam terríveis em mim (fora que ela tem mau gosto).

Tudo bem… — Aceito a proposta e coloco a mão na trava da porta do carro. Abro a porta e desço. O dia está quente, mas está ventando muito agradável. Respiro fundo e encaro a entrada do shopping, contando as pessoas que posso ver. Não vou entrar se forem mais de vinte!

Minha mãe só me traz no shopping sábado de manhã porque é mais vazio. Temos que ir embora antes das onze e meia, quando o shopping começa a ficar cheio de gente circulando para o almoço… a tarde e a noite, nem pensar, não piso aqui! Eu não me dou bem com multidões… não é o fato de ficar povoado que me incomoda, mas o fato de que eu fico cercada de pessoas estranhas e não tenho para onde fugir.

Por que ela vai ganhar uma calça? E eu? — Keira logo reclama. Ela tem dezessete anos e age como se tivesse quinze. Quem tem quinze sou eu! Ela é irritante e está sempre tentando competir comigo em tudo: ela quer ser a mais linda, a mais inteligente, a mais cortejada pelos garotos… mas ela não é, infelizmente.

Eu sinto até uma pontada de dor no coração quando percebo meus pensamentos sombrios. Eu não me importaria em trocar de lugar com ela se ela assim quisesse… mas acho que no fundo, ela não quer. Não foi ela que teve a sua inocência roubada.

Você não tem uma reunião importante para ir! — Minha mãe encerra o papo sem precisar falar do assunto proibido.

Respiro fundo. Keira bate a porta do carro e se adianta na direção da entrada. A Keira é totalmente diferente de mim. Ela tem os cabelos loiros lindos, como a luz do sol e seus olhos são verdes. Ela é mais alta que eu. Ela puxou o lado do meu pai, que não é o mais bonito da família. Keira já fez duas plásticas no nariz e nunca fica contente com o resultado… o problema não é o nariz, mas a autoestima dela mesmo.

Eu sou bem bonita. Costumava ser a menina mais popular do colégio e já venci dois concursos de beleza, mas tudo isso ficou no passado. Eu me divido em duas: o “eu antes” e o “eu depois”. O “eu depois” não se importa em competir. Nem em ser bonita.

Ah, deixa! — Já estou virada de frente para a porta do carro de novo. — Não tem problema, vou com qualquer calça mesmo.

Nem pensar, Iris. Já passou da hora de você parar de andar assim tão mulambenta! Quem sabe ver um salto alto não te anime?

Eu amo saltos. Eles costumavam deixar minhas pernas lindas, torneadas, gostosas. Eu nunca mais vou usar um salto na vida.

Não. Podemos ir embora? — Imploro. Não quero mais ir! Mudei de ideia.

Meu humor anda assim essa montanha-russa. Eu quero uma calça nova, mas depois não quero mais. E não há remédio que me ajude!

Não, não, não! — Mamãe guarda a chave na bolsa e já puxa meus ombros me afastando do carro. — Viemos comprar uma calça para você ter o que usar na reunião. Venha Iris, você tem que ser forte.

As palavras dela tentam me encorajar e eu me deixo vencer. Fecho os olhos e vou andando guiada pela minha mãe para dentro do shopping. Minhas bochechas são açoitadas pela mudança de temperatura e ficam imediatamente geladas, tenho certeza que atravessei a porta. Curiosa, abro os olhos: o shopping está bem vazio! Até me animo! Talvez eu realmente consiga comprar uma calça sem ser pela internet e sim em uma loja de verdade!

Podemos almoçar aqui. — Keira dá a ideia segurando no meu braço.

Ela quer o meu aval porque eu sou aquela que não aguento ficar quatro horas fora de casa. É parte da síndrome do pânico que tenho enfrentado e da qual pretendo me curar. Já foi pior, houve um tempo em que eu não conseguia sair nem no jardim de casa.

Vamos um passo de cada vez. — Minha mãe logo diz e segura no meu outro braço.

Foi a mesma coisa que ela me disse antes de eu conseguir dar dez passos para fora de casa e o que ela vem me dizendo desde então. “Vamos um passo de cada vez”. Acho que são palavras mágicas porque me dão força para ir adiante. Tenho uma família muito compreensiva. Amo minha mãe e minha irmã.

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    1. SKYE

Liguei o liquidificador, mas esqueci de colocar a tampa e a vitamina de morango com gengibre espirrou por cima do avental, meu rosto e o boné horrível que somos obrigados a usar. Eu trabalho em um quiosque de lanches naturais dentro do shopping. Terceiro piso, em frente a uma livraria de destaque.

Wow, Skye, preste atenção. — Nicolle Fields reclama. Ela está no caixa usando um uniforme igual ao meu, mas sem avental. A camisa é vermelha e xadrez, a calça é marrom clara e o boné é branco. Tem uma gravata amarela que somos obrigados a usar, mas Nicolle nunca usa. O pai dela é dono do quiosque e ele me arranjou esse emprego para que eu pudesse ficar na casa dos Hirsch.

Desculpa. — Digo enquanto alcanço o pano de prato para me limpar. Eu sou tão desajeitado!

Nicolle estoura uma bola de chiclete tutti-frutti na boca, enrolando uma mecha de seu cabelo loiro e sorri para a cliente que pediu a vitamina. Ela é dois anos mais velha que eu e está se preparando para cursar faculdade. Se ela passar no vestibular irá morar em outro estado ou até em outro país. Deve ser legal ter tantas opções na vida. Eu não saberia o que é isso.

Pego outro copo de liquidificador e faço outra vitamina para a cliente. Dessa vez me lembro de tampar ou vão descontar do meu salário o prejuízo como fizeram mês passado. E eu não posso me dar ao luxo de perder um centavo. Preciso desse dinheiro ou serei obrigado a voltar para a casa de adoção. É uma ONG que fica há duas horas de carro daqui. Eu não quero voltar para lá nunca mais, não é um local seguro a noite. Os monitores estupraram Tommy, um dos garotos que dividiam o dormitório comigo. Eles fizeram isso várias noites depois dessa. Quando um dos monitores disse que eu tenho olhos azuis lindos, tive certeza que era o próximo e então fugi. Esse é o problema de ter herdado a beleza da minha mãe, que era modelo e viciada em cocaína. Eu não me lembro dela, mas ainda tenho algumas cicatrizes das pontas de cigarro que ela apagava em mim. Na perna. Ela perdeu minha guarda para o conselho tutelar antes de eu completar dois anos e desde então eu alterno entre períodos na ONG de adoção e na casa de famílias que tentaram me adotar, mas que não deu certo.

Ligo o liquidificador e espero a mistura bater. O líquido fica homogêneo e cor-de-rosa. Está pronta. Pego um copo de plástico transparente com o logo do quiosque e despejo o conteúdo. Coloco a tampa, o canudo e entrego para a cliente. É uma dessas senhoras com o rosto deformado de tanta plástica, toda maquiada e com os cabelos tingidos de um loiro-areia bem falso. Ela sorri para mim e eu finjo que não vi, me ocupando em limpar os dois copos que sujei antes que o próximo cliente faça seu pedido. A fila do quiosque nunca fica muito grande, as pessoas sempre perguntam se vendemos café… o Sr. Fields disse que quando a cafeteria do outro lado do corredor abrir estaremos condenados. Eu preciso achar outro emprego logo.

A água da torneira cai morna o que é confortável já que o shopping é climatizado por ar-condicionado e está sempre meio frio, mas não podemos usar suéter e nem camisetas por baixo do uniforme. É por isso que prefiro me morder em vez de me cortar. A mordida fica inchada por algumas horas, no máximo por um dia. Depois ela some. Se meu pulso fica muito vermelho, costumo amarrar uma bandana nele. Sr. Fields não se importa, desde que a bandana seja vermelha ou branca, porque combina com o uniforme. Minha vida pode ser resumida em crises: crise de choro, crise financeira, crise de azar, crise de tristeza, crise de medo…

Coloco os copos limpos em cima da bancada e fecho a torneira. Seco minhas mãos no avental mesmo. Recosto-me na bancada e cruzo os braços, mantendo meus olhos no chão. Preciso de sapatos novos, tenho um par de Allstar Chuck Taylor preto que uso desde sempre. Eu gosto deles, mas a sola está descolando. Prendi com silver tape e como enrolei a fita ao redor do tênis não consigo desamarrar o cadarço e isso o torna difícil de calçar. Suspiro. Não vou ter dinheiro para comprar um par de tênis novos até dezembro, que é quando o Sr. Fields paga um bônus de Natal. Faltam quatro meses e contando.

Ei, garota, eu pedi uma vitamina, você me ouviu?

Meu boné cai para frente e seguro eles com as mãos. Jason deu um tapa na minha cabeça tão forte que tirou o boné do lugar. Nem vi que ele já estava por aqui, caso contrário teria pedido a Nicolle para fazer meus quinze minutos de pausa. Ele é namorado de Nicolle e me odeia profundamente. Por esse motivo nem ouso olhar para ele, apenas viro o corpo e pego um dos copos que acabei de lavar para preparar sua vitamina. Jason bebe sempre a mesma coisa: uma mistura nojenta de couve com abacaxi e bastante gelo.

Vamos ao cinema? — Nicolle pergunta a ele enquanto escuto os sons de beijos. As vezes esses sons se assemelham a estalos, outras vezes a um desentupidor de pia. Ewww!

Ligo e desligo o liquidificador. Derramo a mistura no copo. Tampo. Escorrego o copo pelo balcão para Jason de forma automática. Eu me ocupo em lavar o que sujei em vez de escutar a conversa deles. Normalmente é um bate papo trivial. E eu cuido dos meus próprios problemas e não dos outros… mas estranhamente meus ouvidos acabam captando uma conversa que está rolando no corredor. Eu escuto uma risada e reconheço aquela voz. Levanto a cabeça e vejo a mesma menina do consultório da Dra. Brandburry… Ela está com uma sacola de compras no braço e vem acompanhada de uma mulher mais velha e uma outra jovem.

Credo, Keira, você já comeu um crepe! — A mulher mais velha diz.

Ai, mas ainda estou com fome! — A garota loira retruca. — Olha, ali tem sanduíches naturais!

Quando elas olham na direção do quiosque, eu apenas abaixo dentro do balcão e me escondo. Sério. Eu me escondo da forma mais ridícula possível.

Skye? — Escuto a voz de Nicolle e olho para ela, que está enrolando o cabelo nos dedos e me olha com a cara mais esquisita do universo. — O que você está fazendo?

Ah, o garfo, caiu a faca. — Falo qualquer coisa sem noção, apenas para me livrar do momento e finjo procurar alguma coisa no chão.

Nicolle não diz mais nada convencida. Eu fico ali um bom tempo, mas quando resolvo me levantar, vejo a outra jovem que caminhava ao lado de… como é mesmo o nome dela? Se aproximar do balcão e pedir por um sanduíche light. Como é um sanduíche que fica exposto no balcão, não preciso me mexer, continuo fingindo que estou ocupado e Nicolle mesma pega uma bandeja, guardanapos e coloca o sanduíche em cima enquanto cobra o pedido. Eu espio rapidamente por trás do balcão onde ela vai se sentar e para minha sorte, a garota está de costas.

Posso ver seus cabelos e a forma com que ela se encolhe e olha para os dois lados como se tivesse assustada. A garota loira reclama alguma coisa com ela, certamente indisposta a dividir o seu sanduíche natural. Sirvo duas vitaminas para outros clientes enquanto elas conversam… Eu só tenho que tomar um pouco de cuidado quando elas levantam para ir embora, mas consigo escapar ileso desse encontro…

Ileso do quê? Eu já me arrependo, não é só o fato de que foi rude da minha parte me esconder e evitar encontrá-la, mas eu me arrependo de verdade, aquele tipo de arrependimento que te deixa horas pensando em como poderia ter sido se fosse diferente, se eu tivesse conversado com ela ou ao menos acenado cordialmente de longe… acho que sou um idiota.

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