Emoções

As paredes eram bem finas por assim dizer, e no andar que estavam os quartos eram um aí lado do outro, foi possível para que todos escutassem os gritos de desespero de Charles quando bebeu o primeiro gole do sangue de Umada, era a primeira vez que Sophie sabia de fato como Umada se sentia, estava ali com Kog, e não quis permanecer ali no quarto, seguiu com seu companheiro para o andar do térreo onde ficou lá até o anoitecer.

— Você nunca o perdoou de fato, Sophie. — Kog Murmurou enquanto enrolava uma das mechas dos cabelos dourados da Fênix.

— Já fazem duzentos anos disso, eu acredito que essas emoções que ele sente já estejam mortas, Charles, as sentiu apenas pela conexão que tiveram naquele momento.— Sophie explicava fingindo não se importar com o ocorrido.

— Se ele não se importasse com o passado, talvez não tivesse avisado minha cria do que aconteceria, Charles foi um acidente, quando o transformei fiz sem querer, e ele se mostrou com grandes habilidades, foi isso que me impediu de destruí-lo em seus primeiros anos na nova vida.

— Ele te odeia...

— Não é ódio, ele ainda se sente confuso, deixar toda a humanidade e se alimentar de sangue não é muito fácil.— Kog explicava os sentimentos de Charles, mas ele mesmo sabia que não era isso.

Enquanto colocava sua amada de maneira mais confortável em seus braços sentia que a mesma tinha ficado mexida com os acontecimentos, e na cabeça de Kog, todos estavam fazendo tempestade em copo d'água.

Ficou ali com ela por horas até o horário em que todos iriam novamente se reunir para o jantar, Kloud não estaria presente, mas os outros fariam as refeições juntos.

O responsável pela cozinha naquela noite era Himashi, sabendo que os vampiros estavam presentes duas jarras com um canudo eram postas na mesa, as vezes Kog pedia carne mal passada, ele era metade humano então ingeria outras coisas além de sangue.

Quando o ponteiro do relógio se fez fixo no horário das vinte e uma horas todos foram para o terceiro andar onde ficava a cozinha e a sala de jantar, Kog estava ao lado de Sophie, Umada chegou sozinho e foi para o lado de seu irmão Himashi, Charles apareceu um pouco depois, seu olhar estava vazio e podia se jurar que era um humano que estava diante deles.

Na intenção de evitar um constrangimento ninguém se atrevia a perguntar o que estava acontecendo com o vampiro de olhos azuis, mas era nítido o abatimento.

— Geralmente quando um vampiro se alimenta ele fica mais forte, mais agressivo...— Uma das atividades favoritas de Kog era importunar e infernizar a vida de Charles.

— Geralmente é isso o que acontece, mas desta vez acho que algo saiu errado, você como um vampiro experiente talvez possa explicar o que aconteceu. — Charles devolvia a provocação na mesma moeda, não se deixaria ser ridicularizado por seu criador.

Sophie prendeu a respiração com o susto referente a resposta de Charles, Himashi olhou apreensivo para Umada que lhe devolvia um olhar confuso.

— Sempre que faz isso você não fica perto da vítima, sempre soube que perderia o controle, tem apenas setenta anos, não está pronto para beber o sangue diretamente da vítima, por isso sempre lhe ensinei a usar um copo, pegar bolsas de sangue dos postos de doações, quando pegava uma vítima ao acaso eu estava por perto e te tirava de perto da vítima antes de acontecer isso... Seus poderes são o que te fazem especial, mas se fica muito tempo perto da sua vítima acaba se sentindo humanizado, vi isso acontecer nos cinco primeiros anos de sua transformação, não se lembra desta época, era confuso demais e acabamos apagando certas lembranças, e se fica mais íntimo de sua vítima ainda corre o risco de não saber quem é, se continuasse bebendo o sangue do Umada, em algum momento acharia que você era ele... — a explicação longa e cheia de arrogância de Kog, fazia todos entender o olhar caído e a falta de postura de Charles.

— Eu não bebi muito, não mais do que quatro goles... — Charles se de dia.

— A presença do Umada no momento fez você ficar mais sensível, se continuasse bebendo iria perder parte de sua consciência e se confundir, agora que já sabe dos detalhes, use um copo da próxima vez.

Charles olhou cético para Kog, queria dizer alguma coisa, pensou que poderia estragar o jantar de todos se falasse,mas se não abrisse a boca talvez aquilo ficasse engasgado.

— Em setenta anos não achou a necessidade de me contar isso? Ou hoje de manhã na hora da reunião, você viu que ficamos pra trás na sala de reuniões, sabia que eu iria morder ele... — Charles sentiu seus olhos arderem, parou sua fala e focou na jarra em sua frente.

— Eu ia avisar, mas achei que você ia usar o maldito copo, ou que se alimentaria antes de morder o Umada, por isso não lhe avisei naquela hora, achei que poderia falar com você quando fosse se alimentar em seu quarto. — Aquela foi a explicação mais plausível possível que Kog encontrou.

Charles olhou para seu criador de maneira agressiva, sabia que não era nada daquilo, sabia que existiam lições que Kog o forçava a aprender sozinho e essa por mais simples que fosse era uma delas.

Se não fosse o passado cheio de traumas de Umada, aquela situação não teria ficado dramática, não teria despertado emoções, tão pouco recordações.

Umada vendo que todos estavam em silêncio e encarando os dois vampiros soltou um sorriso ladino.

— Bom explicações dadas e bem convincentes, agora todos aqui são adultos, a maioria tem mais de cem anos, não vamos ser dramáticos, temos um passado complicado, difícil e triste, Kog, você passou por quase quinhentos anos de guerra em sua amada Dominik, seu planeta quase foi devastado, agora que tudo está bem você tortura seu aprendiz com a falta de ensinamentos, apenas por ele não ser o que você desejava.

— Tem razão, não era para ele se transformar, eu iria matar ele, mas precisava de ajuda e ele seria útil naquele momento, depois veio as ideologias do meu irmão, nunca irei entender como Charles se transformou e outra pessoa morreu, mas como você mesmo disse é passado, não precisamos nos odiar mutuamente.— a réplica de Kog, foi dita com um tom áspero, o que fez o olhar de Charles se desviar.

— Eu duvido muito que Janine, vá sentir falta de um de nós, faço a última missão e estou fora, e não precisa se preocupar Kog, tenho certeza de que Umada lhe trará minhas cinzas, pois eu desisto desta droga toda, já é difícil ser o que sou, sentir o que todos sentem e ainda ficar sem apoio nenhum.— Charles tinha a voz embargada e suas palavras eram bem amargas, parecia que aquele grupo estava sendo dramático demais, porém eram coisas não ditas no decorrer dos dias, detalhes que guardavam em seus corações e não falavam sobre os mesmos, em algum momento essas coisas explodem.

Assim que Charles saiu, os que permaneceram ali tinham o constrangimento do momento.

— Bom, vou entender se pedirem pizza ou se saírem para comer fora hora, não entendo a necessidade de fazer todos ficarem juntos se cada um sente vontade de ficar a dez metros seguros de distância um do outro. — Himashi falou gesticulando bastante para dar ênfase a sua fala, Sophie e Kog ficaram ali como se nada tivesse acontecido, Himashi olhou para Umada pelo canto dos olhos e deu uma piscadela ao irmão.

— Você notou irmão? — Umada parecia surpreso.

— Quem não notaria, você é transparente demais, pelo menos pra mim, sugiro que tenha cuidado, e amanhã quando enfrentar a quimera híbrida tente descobrir se tem como salvar ela antes de levar a mesma ao mundo dos mortos.— Himashi comentou enquanto cortava um pedaço de vegetal em seu prato.

— Claro... Mas duvido muito que tenha saída, quando enlouquecem é sempre muito difícil que tenha algum rastro de consciência, o lado animal é quem comanda, aconteceu isso conosco até sermos separados da consciência animal.

Sophie não estava disposta a escutar aquelas explicações sem sentido, deu um toque na perna de Kog e apenas com o olhar ele entendeu que ela gostaria de sair do ambiente.

— Ela não é mais a pessoa que conhecemos Umada, a forma de agir dela demonstra isso. — Himashi ponderou enquanto recolhia os pratos.

— Eu sei, é difícil ver ela assim, totalmente dependente de Kog, com as emoções estagnadas, eu pelo menos gostaria que ela entendesse o que aconteceu, mas você tem razão ela jamais irá entender, e agora tenho que acalmar o vampiro confuso. 

— O que aconteceu a tarde? ele parecia estar mesmo desesperado.— a pergunta de Himashi fez Umada ficar inseguro com relação a que resposta daria ao irmão.

— Acho que o tratei bem demais e ele ficou sensível, de acordo com a explicação de Kog, eu entendi que ele ter ficado sensível foi culpa minha...— Umada parava sua fala pensando em como explicar ao irmão que estava querendo algo com o vampiro de olhos azuis — Eu gostaria de saber se entenderia o fato de eu... Querer ficar de maneira mais íntima com um homem, acho que nunca falamos a respeito...

— Pelos Dragões era isso? Não seja medroso. — Himashi soltou uma gargalhada— com quem se envolve ou deixa de se envolver não é da minha conta, aliás já estava ficando preocupado, mais de um século sem ninguém pode deixar uma pessoa demente.

— Não se importa? 

— Umada pelos dragões, eu jamais me importaria, somos imortais meu irmão, nessa nossa vida é meio óbvio que vamos acabar descobrindo sentimentos por humanos, criaturas dentre outras coisas, já te contei da vez que namorei um tritão? Eu estava em missão em Magien, lá tinha criaturas aquáticas de tirar o fôlego, os meses que passei lá foram bem aproveitados.

— Não me contou nada seu sacana...— Umada ficou pensativo e encarou a jarra que era de Charles ainda na mesa.— Vou levar pra ele, vai que está com fome. — falou minimamente tentando parecer que tinha um motivo para ir ao quarto de Charles, quando na verdade ele apenas queria uma desculpa.

Himashi ficou rindo um pouco do nervosismo do irmão, porém em seu interior estava aliviado por saber que Umada ainda tinha a capacidade de gostar de outras pessoas e que não tinha desistido de fato.

Ele estava ainda terminando de arrumar a mesa do jantar fracassado que tiveram e logo quando olhou para a porta Kloud, estava parado como uma estátua empoeirada próximo a soleira da porta.

— Você estava aí o tempo todo ou só chegou agora? Se chegou agora perdeu a festa. — Himashi comentou olhando para o homem de cabelos acobreados.

— Eu sabia que eles se controlavam na minha presença, só queria ver como ficariam sozinhos, ainda não podemos m****r eles para Janine...— Kloud ponderou deixando a frase morrer.

— Não é como se ela fosse ficar conosco no planeta, ela vai manter nossa organização da forma que está, só temos que fingir muito bem perto dela, se explicar a situação a eles eu creio que vão se esforçar, e de quem foi a ideia de juntar as pessoas que mais se odeiam entre si no mesmo lugar? 

— Foi minha, eu acreditei que poderiam deixar as diferenças de lado e se unir para o bem comum, me enganei...— Kloud parecia bem desanimado ao falar.

— Não desista ainda, seu plano de deixar eles sozinhos surtiu efeito, eles conversaram, e de briga em briga vão colocar tudo o que sentem pra fora até os acontecimentos infelizes se tornar uma piada infame. — Himashi comentava pegando uma xícara de café e colocando na frente de Kloud.

— Bom, temos dois anos até a avaliação de Janine, e ela tem um probleminha com Kog, então podemos usar isso para manter nossa organização separada, não quero morar em um planeta estranho e receber ordens de uma feiticeira mandona.

— Não vai, daremos um jeito, principalmente nos que moram aqui, achou a fenda? — Himashi mudou o rumo do assunto drasticamente.

— Sua intenção de mudar de assunto foi nítida, mas não achei, eu notei os espectros dimensionais próximo a um penhasco, mas quando me aproximo as atividades desaparecem, é como se a fenda soubesse que estou ali para fechar ela, é estranho. — Kloud concluía abrindo um mapa e mostrando a localização para Himashi.

— Vamos ter que esperar alguém passar por ela, assim ela vai ficar iluminada por duas semanas aos nossos olhos, com o dom que temos poderemos achar e fechar ela, mas temos que esperar alguém passar.

— por isso vão todos em missão e eu fico vigiando o penhasco, se for fazer trilha e passar por ela eu estarei por perto.

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