02

Rian

Meu pai nasceu surdo porque minha avó teve rubéola durante a gravidez.

Minha mãe nasceu surda por causas genéticas

Eu nasci surdo também por genética, mas só descobriram quando eu tinha três anos.

É difícil descobrir que um bebê é surdo. De acordo minha tia, ela tirou a prova da seguinte forma: estávamos eu e Alexia vendo algum desenho na televisão e ela colocou a tv no mudo de repente. Enquanto Alexia se assustou e olhou pra ela tentando tirar o controle de sua mão, eu continuei sentado sem perceber diferença nenhuma e ela percebeu que eu só estava vendo as imagens. Aí me levaram ao médico para fazer os exames que confirmaram. Eu tenho surdez bilateral profunda, o que, na prática, significa que eu só escuto sons realmente altos como disparos de revólver e turbinas de avião.

Aprendi cedo que havia coisas que eu não podia fazer, como me afastar dos meus pais no shopping, porque se me perdesse e chamassem por eles no alto-falante, bem...

Eles não iam ouvir. Além de que, eu provavelmente não conseguiria pedir ajuda também.

Alexia era a única ouvinte na minha família. Sei que parece estranho, mas é até que bem comum pais surdos terem filhos ouvintes. O termo para isso é Coda: Children of Deaf Adults. Mas, as pessoas sempre a estranhavam ser ouvinte e eu não já que éramos gêmeos.

Alexia demorou a aprender a falar português porque ninguém lá em casa falava.

Minha tia vinha na nossa casa quase todo dia para tentar estimulá-la a desenvolver a fala, mas, só quando entrou na escola que ela realmente aprendeu, antes disso ela falava principalmente por Libras. Quando começou a estudar, ela aprendeu português rápido, acho que é porque crianças tem mais facilidade de aprender outras línguas. Hoje em dia ela costuma misturar as duas o tempo todo. Acontece que às duas são a primeira língua dela, sabe? Então, ela mistura. É um pouco irritante às vezes, mas eu sei que é só o comum pra ela.

Minha irmã e eu sempre nos entendemos, inventávamos sinais só nossos e que meus pais não entendiam num tipo de criptofasia de sinais. Sempre estudamos em escolas diferentes, mas isso nunca importou... Até que ela começou a estudar num colégio de tempo integral enquanto eu estudava num colégio para surdos de meio período, o que significava que estávamos nos vendo pouco em casa.

Ainda assim, ela era a pessoa mais importante do mundo pra mim. Enquanto o primeiro pensamento dos meus pais foi contratar um intérprete pra me acompanhar na escola, Alexia pesquisou escolas bilíngue de Libras na região e assim, eu pude estudar a vida toda num colégio que ensinava na minha primeira língua e, de quebra, aprender português escrito como segunda língua.

Meus pais eram legais. Minha mãe era professora de dança e meu pai era dono de uma lojinha de informática e montagem de computadores. Eles aceitaram de boa quando eu contei que era gay, apenas me pediram para contar caso qualquer coisa acontecesse.

Meu pai era filho de ouvintes. Naquela época, os professores não deixavam usar línguas de sinais na escola, então ele cresceu se escondendo durante o intervalo com as crianças surdas mais velhas que o ensinavam escondido.

Ele sempre falava sobre como a escola era horrível por isso, como crescer cercado de ouvintes o fazia se sentir desconfortável, como se sentia excluído simplesmente por existir ali. Mesmo que ele soubesse o quão ruim era a sensação de estar cercado assim, adivinhe quem era que sempre me obrigava a sair com a Alexia e com os amigos ouvintes dela?

O argumento dele pra isso é que eu não podia me isolar dos ouvintes, que tinha que aprender a interagir com eles com a mesma facilidade com que interagia com surdos. Pois, adivinhe, pai, é mais fácil falar com surdos porque eles pelo menos entendem o que eu falo!

"Goste ou não, o mundo é deles, Rian. Você sempre vai ter que lidar com eles na sua vida, e quando for trabalhar? Como vai fazer? Você quer ser fotografo, como vai narrar pose? Escrevendo num papel? Você precisa aprender. Sabe disso."

Odiava quando ele dizia isso.

***

Cheguei em casa irritado, com Alexia logo atrás de mim.

"Como foi o dia?" – Minha mãe perguntou, sorridente, se distraindo do jantar que fazia por um instante. Os cabelos crespos dela estavam presos num coque e seus olhos verdes contrastavam contra a pele preta. Quando criança eu costumava reclamar de não ter herdado os olhos verdes dela.

"Foi péssimo! Nunca mais saio com ouvintes! Nunca! É pior do que a comida do pai!"

"Também não precisa exagerar!" – Alexia se meteu, me olhando feio. "O amigo do P-E-D-R-O tentou falar com você! E você não quis!"

Cruzei os braços para deixar claro que não queria falar nada e fui pro meu quarto.

Não me entenda mal, eu achei legal aquele garoto ter tentado, mas... Eu já estava tão cansado! Tão, tão, tão cansado! Cobri os olhos com as mãos.

Não sou surdo oralizado, o que tornava difícil pros ouvintes me incluírem em qualquer coisa. Minha habilidade em leitura labial é de péssima pra pior, o que dificultava ainda mais. O tempo todo entre ouvintes, eu me sentia deixado de lado, mesmo quando a Alexia estava por perto para intermediar era ruim. Ela falava e ela ouvia e as pessoas a incluíam e era difícil para ela ficar fazendo tradução o tempo todo.

Eu me sentia mal quando saía com ela e a fazia de intérprete. Era como se estivesse roubando o tempo dela com amigos. Era errado.

Não me importo de ser surdo. Isso nunca me impediu de fazer nada e nem nunca impediria: eu estudava, lia, conversava, tocava teclado, sabia sambar e fotografar. O que me incomodava era ser obrigado a ficar perto de pessoas que não faziam o mínimo esforço pra me incluir.

Fiz bico me sentando na cama e abraçando meu travesseiro.

Era sábado.

Queria poder ter passado o sábado tirando fotos pelo bairro como fazia normalmente.

Mas meu pai tinha que me fazer sair com minha irmã.

Que inferno!

***

Não sei como a Alexia me convenceu a sair de novo com os amigos dela... Ah, espera. Isso é porque ela não me convenceu. Eu fui obrigado... De novo! Valeu, pai!

De qualquer forma, minha irmã me garantiu que tinha falado com os amigos, que eles seriam mais inclusivos e simpáticos comigo e que veríamos um filme legendado.

Eles foram mais simpáticos.

Por tipo cinco minutos.

Depois, voltaram a ser como antes.

O que, sinceramente, não me surpreendeu. Ouvintes são assim. Na maioria das vezes, não sabem incluir alguém que não escuta e mesmo quando tentam incluir, cansam logo e acabam excluindo. Não acho que seja realmente por mau na maioria das vezes, apenas não estão habituados ao nosso jeito de se comunicar. Mas, machuca mesmo assim.

O mesmo garoto da outra vez tentou puxar assunto comigo de novo antes de entrarmos na sessão, mas de novo, eu estava cansado. Sei que ele estava tentando ser legal e sorri em agradecimento a isso, fiz o sinal de desculpas e pedi a Alexia para que dissesse a ele que eu estava cansado demais para conversar. Então, cruzei os braços.

Eu sempre ficava tímido entre os amigos da Alexia. Normalmente, não calo as mãos, mas ali com ela e com eles... Era diferente.

Apesar disso, o garoto simpático, era charmoso. Ele tinha cabelos escuros compridos, olhos esverdeados, usava lápis de olho, tinha covinha no sorriso e lábios finos avermelhados. O queixo era um pouco longo demais, mas bom... Ninguém é perfeito. Ele ficava vermelho com facilidade e mexia as mãos com ansiedade enquanto andava. Eu não fazia ideia do que ele estava falando, mas era legal observar.

Pareço um perseguidor falando isso, mas, é a verdade. Além do mais, é difícil não olhar para uma pessoa que também está te olhando. Eu o peguei me encarando três vezes. Nas três vezes arquei a sobrancelha e encarei de volta até ele ficar vermelho e virar o rosto. Nas três vezes tive que me segurar para não rir e para não desviar o olhar primeiro. Na quarta, não resisti e virei o rosto, com vergonha.

Ele era bonito, alto e gesticulava demais com as mãos. Usava várias pulseiras e um colar de âmbar. Às vezes, enquanto falava, ele esfregava o olho, mas imediatamente fazia careta e pegava o celular às pressas. Acho que era pra ver se tinha manchado a maquiagem. Eu não sabia o nome dele, mas também não sabia o nome de nenhum dos amigos da Alexia então não fazia mal.

Alexia tinha chegado a me apresentar os amigos dela na primeira vez que fui forçado a sair com eles, mas não consegui guardar os nomes. Então, acabava que eram isso, sabe? Pessoas sem nomes. Eu achava irônico porque pessoas sem nomes normalmente eram apenas figurantes de filmes e séries, mas quando eu saía com eles, eu que me sentia um figurante.

Enfim, o filme foi legendado pelo menos. Mas foi um filme de terror e eu odeio filmes de terror. São ridículos. Filmes antigos de terror até são bons, mas esses de hoje... Pura decepção. Por que ainda inventavam de filmar essas coisas? Não tinha se passado nem a primeira meia hora de filme e eu já estava dormindo.

Quando acabou, o garoto simpático veio para perto de mim de novo, me estendendo o celular aberto no bloco de notas como da última vez.

"Dessa vez teve legenda. O que achou?"

"Chato demais. Eu dormi. Nem gente bonita para ver." – Digitei. Ele riu enquanto digitava logo abaixo do que eu tinha escrito:

"Eu fiquei com medo."

Revirei os olhos e cruzei os braços, o olhando com desdém, embora estivesse querendo rir. Ele encolheu os ombros, sem graça. Balancei a cabeça, ainda contendo o riso enquanto ia para o lado da Alexia e o deixava pra trás.

***

Quanto mais tempo eu passava perto dos amigos da Alexia, mais eu queria ir embora. Minha irmã se esforçava para me manter incluído, mas havia horas que até ela me deixava de canto, entretida com os amigos. A sensação era quase sufocante.

Dei graças quando deu a hora de ir. Todos pegamos um ônibus até o terminal Santo Amaro e, enquanto o grupo se despedia porque cada um iria para um canto diferente, o garoto simpático veio para perto de mim e da Alexia.

Ele falou algo pra ela e ela me olhou em dúvida antes de dar de ombros e ir pra perto das amigas, me deixando sozinho com um estranho bonito.

Ai, não.

O garoto parecia nervoso enquanto parava na minha frente. Ele limpou as mãos na calça jeans antes de erguer a mão esquerda.

"Oi."

Franzi a testa, surpreso por ele ter feito o sinal certo. Eu sei que "oi" é um sinal fácil, mas mesmo assim tenho sérias dúvidas sobre quantos ouvintes realmente sabem falar "oi" em Libras.

"Oi". – Respondi, incerto e desconfiado.

"Meu nome é M-A-F-H-E-U-S."

Franzi a testa e ergui a mão em sinal de pare, soletrando eu mesmo. Ele uniu as sobrancelhas e eu fiz o sinal do F e do T em sequência pra ele perceber que havia trocado as letras.

O rosto do Mafheus ficou vermelho enquanto ele fazia o sinal de desculpas.

"O que você quer?"

Ele me olhou confuso, provavelmente sem entender o que eu tinha dito. Quis suspirar alto, mas, me contive porque estava realmente curioso com para onde aquilo estava indo. E também estava feliz por ele estar tentando fazer língua de sinais, mesmo com erros. Eu estava achando estranho, mas um estranho fascinante. Estava tendo que me segurar muito pra não sorrir igual besta.

Repeti a pergunta soletrando devagar pra que ele entendesse.

Matheus ficou absurdamente vermelho e respirou fundo antes de voltar a fazer sinais.

"Eu, você. P-A-R-Q-U-E I-B-I-R-A-P-U-E-R-A. Quer?"

Achei engraçado o fato de ele ter desenhado o ponto de interrogação no ar. Não que não pudesse fazer isso, mas é muito mais prático usar a expressão facial pra indicar que é uma pergunta. É através disso que passamos a emoção da frase e damos o tom de ordem, afirmativa, negativa ou interrogação, como passamos raiva, alegria ou tristeza.

Ele também soletrava super devagar, dava para perceber a incerteza em cada letra que fazia. Provavelmente ele tinha começado a estudar Libras tinha pouco tempo, ou no mínimo não praticava com frequência. Talvez as duas coisas.

"Vai chamar minha irmã também?" – Perguntei porque não consegui imaginar uma razão para um cara querer chamar um surdo para sair que não fosse se aproximar da irmã dele.

Desculpa, mas sou traumatizado. Normalmente os ouvintes bonitos ou somem quando descobrem que sou surdo ou estão interessados na Alexia. Olhei pelo canto do olho enquanto pensava isso e vi que não só minha irmã, assim como todo o grupo, nos observava com curiosidade. Engoli em seco sem jeito.

Não que eu não estivesse acostumado. Todo mundo sempre encarava quando tinha gente fazendo Libras por perto, era chato, mas eu aguentava e não era como se eles soubessem o que a gente estava falando... Tirando minha irmã que sabia, estava entendendo tudo e com certeza iria ficar fazendo insinuações para me deixar com vergonha. Voltei minha atenção para o garoto me chamando para sair sem razão aparente.

"O que?" – Matheus parecia confuso enquanto perguntava e outra vez desenhou um ponto de interrogação.

Apontei para Alexia, tentando me fazer entender sem ter que soletrar a pergunta inteira.

Ele franziu os lábios antes de balançar a cabeça.

"Eu, você. Só."

Mordi os lábios, pensando. Ele era bonito e simpático e tinha um olhar realmente penetrante, tentava conversar comigo, além de que o fato de ele estar aprendendo Libras era meio que um bônus que tornava mais tentador aceitar. Era tentador demais para dizer não. Ai, que eu não me arrependa, por favor.

"Quando?" – Perguntei.

"Domingo."

"Que horas?"

"Uma." – Ele arregalou os olhos enquanto voltava a sinalizar, provavelmente entendendo mal meu silêncio pensativo. – "Da tarde. Uma da tarde. Se T-I-V-E-R bom pra você."

Ignorei a soletração na frase enquanto pensava na proposta ainda.

"Por quê?"

"Você L-E-G-A-L."

Suspirei percebendo que não conseguiria respostas elaboradas.

"Seu C-E-L-U-LA-R." – Pedi.

Novamente, Matheus pareceu confuso quando me entregou o aparelho. Hesitei um instante antes de salvar meu número entre os contatos e devolver para ele.

"Nós C-O-M-B-I-N-A-R depois." – Soletrei combinar porque imaginei que ele ainda não saberia esse sinal.

Matheus sorriu e concordou com a cabeça, a covinha aparecendo na bochecha. Sorri de volta e acenei um tchau enquanto ia para o lado da minha irmã.

"Vamos." – Falei para ela, ansioso para ir para bem longe dos olhares daquela gente toda antes que o arrependimento me atingisse.

"Alguém tem um encontro." – Alexia respondeu, com um sorrisinho malicioso nos lábios.

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