O que houve, Kate?
O que houve, Kate?
Por: Chirlene Araujo
Dias ruins e dias ruins.

Ela era uma criança igual a cem mil outras crianças, brincava, sorria, criava histórias, menina aventureira e muito curiosa. Igual a todas as outras pessoas de sua idade, exceto, por não se sentir como se pertencesse de fato a tudo aquilo.

— Venha Kate, vamos brincar. — Luiza, a coleguinha de infância a chama.

— Vamos. — ela atende prontamente.

As meninas brincam do (trisca), pique-esconde, cola, e várias outras brincadeiras infantis. Em um dado momento a garotinha parou e ficou em pé, encostada na parede de sua sala vendo os outros coleguinhas brincando para lá e para cá, a menina estava tão distraída que nem viu que um garoto mais velho havia se aproximado dela.

— Ei, menina do olhão. — fala tentando provocar. Kate, que nem mesmo assustada abaixa a guarda, arregala os olhos ainda mais para ele, na intenção de mostrar que seu comentário não a ofendeu.

— Já tem os olhos grandes, e ao invés de aperta-los para ficarem menor faz é arregalar mais. — o garoto fala e se afasta, deixando Kate em paz, e um pouco triste.

A menina é bem magrinha, alta e de cabelos ondulados. Sempre sofreu 'bullying' dos coleguinhas por ser grande para sua idade e pelo seu peso. Geralmente nas escolas sempre tem alguém do qual todos os outros alunos tiram sarro, para o azar de Kate, na escola dela, ela é esse alguém.

A professora chama os alunos para a sala, e após a última hora de aula eles voltam para suas casas. Na volta Kate ia distraída com as borboletas no meio do caminho, observando uma coisa e outra, até que se assusta com um garoto passando por ela e derrubando seus materiais escolares. Kate olha irritada para o menino, que como resposta lhe faz uma careta e segue caminho em sua bicicleta.

                               🌺

Após chegar em casa chateada e muito cansada de tantas provocações no mesmo dia, Kate pede a mãe sua comida. Amália, mãe da garotinha nem presta atenção em sua carinha de revolta, ocupada com seu filho mais novo, Bernardo.

— Pirralha, já chega morta de fome. — Maurício, seu irmão mais velho lhe provoca.

— Cala a boca Maurício, morto de fome é você. — ela responde atrevida. Mas seu atrevimento passa ao se surpreender com um, tapa na boca que recebe do irmão.

— Maurício? — Amália chama surpresa. — Para já com isso, como você pôde bater em sua irmã? — pergunta aborrecida.

Kate sai chorando para o quarto, muito abalada com tudo que lhe aconteceu no mesmo dia, sua vontade era pegar suas coisas e ir embora. Mas para aonde iria? Ela só imaginava em ir para a casa da avó, mas a mãe certamente não a deixaria ir morar com ela. Kate se olha no espelho, com lágrimas nos olhos e uma parte do rosto ardendo pelo (tapa) ela sente um desconforto diferente na boca, ao mexer um pouco com a língua vê que um dos seus dentes amoleceu, efeito da agressão sofrida. Ela amolece o dente com o dedo e com um pouco mais de esforço o arranca, cospe o sangue e sai da casa indo joga-lo no telhado ditando o verso que a mãe lhe ensinou.

Kate se senta na área, muito triste por o seu irmão ter lhe arrancado um dente, quando Amália a chama para vir almoçar, a menina diz que não quer mais comer, mas após a mãe ameaçar de lhe bater, ela retrocede na decisão, porém, a comida desce forçada, e a menina muito triste com sua situação.

Mais tarde naquele dia, Kate estava ainda no quarto olhando para o teto, não queria ir lá fora brincar, estava chateada com Maurício, não gostou de sua mãe tê-la forçada a comer contra sua vontade. Apesar de entender que Amália estava muito ocupada com seu irmãozinho menor e com todo o trabalho de casa.

Kate não se senti triste por sua mãe estar ocupada, se sentia triste por sua mãe não ver que ela às vezes não se sentia bem para fazer algumas coisas, por mais que fosse criança, ainda era humana, e como humana estava cansada do resto da humanidade lhe negligenciar.

A menina só tem sete anos, e se sente como se nunca fosse se encaixar em lugar algum. Pode ser drama por ser apenas uma pequenina garota, mas seu sentimento é muito vivo.

— Kate, vamos blincar de cavalinho? — ela desperta de seus devaneios após ouvir a voz de Bernardo e sentir sua mãozinha em sua perna.

Kate e sua família moram em uma pequena fazenda no interior de uma cidade paraense por nome de bom Jesus do Tocantins Pará, ela ama seu lugar de origem. Brincar com as galinhas, patos, os porcos, e ver o pai e o irmão mais velho tirando o leite das vacas são os seus passatempos mais frequentes. Ela tem três irmãos, Bernardo, o mais novo com quatro anos, Maurício 17 anos, o mais velho, e Liza com 15 anos, essa está sempre ajudando a mãe na cozinha, e sempre descontando suas raivas na pobre Kate, que ainda não tem força suficiente para se defender.

— Vamos! — ela diz animada indo brincar com Ber.

O cavalinho são dois pedaços de pau que os dois pegam e amarram uma corda na ponta, montam e saem dando pulinhos e correndo atrás das galinhas, as quais eles chamam de vacas. Amália olha para seus dois filhos mais novos e sorri consigo mesmo, pensa que uma hora vai pirar com tantos filhos para cuidar e separar brigas, mas ela ama cada um com uma força que ninguém consegue explicar.

As crianças brincam muito, embaixo de uma chácara que tem em frente a casa, até que resolvem amarrar tiras de pano umas nas outras para prenderem nos pés de duas galinhas nanicas. A diversão vai às alturas ao ver as galinhas correndo e parando sendo impedidas pelas amarras dos dois traquinotes. Resolvem que vão deixá-las presas até o dia seguinte, pois até lá elas vão ficar mais mansas, e eles sempre veem o pai deixando bezerros amarrados de um dia para o outro para não fugirem do chiqueiro. Os dois então, decidindo que iriam manter as aves presas, resolvem procurar outra diversão por enquanto, Kate vê uma árvore caída, consequência de uma chuva na noite passada. Resolve ir andar em cima dela, pede para Bernardo não subir, pois, ele não vai conseguir se equilibrar, ao virar as costas e seguir para a outra ponta, Bernardo sobe na árvore caída, quando Kate vê, o garotinho está bambeando na tentativa de se equilibrar.

— Ber, não. — Kate grita ao vê-lo cair da parte mais alta da árvore de boca no chão.

Kate que ficou muito nervosa não sabia o que fazer, por um lado o irmão que estava chorando de dor e de susto, por outro estava o pai que vinha furioso após ver a arte dos filhos. Adolfo sempre foi um homem calmo, porém naquele instante ele estava muito irritado e Kate ficou com muito medo de apanhar do pai, apesar disso nunca ter acontecido antes. Quanto mais Adolfo se aproximava mais a menina sentia vontade de sair correndo, para piorar Bernardo não parava de chorar.

— Mas o que diabos aconteceu aqui? Kate, como pôde levar o seu irmão a participar dessa brincadeira estúpida? — fala enfurecido.

— Papai eu falei para ele não subir. — ela tenta se defender, mas já tremendo de medo.

— Você falou? Você não deveria nem mesmo ter vindo brincar aqui, sabe que seu irmão não sabe de nada, onde você vê que ele poderá se machucar você não pode ir brincar. — Adolfo fala pegando Bernardo no colo. 

— Papai — a menina tenta falar.

— Você está proibido de brincar aqui novamente. Proibida. Entendeu bem? — Adolfo diz de modo autoritário. — se eu voltar a ver você aqui, ou se eu sonhar que você está aqui eu te dou uma surra que você irá se arrepender de ter nascido. — Ele diz e sai, indo cuidar do filho caçula que não parava de chorar.

— Eu já me arrependi de ter nascido. — a menina fala consigo mesmo ao ficar sozinha.

                                🌺

Amanheceu e com ele um raiar de sol lindo, Kate já tinha se esquecido dos aborrecimentos do dia anterior, e com um sorriso no rosto saiu do quarto indo dar bom dia para sua mãe e sua irmã mais velha. A mãe a recebeu com um beijo no rosto. Liza, por outro lado, já estava com sua irritação de adolescente, parece que seu uniforme escolar amanheceu com uma mancha, efeito de uma goteira que tinha em seu quarto. Kate dormiu tão profundamente que nem viu a chuva, mas Liza não só viu, como se enfureceu pela Bendita goteira.

Na fazenda as chuvas sempre eram bastante fortes, e como as galinhas sempre subiam no telhado acabava criando falhas nas telhas, apesar de Adolfo sempre estar consertando e reformando sempre apareciam uma e outra falha, e dessa vez para o azar de Liza quem sofreu foi seu uniforme.

— Porque essas coisas têm sempre que acontecer comigo? — Liza lamenta. — ódio, ódio, ódio. — sai batendo o pé.

— Ela está possessa. — Amália diz rindo. — crianças.

— Mãe, mas a Liza já não é grande para ser criança? — Kate pergunta inocentemente. Amália rir e fala.

— Para mim vocês serão sempre minhas crianças. Para sempre meus docinhos. — diz coando o café.

— Mas a Liza parece um doce daqueles azedinhos. — Kate diz para a mãe que rir do comentário da filha.

— Mas aqueles doces azedinhos também são gostosos, não são? — Amália refere-se a um doce com essência de limão que ela fez dias atrás.

— Ah sim! São muito gostosos. — Kate responde animada.

— Agora mocinha, tome o seu café para você não se atrasar para sua escola.

— Esses pães de queijo estão tão bonitos. — a menina diz pegando um.

— Estão né? Então coma e depois, escola. — Amália diz rindo, indo pegar Bernardo que acabara de levantar.

Amália é uma mulher muito bonita, com seus quarenta e poucos anos, pele clara, cabelos negros e lisos, alta e com um corpo de dar inveja em muitas moças mais novas. Sempre foi uma mulher muito feliz e amorosa, uma mãe maravilhosa e uma esposa dedicada. Kate nunca viu a mãe reclamar de sua vida, pelo contrário, a menina sempre via os olhos da mãe brilhando e felizes.

— Mãe, já estou indo. — Kate fala para a mãe, já saindo para a escola.

— Filha, espera! — Amália pede e sai depressa. — seu lanche. — diz entregando para a menina uma lancheira com várias coisinhas dentro. — cuidado meu amor, e quando a aula acabar, venha direto para casa.

— Tá! Mamãe, te amo! — a menina diz carinhosa.

— Eu te amo mais. — Amália responde beijando o topo da cabeça da filha. 

Kate sai cantarolando pelo caminho, a escola era um pouco longe da sua casa, mas mesmo com sete anos a mãe deixava ela ir sozinha, pela falta de tempo e por confiar na filha. Sua família era bastante conhecida pelos outros proprietários de terras, e todas as outras crianças iam caminhando para a escola, algumas iam juntas, mas Kate apesar de ter sempre outras crianças indo na mesma direção que ela, a menina nunca gostava de companhia, assim, às vezes ela esperava eles irem primeiro ou então ia mais cedo para não precisar ir com eles. Algumas vezes ela até se escondia na beira da estrada para eles passarem sem vê-la. Amália não sabia dessa faceta da filha, mas Kate se sentia muito mais feliz, sozinha do que com os coleguinhas da escola. Ela até tentava ser amigável com eles, mas às vezes eles a ignoravam, noutras zombavam dela, até que um dia decidiu que não precisava de nenhum deles para se divertir, Kate, mesmo com sete anos descobriu que sua própria companhia se bastava e que ninguém precisa implorar por atenção de ninguém.

— Bom dia, Kate! — a professora Rosa lhe cumprimentou sorridente.

— Bom dia, dona Rosa! — a menina falou também sorrindo.

A professora Rosa era bastante conhecida na região, sempre prestativa a senhora de cinquenta anos costumava ajudar todos que precisavam de sua ajuda. Toda vez que uma mãe precisava levar um filho ao médico ou alguém precisava fazer uma viagem a outra cidade ela acompanhava, era muito querida por todos. Todas as outras crianças a chamavam de tia Rosa, porém Kate preferia a dona, e Rosa nunca exigiu nada diferente da menina, apesar de as outras crianças a acharem antipática por ela não chamar a mulher de tia.

— Crianças, vou passar essa atividade, quem responder toda corretamente até o horário do Intervalo vai sair para lanchar, quem não me entregar vai lanchar na sala. — dona Rosa passa então a atividade, na tentativa de fazer com que os alunos se empolguem e venham a aprender mais sobre aquele assunto.

Kate termina a atividade primeiro que todos os outros alunos e Rosa a libera para sair da sala. A menina fica por um tempo e depois ao perceber que ninguém mais iria sair se decide por comer o seu lanche. Quando ela entrou de volta na sala de aula viu os coleguinhas a olhando de cara feia, mas a menina não tinha culpa de eles não prestarem atenção nas aulas da professora. Kate, se sentindo bem consigo mesmo se senta plenamente em sua carteira, apesar de ouvir cochichos.

Após alguns minutos ela vê uma menina jogando um papel embolado em outra que pega lê, escreve outra coisa e joga de volta para a primeira menina. Elas se entreolham, depois dar uma olhada em Kate e voltam a escrever novamente. Na sala Kate é acostumada a ver as outras crianças fazendo essas cartinhas e sempre olhavam para ela. A menina nunca falou nada, mas apesar de sempre querer ignorar essas situações, ela acabava ficando triste no final, e Kate odiava se sentir triste porque as pessoas falavam dela.

Ela já sabia que não era boa em se encaixar, mas também não conseguia passar despercebida, sempre alguém via uma coisa ou outra, sua amiguinha mais próxima era Luiza, mas naquele dia a menininha não apareceu na aula. Algumas vezes Bia, uma menina morena e muito tagarela a chamava para brincar, mas Lorena, outra garota prima de Kate não gostava muito dela, e como Lorena também era prima de Bia, ela sempre tirava a amiguinha de perto de Kate. Toda vez que Lorena via Bia rindo com Kate ela dava um jeito de tirar Bia de lado. Lorena era do tipo de criança que gostava de ter todas as atenções para si, e se não tinha, ficava com raiva e chegava a passar até de um mês sem falar com a pessoa. Então a maioria das crianças procurava não irrita-la e Bia definitivamente não gostava de irritar a prima. A única criança naquela escola que não se importava com o que Lorena falava ou achava era Kate, e era exatamente por isso que Lorena não gostava da prima.

— Crianças, estão liberadas. Façam o dever de casa, e até amanhã. — a professora Rosa diz dispensando os alunos.

Dona Rosa fica na porta dando um beijo no topo das cabeças de cada criança que passa, a criançada sai conversando entre si, rindo e falando um monte de coisas, planeando para o dia seguinte e outras amenidades.

Ao sair da sala uma menina de uma turma mais avançada chama Kate, quando a moça se aproxima Kate percebe que ela vai fazer algo desagradável, mas antes dela conseguir se afastar a menina a agarra pelo braço e puxa a sua saia, fazendo com que a peça caísse aos seus pés e ela ficasse exposta no meio de vários alunos de todas as idades no pátio.

— Isso é para você aprender o seu lugar, sua magrela. — a menina fala com ódio e sai puxando Marcela pelo braço. Marcela foi uma das meninas que ficou na sala por não responder à atividade da professora Rosa.

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