Infância - Parte 2 - Moedas

        Era o terceiro dia do menino com Ônix e o pequeno estava diante de um imenso marujo. O Sol brilhava no alto. Eles estavam no convés principal do navio ancorado, chamado de Camaleão.

        O menino era chamado de Dinho, embora não fosse seu nome verdadeiro, e o marujo diante dele era chamado de Perrengue, e também não era seu real nome. O que esperava? Estavam num navio pirata. Um lugar de mentiras e trapaças. Nomes reais ficavam de fora. Não era um lugar nada aconselhável para uma criança, muitos diriam. O menino estava adorando, no entanto, essa é que era a verdade; se é que mencionar alguma verdade alivia a ideia sobre aquele lugar de tantas falcatruas.

        – Vamos ver o que seu pai te ensinou nesses quatro dias – o marujo disse. Tinha a cara fechada. Apenas muito fechada. A criança o deixava de bom humor. Quem o via com Dinho custava acreditar que era aquele Perrengue amargo e agressivo de sempre.

        – Bem, a primeira coisa que ele me ensinou foi a não chamá-lo de pai – disse o menino, erguendo as sobrancelhas.

        – Vamos ver se será a última – o marujo falou, apontando a espada de madeira em sua mão, desafiador. A cara, sempre fechada, se contorceu mais um pouco, de forma bastante ameaçadora.

        – Você não vai me matar de verdade, né? – o menino perguntou, um tanto incerto.

        – Não vou te matar com uma espada de madeira.

        – Nem como uma de verdade, né?

        – Isto é um treino – o marujo disse, tentando desfazer a cara de mau. O esforço piorava a coisa.

        – Tá bom – o menino resolveu acreditar. Escolheu suas armas: um bastão e um nunchaku. O segundo foi pendurado no pano amarrado na cintura. Era uma garantia extra.

        – Então, vou te mostrar como sou forte!

        – Você pode dizer; mostrar é outra história – Perrengue bufou.

        – E será uma triste história... para você – o menino falou, com a voz tão carregada que Perrengue teria rido, se lembrasse como fazer isso. Dinho girou o bastão algumas vezes antes de parar em posição de combate.

        – Boa provocação – Perrengue admitiu, firmando sua expressão de poucos amigos.

        – Meu pai... – o menino começou a dizer, mas, como um ator que erra a fala, retomou, ainda na postura preparada: – Ônix me ensinou que uma boa provocação mostra coragem e coragem imitida o oponente.

        – Intimida...

        – É.

        – Vamos ver se luta melhor do que fala! – Perrengue avançou.

        O Marujo atacou algumas vezes. Certamente sem muito peso e sem velocidade significativa. O menino bloqueou todos os ataques com o bastão de forma bastante eficiente. Se livrou da lâmina de madeira, jogando-a de lado, e acertou a canela de Perrengue com força.

        Dinho riu com vontade, se divertindo. A expressão do marujo era assustadora, mas ele não gritou. Parecia mastigar a dor que logo engoliu. O menino atacou várias vezes, misturando os malabarismos ensinados por Ônix. Nenhum ataque atingiu Perrengue. O último foi bloqueado pela espada de madeira do marujo antes que sua outra mão segurasse firme o bastão e erguesse o menino do chão, enquanto girava o corpo e lançava a criança longe, do outro lado do convés.

        Perrengue jogou o bastão para trás, para ter certeza de que o menino não o pegaria. Dinho, no entanto, levantou rapidamente, sacando o nunchaku. Começou a girá-lo, mantendo o marujo afastado. Perrengue buscava uma brecha. Não via. Teria de aceitar algum golpe para alcançar o menino e desarmá-lo. Mais alguma dor, ele pensou. Enquanto pensava, o menino iniciou ataques dos quais Perrengue se desviou por pouco. Logo precisou bloquear com a espada. Os ataques, porém, não visavam acertá-lo e sim laçar a espada, que foi roubada num único puxão, quando a corrente se enrolou nela.

        Uma vez desarmado, o marujo deu um passo na direção do menino para agarrá-lo e acabar com a brincadeira. Não estava lutando a sério, mas Dinho estava. Em estado de alerta total, o menino aproveitou o passo dado pelo marujo para girar e bater forte no tornozelo dele, antes que o imenso pé tocasse a madeira do convés. Foi um golpe forte e certeiro a ponto de desviar a perna, que estava no ar, para dentro e sei equilíbrio desapareceu.

        O homem tombava ante a criança. O osso saliente do tornozelo doía num crescente agudo. Antes, porém, que o grande corpo se esparramasse no convés, foi atingido por um segundo golpe, vindo de um novo giro completo das correntes do nunchaku. Uma das barras de metal da arma atingiu com força as costelas de Perrengue.

        O marujo estava caído. A criança girou o nunchaku algumas vezes antes de parar em posição soberba e dizer, rindo:

        – Viu só. Derrotado com a força do Donatello e do Michelangelo.

        – E quem seriam esses? – Perrengue perguntou, ao se levantar e se esforçava para fingir que não sentia as dores que latejavam.

        – Não são mais. Já foram – o menino falou. Jogou o nunchaku num canto do navio, antes de continuar: – Pelo que meu... pelo que Ônix me contou, eram artistas da Renasçança. Por isso eles morreram e renasceram, acho, mas voltaram como tartarugas quase humanas que sabiam lutar muuuiiito bem.

        – Ele devia estar apenas brincando com você – Perrengue falou. – Às vezes ele exagera...

        – Sim – a voz de Ônix foi ouvida atrás de Perrengue. – Às vezes ele exagera e aceita marujos que duvidam de suas palavras. Por sorte, as palavras não foram para você e sim para o moleque; que devia aprender a guardar segredo.

        – Por quê? – o menino perguntou.

        – Não esconderam o passado da humanidade sem um propósito e tudo o que ameaçar esse propósito é uma ameaça para este Novo Tempo – Ônix explicou para o menino e depois para si mesmo: – Tenho de me esforçar mais para não dividir palavras sobre o passado esquecido.

        – Como se alguém fosse acreditar no que você conta – o menino deu de ombros.

        – Mas, se não devo dividir as histórias do Passado Esquecido do Velho Tempo, devo dividir isso – Ônix falou, tirando um saquinho de veludo da cintura. – O tesouro conquistado naquela operação de ontem foi surpreendentemente farto, para uma operação tão simples. Tirada a parte de manutenção do navio e armas, restou uma moeda de ouro para cada um de nós.

        – Eu vou ganhar uma moeda?! – o menino arregalou os olhos e deixou a boca aberta.

        – Você estava no navio durante a operação, não estava? – Ônix foi retórico, mas como a criança não sabia nada sobre retóricas, respondeu, eufórico:

        – Sim, sim! Puxei um trilhão de quilômetros de corda pra lá e pra cá e vigiei!

        – Então é justo que receba sua parte – Ônix declarou. – Um primeiro e último pagamento, pois nunca mais o levarei noutra aventura dessa. É perigoso demais e sua mãe me mataria se alguém te matasse. E não queremos isso. Tivemos sorte. Não foi necessário lutar, como imaginei que não seria.

        A perna esquerda de Ônix ainda estava ferida e embora o esforço para não mancar fosse menor, ainda existia. Arriscou a operação por apostar no medo dos homens naquele navio da realeza.

        – Não é amaldiçoada como daquela história daquele pirata do Passado Esquecido, ou é? – o menino perguntou, para ter certeza.

        – Se você continuar falando sobre o Passado Esquecido, vai trazer problemas grandes para todos nós – Ônix falou. O menino continuou esperando a resposta e Pedra-negra se deu por vencido: – Não é amaldiçoada.

        – Ela vai pra caixinha – disse o menino ao pegar a moeda, feliz da vida. – Vai sim!

        – Muito bem – Ônix falou. Entregou a moeda de Perrengue e jogou uma, destinada a si mesmo, para o alto e a agarrou, antes de se voltar para o menino e lhe dar um conselho: – Guarde sua moeda com sabedoria. Não seja tolo e não a perca em apostas.

        – O que me lembra, capitão... – Perrengue pigarreou.

        – Lembra o quê? – Ônix se fez de desentendido.

        – Que você me deve uma moeda de ouro por aquela aposta – Perrengue falou, mirando o capitão. Parecia um leão de olho num coelho prestes a fugir.

        – O tooolo número um! – Dinho cantarolou e se afastou um pouco. Buscava uma caixinha que estava num canto, enquanto estalava a língua em sinal de desaprovação.

        Ônix fez uma careta e olhou da sua moeda para a cara de Perrengue. O marujo tinha um olhar implacável. O capitão, porém, guardou a moeda no saquinho de veludo e foi até a criança, fascinada com a primeira moeda de ouro conquistada por seu trabalho no mar.

        – Você acredita mesmo ser meu filho? – o pirata perguntou, ao se ajoelhar vagarosamente ao lado do menino. A perna ainda queimava e limitava seus movimentos.

        – Minha mãe não mente – O menino respondeu sem hesitar. O mais firme que uma voz de quase oito anos poderia ser.

        – Pois há uma tradição no mar e ela diz que todo filho deve, uma vez na vida, dar uma moeda de ouro para seu pai, para receber proteção das águas. Talvez esta seja a sua única chance de cumpri-la – disse Ônix. O menino fez uma careta e olhou para a moeda. O pirata continuou, testando o garoto: – Veja o seu brilho. Uma moeda de ouro. Uma certeza de que, se precisasse, poderia usá-la para confortos físicos por um bom tempo... comida... roupas... diversão... mas, se acredita mesmo que sou seu pai, vai escolher o conforto da alma.

        – Existe mesmo essa tradição? – Dinho perguntou, amargurado. E Perrengue tentou responder:

        – Bom, parece que agora...

        – E sempre, foi assim! – Ônix cortou o marujo. Perrengue se afastou, incomodado. O capitão continuou: – Existe, existiu e continuará a existir...

        Dinho olhou para a moeda e para Ônix algumas vezes. Por fim, entregou o pagamento e, amuado, ficou mexendo na caixinha para onde a moeda não foi. 

        Ônix sorriu, triunfante. Foi até Perrengue, já bastante afastado, e quase sussurrou;

        – Pode não ser meu filho, como sei que não é, mas, já que ficará aqui mais uns dias, é bom que me obedeça e quanto menos dinheiro, menos independência.

        O capitão entregou a moeda conquistada ao marujo, para saldar a dívida. Perrengue, no entanto, não parecia satisfeito e foi obrigado a dizer:

        – Neste ponto eu queria te ajudar, capitão. Mas, dívida é dívida...

        O marujo chamou o menino. Dinho veio saltitando. Ônix estranhou. Perrengue entregou a ele a moeda de ouro, recém-recebida do capitão.

        – Obrigado, homem de palavra – o menino disse, aliviado. – Achei que teria de lhe cobrar.

        – Ah! Não. Acho muito feio esquecer que tem uma dívida – Perrengue disse, olhando momentaneamente para o capitão, que intensificou a careta já existente.

        – Você perdeu uma moeda de ouro numa aposta com ele? – Ônix perguntou para ter certeza do óbvio.

        – O tooolo número dois – Dinho cantarolou, voltando para a caixinha deixada lá atrás. Não lhe interessava a resposta de Perrengue ao capitão:

        – Na verdade, não perdi uma moeda na aposta, capitão...

        – Quantas?

        – Cinco. E só devo mais uma – ele confessou. Ônix arregalou os olhos. Perrengue se justificou, apontando o nunchaku caído: – O menino me derrubou com essa merda de arma louca!

        Do outro lado do convés, Dinho abriu a caixinha, onde já havia outras três moedas para recepcionar a nova.

        – Então, neste caso, você ficará com o título de tolo número um – Ônix falou.

        – Ah! Quê isso, você não se contentaria em ser o segundo lugar em algo! – disse Perrengue, tentando parecer camarada.

        – Não posso ser o melhor em tudo – Ônix sacudiu os ombros, como se houvesse pesar naquilo.

        – Você seria um bom pai – Perrengue arriscou dizer, cruzando os braços. Ambos olhavam a criança feliz.

        – Mas não sou.

        – Como pode ter tanta certeza? Porque a manipulação sórdida dele só pode ter sido herdada...

        – Eu não estive com a mãe dele – Ônix revelou, após um breve olhar de desprezo para o marujo, que mantinha a audácia na cara. – Eu não encontrei Éfyn, mãe do moleque, como foi combinado. Mandei um amigo dizer que eu não poderia ir. Meu coração já estava comprometido com um amor que estava destinado a não acontecer, tanto quanto o de Éfyn por mim. Cheguei a pensar em conceder a ela o que eu jamais teria. Não achei justo, porém. Meu amigo, no entanto, se aproveitou da situação. O encontro foi numa tenda escura, num lugar escondido e ele esteve com ela. Descobri quando ela me agradeceu, no dia seguinte. Estava feliz por ter tido um momento comigo, mesmo sabendo que seria a única vez. Não tive coragem de expor a realidade. O sonho de ter me contemplado com seu amor bastou para ela.

        – Então sabe quem é o pai.

        – Sei.

        – E porque não conta agora?

        – Primeiro porque ela ficaria arrasada, se sentindo tola...

        – E passaria a odiá-lo para todo o sempre... – Perrengue fez questão de dizer.

        – Isso também. Mas, principalmente, porque o cara está morto.

        – Então por que não conforta o menino fingindo que é o pai dele?

        – É o que estou fazendo.

        – Mas sempre que pode diz a ele que não é o pai.

        – Negar é o que ele e a mãe esperavam que eu fizesse se eu fosse o pai. É um reforço reverso – Ônix falou e foi a vez de Perrengue enrugar a testa, tentando entender a lógica do capitão. Não teve tempo. O menino foi até eles com a caixinha aberta numa das mãos e a moeda nova na outra.

        – Vou colocar esta aqui, junto com as outras, pra ela não se sentir sozinha – Dinho explicou ao se agachar e colocar a caixinha no chão. Depositou a moeda nela, com cuidado. Depois de olhá-las ali dentro por um segundo, disse: – Acho que vou ser um criador de moedas. Elas vão dormir agora. Façam silêncio, por favor – Ele sussurrou. – Principalmente você, pai.

        Ônix se ajoelhou, com cuidado para não comprometer a recuperação da perna ferida, e sussurrou para o menino ao se inclinar na direção dele:

        – Vem aqui.

        O menino entendeu e aproximou sua orelha da boca de Ônix.

        – Eu não sou seu pai, moleque! – o pirata gritou.

        – Eu te paguei uma moeda para poder te chamar de pai e ter proteção do mar – o menino falou, ainda com uma expressão de dor. – E não precisa me chamar de moleque. Pode me chamar de Dinho, como já sabe. E claro que é meu pai. Se não fosse, não teria coragem de dizer a uma criança tão bacana quanto eu que ela não tem uma figura paterna para irritar.

        Ônix olhou para Perrengue, atrás dele, e sorriu como se dissesse: “O que foi que eu disse sobre a coisa reversa?”. E voltou-se novamente para o menino, dizendo:

        – Se você fosse bacana, devolveria minha moeda, já que tem tantas.

        – É minha agora. Estou criando elas – o menino falou, sem lamentar. – Já dei nome a ela. Se chama Dora e o sobrenome é Dinha.

        – E todas não poderiam ter este nome? – o pirata perguntou, sorrindo discretamente do raciocínio do menino.

        – Até poderiam, mas esta aqui, por exemplo – Dinho falou, ao pegar outra. –, tem outras razões para ter outro nome. Tem muitos arranhões e deve ter sofrido muuuuito para estar aqui agora, em segurança.

        – E como vai chamá-la?

        – Vou chamá-la de Dinho – O menino respondeu, um pouco triste.

        – Mas... – Ônix ia dizer algo. Desistiu, porém. Na garganta surgiu um nó.

        – O quê? – O menino perguntou com certa urgência, já preparado para defender sua cria.

        – Nada – foi o que Ônix conseguiu dizer. Olhou para a cara de Perrengue, mais contorcida do que o de costume, e novamente para o menino, que estava cobrindo as moedas com um paninho. Até aquele momento não havia parado para pensar em como havia sido a vida da criança até aquele dia, sem um pai para ajudá-los naquele mundo, quando já era difícil o suficiente havendo um. 

        Ônix não se levantou e saiu dali, como planejou. Acabou dizendo:

        – Bom, agora tenho de revelar que a tradição tem uma segunda parte. Ela diz que um pai também deve dar uma moeda de ouro para um filho, uma vez na vida, e... já que eu não tenho um filho, podemos fazer de conta que é você. Só agora. O que me diz?

        – Adooooro faz de contas. E este estaria danado de bom pra mim. – Pegou a moeda, retirada do saquinho de veludo do pirata, com brilho nos olhos. O pesar desaparecendo magicamente.

        – Ahá! Então admite que não é meu filho, já que aceita fazer de conta que é – O pirata falou, para se desvencilhar, de vez, da vontade secreta de abraçar o menino.

        – Estou fazendo de conta que aceito que não é – o menino riu da inocência do pirata.

        Ônix sentiu a perna ferida e se levantou. O menino fechou as moedas na caixinha e foi para a cabine do capitão. Pedra-Negra viu a cara de compaixão de seu marujo, ao menos o mais próximo disso que Perrengue conseguia expressar.

        – Se for falar besteira é melhor ficar calado – Ônix avisou. – Não vai querer testar meu humor. Tenho uma responsabilidade inesperada aqui. E o inesperado é perigoso e perigo é tudo o que preciso manter longe desse menino. A mãe não o deixaria aqui se não precisasse. Ele deve estar sendo procurado por alguém e por algum motivo. O motivo que deve estar ocupando a mãe. Se ela não tiver êxito, o perigo pode vir atrás dele. Eu daria minha vida para protegê-lo... é tudo o que precisa ser dito. Espero que isso explique meu mal humor.

        O capitão deixou Perrengue sozinho, imerso em lembranças nada agradáveis de sua própria vida. E se pegou pensando que também daria sua vida para salvar o menino, se fosse preciso. Queria acreditar que o tempo de errar havia ficado para trás. O futuro, porém, já está escrito; é o que dizem, e não pode ser mudado.

                                                       *

        Era o sétimo e último dia de Dinho com Ônix.

        Os momentos alegres e tristes da vida são como luz e sombra. Deles, resultam as mais valiosas obras de arte. O que aprendemos com elas, pode nos marcar profundamente, pelo resto da vida, se tivermos coragem de olhar...

        O olhar de Ônix saltou de Éfyn para Dinho, caído sob a lâmina que descia sobre ele. Não o alcançaria a tempo. Não tinha uma espada ou qualquer outra coisa para arremessar. Tinha sido desarmado.

        O navio balançava, mesmo atracado, e as tochas, balançando ao vento frio da noite, ampliavam a dança das sombras no convés. Num momento de luz, porém, foi possível ver o rosto do menino.

        Dinho olhava para a mãe quando o imenso homem desceu a lâmina sobre ele. Os panos negros, feito asas de uma ave de rapina a cobrir sua presa, envolveram o menino. Ele não gritou. O Homem ficou estático por um instante.

        “Ônix deve ter dado um punhal para o filho...” Éfyn pensou. Queria acreditar naquilo. “É agora que o maldito tombará de lado e meu filho vai se levantar... é agora... tem que ser assim...” Éfyn se obrigava a acreditar.

        O homem envolto em panos negros se moveu. Não tombou para um dos lados, em queda. Ele se levantou. A espada suja de sangue. O menino quase imóvel. O adversário, cruel, recuou alguns passos. Aguardaria o pirata, se ele tivesse coragem de se levantar.

        Ônix abaixou a cabeça. Mirava a mão suja de sangue. Um sangue que não era seu. Com muito esforço voltou a olhar para o menino e se arrastou até ele, enquanto escutava o choro de Éfyn, um pouco abafado pelas mãos que cobriam seu rosto na entrada do navio.

        Perrengue arremessou seu oponente a alguns metros na direção do outro adversário, que aguardava Ônix. O marujo parou ao lado de seu capitão, enquanto o oponente se levantava ao lado daquele que havia atacado Dinho.

        Ônix ergueu um pouco o menino, apoiando suas costas, e logo viu que precisava sustentar a cabeça para que ela não pendesse. Os olhos de Dinho estavam quase cerrados, como se lutasse para não cair num sono de uma noite sem fim. Não era sono, porém; o pirata sabia.

        – É apenas uma criança – o capitão disse ao marujo. – Não devia ter deixado enfrentar este combate ao nosso lado.

        – Sem ele não estaríamos vivos, capitão... – o marujo disse com convicção.

        Éfyn, como se estivesse embriagada, alcançou o filho. Dinho sorriu o máximo que pôde para a mãe e sussurrou:

        – Mãe... você veio me buscar... mas, não posso ir agora – e, se virando para Ônix, continuou: – Até onde eu fui; eu fui... o resto, deixo com vocês... protejam minha mãe...

        A pequena mão que se apoiava no próprio peito caiu inerte ao lado do corpo. A mãe gritou, expulsando Ônix.

        O pirata não se permitiu perder tempo. Levantou com visível esforço, mirando os dois homens envoltos em panos pretos. Um deles disse:

        – Não pode se apoiar nessa perna, pelo que vimos. – Apontou para a perna esquerda do pirata.

        – Não, não posso. E não preciso – Ônix falou e começou a subir e a subir, como se dobrasse de tamanho e quase o fez, ao ser erguido nos ombros de Perrengue, que se enfiou entre suas pernas, se fazendo de montaria.

        O marujo passou para Ônix um elmo metálico em forma de caveira e duas espadas. O marujo sacou outras duas espadas e se puseram a girar as quatro, enquanto se posicionavam para o desfecho daquele duelo. Aquele que havia enfrentado Perrengue chegou a recuar um passo, antes de seu companheiro olhar para trás, encorajando-o a voltar.

        Perrengue, avançou. Ônix estava firme, com as pernas travadas no dorso do marujo. A junção formava um monstro assustador, iluminado pelas tochas tremeluzentes ao seu redor.

        Toda luta é para evitar algo. Mesmo que seja uma tentativa de evitar o lamento profundo por algo que não pode ser evitado. Chamam isso de vingança. Mas é uma luta perdida. O lamento é um oponente invisível que não pode ser derrotado com espadas e nem atenuado com nenhuma lâmina.

        Para confrontar um lamento, um guerreiro deve usar uma arma tão imaterial quanto seu oponente. Apenas a compreensão pode atenuar as perdas. Essa arma, no entanto, é de difícil manejo e faz dessa luta a mais perigosa. Uma luta que pode matar, um pouco, até mesmo quem continua de pé... e isso pode fazer muita diferença.

(... continua no próximo capítulo)

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo