Capitulo 5

                                                           5                    

                             

De 1800 a 1901, os matrimônios das mulheres eram, em grande parte, arranjados por seus pais, devido a interesses políticos, econômicos e sociais. Logo, era uma afronta muito grande desobedecer ao destino traçado pelo pai e se casar com uma pessoa que ele não aprovava. Já a virgindade dizia respeito à honra da mulher e à boa imagem de sua própria família.

     Um tempo depois, Afroline e outras escravas da casa ajudavam Ticiana, que não fazia ideia alguma de sua gravidez, e por causa da surra violenta com golpes na barriga ainda reta, perdera o bebê.

   ─Ele matou meu filho! Àquele assassino!  Eu vou fugir com André. - ela fitou uma das mulheres. ─Peça para o avisarem que me espere nesse lugar. - ela escreveu o nome num papel.

   ─Não faça isso Ticiana... - pediu Sophie. ─Pense com calma, tu está muito nervosa...

   ─Escute tua irmã. - interveio Luzia com seu jeito calmo. ─Qualquer atitude drástica, só vai piorar ainda mais a situação.

   ─Pior do que aconteceu? Impossível! Não fico mais na casa desse... monstro que, infelizmente, é o nosso pai, nem mais um único dia! E ninguém vai me impedir! - ela fitou a irmã e depois Afroline que observava em silêncio. ─E se quer ficar com Diogo... terá que fugir Sophie, pois aquele carrasco fará de tudo para impedi-los!

     Sophie esbarrou com a mãe no corredor que até então não tinha feito nada por Ticiana.

   ─Nem para defender sua filha? Nem para ampará-la quando soube que ela estava grávida e perdeu o bebê?

         ─Não posso me envolver nas escolhas de vocês. Muito menos na vontade de teu pai. Ele é o senhor de tudo. Ele é o dono, ele é quem manda! Sou mulher, e como você, nascemos para obedecer.

   ─Não diga asneira, mamãe!

   ─As mulheres são capachos, primeiros dos pais, depois dos maridos, dos filhos e por fim dos netos. Servimos para mesa, cama e banho. Para satisfazer as vontades... bom, se como diz teu pai tu já anda se esfregando com um homem, sabe o que quis dizer. É para isso que servimos Sophie.

   ─Na sua mente pequena, minha mãe. Lamento pela senhora. E neste momento... sinto vergonha de ser sua filha.

Sophie se afastou com Luzia ao lado e Emília deixou as lágrimas saltarem dos olhos.

   A noitinha uma nova gritaria movimentou a casa. Everaldo tirou Ticiana à força do quarto e levou-a para baixo para conhecer seu futuro marido, Marques, um homem de idade avançada, um novo estancieiro das redondezas que ficara viúvo e queria uma esposa para cuidar de seus três filhos pequenos.

   ─Eu prefiro morrer! - gritou Ticiana.

   ─Antes de morrer tu te casa com ele.

Marques riu da afronta da moça, com os olhos fixos em Sophie que apareceu na sala.

   ─É tua filha cega, Everaldo?

   ─Sim. - respondeu ele desgostoso.

   ─Que pena... - disse Marques a olhando de cima a baixo. ─Ela é muito mais bonita do que a minha noiva, mais jovem também, mas cega não serve para os meus propósitos.

Sophie abriu os lábios, mas foi calada a tempo.

   ─Segure a tua língua Sophie, - preveniu Luzia. ─ ou vai sobrar para ti.

   ─Estou disposto a pagar o preço que for para me livrar destas duas. Um marido é tudo que elas precisam. Daria tudo para ter tido um filho varão! -disse Everaldo se calando sobre o acerto, já feito para casar Sophie. Ela não poderia saber, pelo menos enquanto o interessado não aparecesse para cobrar a dívida.

    Sophie girou nos calcanhares e subiu as escadas com elegância. Mataria, morreria, mas jamais se deixaria comandar por aqueles tiranos mesquinhos e sem respeito algum por ela e as mulheres em geral. Um dia reconheceriam o valor da mulher, na sociedade e no mundo! E enquanto ela vivesse, lutaria por isso. Não baixaria sua cabeça. Não se renderia. Pensar em Diogo a fez sorrir de alívio e alegria. Ele era diferente de todos eles.

    De madrugada as duas irmãs se despediram.

    ─Não te preocupe Sophie. Vai dar tudo certo. Eu sei me cuidar. Não se esqueça que eu sou mais velha. Dois anos, mas sou. Tu é a caçula, e parece mais velha do que muitos adultos por aí. Mantém essa chama de justiça acesa dentro de ti, e luta pelo que tu acredita! Continua ajudando os escravos aqui da estância e do país com teu Diogo. Me orgulho de ti!

    ─E eu de ti minha irmã! - elas se abraçaram longamente. ─Seja feliz! Não deixe que ninguém a magoe e que nem André te diga o que fazer. Lembra, mulher não é capacho, somos o centro de tudo!

    ─André me ama! Me respeita! Jamais me tratará como aquele... homem, trata nossa mãe.

Sophie pegou um saquinho e passou para a irmã.

    ─São algumas de minhas joias. Leve-as.

    ─Não é preciso.

    ─É sim! Leve e use-as. Tu vai precisar. Dê notícias quando puder.

Ticiana a abraçou, a seguir abraçou Luzia recomendando que cuidasse bem de sua irmã, e desceu pela árvore ao lado da janela de Sophie, sob a tensão do olhar de Luzia.

   ─Ela conseguiu?

   ─Sim, já está lá embaixo.

   ─Vai dar tudo certo, não vai Luzia?

A morena de olhar doce e expressão delicada a abraçou com carinho.

   ─Vai sim, minha querida.

    Qual não foi a surpresa de Sophie ao ser acordada pela própria Ticiana aos prantos, quando o dia estava quase amanhecendo.

   ─Ele não apareceu...

   ─Pare de gritar, tu vai acordar nossos pais!

   ─Ele não me ama, Sophie! Ele nunca me amou! Ele me usou! Eu quero morrer!

   ─Acalme-se! Vai ficar tudo bem! Deite-se aqui na minha cama, vou fazer um chá e chamar Luzia.

Sophie colocou o xale por cima dos ombros, ajeitou a irmã desconsolada em sua cama cobrindo-a. Ela chorava sem cessar.

  Tinha gana de matar aquele infeliz que fazia sua irmã sofrer daquela maneira. E Ticiana estava tão feliz, cheia de planos com aquela fuga.

Será que todos os homens só pensavam em se aproveitar das mulheres? Não, Diogo era diferente. Rapidamente, ela foi para cozinha preparar o chá e em seguida chamou Luzia.

   ─Ele parecia tão apaixonado por ela... - disse Luzia desconsolada.

    ─Um grande engano. Mais um... - Sophie parou de servir o chá quando ouviu um grito estridente.

As duas saíram correndo em disparada da cozinha para o quarto de Sophie. Ao chegar à porta, Sophie sentiu a presença de seus pais. Pasmos, olhavam o corpo sem vida em cima da cama dela. Ticiana se matou com um pequeno punhal.

   ─O que foi que você fez minha irmã...? - Sophie chorava em desespero debruçada sobre o corpo ainda morno, mas totalmente sem vida.

    No enterro, a distância Diogo prestava a atenção na movimentação no pequeno cemitério da família dentro da estância das Magnólias. Sophie usava um vestido simples preto, uma longa trança caia a suas costas, e no seu rosto pálido uma dor visível e profunda que ele ansiava por amenizar. Ele estava acompanhado de Aloísio, Álvaro e Tião.

   ─Tu tem certeza?

   ─Certeza eu não tenho, mas é o que algumas de nossas fontes estão suspeitando, pois dizem que era certo; André estava pronto para se encontrar com ela. Parece que o carrasco do Everaldo mandou acabar com o peão!

   ─Precisamos provar!

   ─Só à prova com um corpo. Se for ele mesmo, deve ter dado um fim na prova. E o que eu sei é que, o pai delas tinha arranjado um marido para a que se matou, e está à espera do pretendente para Sophie. Tal barão do açúcar. Parece que só ela é quem não sabe; coitada...

   ─Não! Nunca! Não vou deixar isso acontecer! Nem que eu tenha que raptá-la!

   ─Cuidado! Está se arriscando muito! Tu sabe que Everaldo não é de brincadeira. É um dos homens mais temidos dessa região. Ele é capaz de tudo! - o preveniu Tião, preocupado.

   ─ Tu me conhece. Não tenho medo de fama.

   ─Eu sei do que tu é capaz, Diogo. E confesso que nunca te imaginei assim...

   ─Assim como Tião?

Os amigos o olhavam com espanto.

   ─Apaixonado desse jeito! A mercê de uma prenda! E pior, por uma moça impossível. Não vê que terá problemas por tantas diferenças sociais? Teu pai já foi mandado embora da estância por causa desse romance.

   ─Meu pai que se arranje! Eu e ela não estamos preocupados com diferenças, sejam quais forem. E guarde isso contigo Tião: Não existem impossibilidades dentro do amor.

   Emília olhava para a cova da filha fechada a pouco. Seu coração sangrava. Lembrou das palavras do marido um pouco antes dos serviços fúnebres e que não compareceria ao enterro.

   ─Tu acha que eu sou o culpado? Tu acha que ela se matou por minha culpa? Responde mulher! - ele gritou.

Ela chorava em silêncio de cabeça baixa.

   ─Não... acho que ela se matou por desgosto do tal...não aparecer...ao encontro...

   ─Tu acha errado um pai querer que suas filhas se casem com um homem que as proteja, como eu faço contigo e com elas? Porque eu as protejo. Elas não sabem do que um homem é capaz... Eu só queria que Ticiana fosse bem cuidada, numa boa casa, e tivesse seus filhos e, quando essa guerra explodir, porque ela vai, quero que elas estejam protegidas e...

    Ele a fitou, sacudiu a cabeça, e saiu do quarto exasperado. Emília não lhe daria atenção. Emília não o entendia. Emília fazia parte da mobília da casa.

   Emília encontrou Afroline na cozinha algum tempo depois.

   ─Consolaste teu homem, negra maldita?

   ─Desafiadora longe e submissa perto. Quem tu é, afinal, Emília? Te assume, deixa tua máscara cair por vontade própria, ou a vida vai tratar de te arrancá-la a força.

   ─Cale a boca agora! Quem tu pensa que é, para me dar lição de moral? Eu juro que se pudesse te colocaria no tronco e eu mesma te mataria a chibatadas.

Afroline riu.

   ─Tu não pode. Tu é covarde. Tu não consegue nem mesmo defender uma filha. Deixou-a perder um bebê e por fim se matar. Ao passo que eu cuido, e muito bem da minha filha e do teu marido! Inclusive o controlando para não fazer coisas piores como ele estava acostumado a fazer aqui nesta estância. - e ela saiu da cozinha soberana como uma rainha.

Enlouquecida, Emília jogou uma panela de água quente no chão respingando nas criadas que gritaram de dor.

  Sophie fechou os olhos úmidos, sentiu o perfume dele, sabia que ele estava por perto. Pegou o braço da mãe e de Luzia para irem embora do cemitério. Diogo correu até ela e parou a sua frente. O olhar dela apagado, olhos inchados de tanto chorar. Luzia fez menção de pegar o braço de Emília para deixá-los a sós, mas Sophie fez que não com a cabeça. Era incrível a percepção dela e do que acontecia em sua volta.

      ─Sinto muito por sua irmã Sophie....

      ─Vá embora ou eu vou chamar um dos meus homens! - ameaçou Emília, rispidamente.

      ─Perdão, senhora. Sinto muito por sua filha. Não vou me demorar.

      ─Não temos nada para conversar, Diogo.

      ─O que está acontecendo?

      ─Vamos Sophie!

      ─Não, não! Espere! O que está acontecendo contigo Sophie?

      ─Acontece que minha irmã se matou por causa de um homem que a iludiu e depois a deixou. Tu é homem, por tanto faz parte da mesma corja. No final, são todos iguais!

      ─Tu não sabe o que está falando... está triste, magoada, mas...

      ─Sei muito bem! Sou cega, não burra!

      ─Eu não faço parte dessa corja e tu sabe disto!

      ─Não importa mais. Nada mais... faz sentido. Por favor, me deixe em paz!

      ─Tu não pode estar falando sério...

      ─Nunca falei tão sério em minha vida. Nunca mais quero te ver Diogo!

    Ele as viu caminharem em direção a carruagem e num ato de desespero, gritou.

      ─Teu pai é o causador disso tudo! Ele mandou matar André! Se eu descobrir o corpo dele, juro que vou jogá-lo na porta da tua casa! Então tu terá certeza de que não faço parte dessa corja!

   Emília e Luzia se viraram aterrorizadas para olhá-lo. Sophie ouviu o próprio coração batendo forte. Ele subiu em seu cavalo e ao lado dos amigos, partiram em disparada pelo prado.

     Everaldo foi atrás de Afroline. Ela o recebeu da maneira como ele gostava, pronta e desafiadora. Falava quando preciso; se calava quando necessário.

   ─Não venha se confessar comigo. Faça isso com padre Leontario.

   ─Tu me acha culpado...?

   ─Tua própria mente te culpa. Tu sabe o que fez. Sabe quando ultrapassa o limite da maldade permitida no ser humano. Eu te avisei que selaste o destino dela.

   ─Sua insolente... - ele bateu os dentes. O raio do homem era bonito mesmo em toda sua maldade aflorada, pensou ela com angústia. ─Tenho vontade de te matar!

   ─Mas não pode. Tu precisa de mim. Sou a única que sei exatamente quem tu é.

   ─Eu não sou tão ruim assim, Afroline... Tem coisas que é preciso fazer!  Eu não quero arder no fogo do inferno por...

   ─O inferno é aqui homem, e tu já vive nele.

Ele chorou feito um menino solitário e medroso. Entregava-se a esses momentos de fraquezas somente com ela. Não tinha como se esconder daquela mulher que tinha o dom de vê-lo, exatamente, como ele era.

       Diogo acordou assustado. Sentou-se no sofá e cobriu o rosto com as mãos.

   ─Que isso? Eu devo estar ficando maluco... - levantou a cabeça e fitou o quadro a frente. ─Eu sou o tal Diogo? Responda-me! Vou ficar louco. - grunhiu. Sentiu a cabeça latejar. ─Pai matou o neto antes da filha saber que estava grávida... mandou matar o amante da filha...Que porra de povo é esse? Bem, se comparado a tudo que acontece aí fora nos dias de hoje... eles parecem inocentes. Não sou muito melhor do que eles, mas nunca matei ninguém...

  “Não nessa vida...”, esse pensamento lhe causou um arrepio intenso. Ele subiu para o quarto, pegou o laptop e passou a escrever tudo que vira antes que se esquecesse de algum detalhe importante.

   Diogo estava abalado. Não conseguia entender o que estava acontecendo e, aliás, nem queria entender. Não naquele momento. O melhor a fazer era encher a cara! E foi o que ele fez, literalmente! Não viu a noite chegar perdido em suas divagações e no seu uísque, fumando um cigarro atrás do outro. Havia uma densa nuvem de fumaça a sua volta, o cheiro do tabaco era forte. Ele custou a ouvir uma batida ansiosa na porta.

   ─Já vai! - berrou. ─Quem será... o filho da puta? - cambaleou até a porta e assim que a escancarou, sorriu fazendo um esforço tremendo para ficar parado. Oscilava para os lados e ria sem parar.

    ─Diogo... O que houve com você?

Vilma o olhava assustada. Ele fez o mesmo com dificuldade, se tocando como se procurasse algo.

   ─O que houve comigo? Houve alguma coisa comigo? Onde? Cadê a coisa?

   ─Tu estás muito bêbado!

   ─Grande novidade! Eu vivo bêbado! Beber é a melhor coisa da vida! E a vida fica bem melhor bebendo! Eu poderia fazer comercial de cerveja, hein? - ele riu e tentou abraçá-la, mas ela se esquivou. ─Se fazendo de difícil? Eu e você sabemos que não é... Ou és tu? Será que eu estou vendo duas... Vilmas?

   ─Pra que beber desse jeito, criatura? - ela passou a mão na cintura dele para apoiá-lo.

   ─Sou um alcoólatra nas horas... vagas... e como ultimamente vivo com as horas vagas...

   ─Vive bêbado! E fedendo a cigarro. - ela fez uma careta.

   ─É isso aí... criatura.  - ele riu dando um soluço.

   ─Onde é o teu quarto?

   ─Lá em cima... terceira porta a esquerda...liga o GPS que a casa é grande! - gargalhou alto. ─Vai ficar comigo?

   ─Não... eu era pra estar muito zangada contigo! Esqueceu que tínhamos um compromisso?

   ─Xi... é mesmo...

Subir a escada com aquele homem alto e grande foi um sacrifício, mas ela conseguiu ajudá-lo. Encontrou o quarto e praticamente o jogou na cama. Mal chegara e já estava louca para ir embora. Aquele lugar não era seguro, e ela tinha medo do que diziam.

   ─Me perdoa...?

   ─Preciso pensar. Não gosto que te esqueça de mim.

   ─Como se fosse possível esquecer uma mulher gostosa como você... - ele tentou derrubá-la na cama com ele, mas não conseguiu. Sua coordenação motora estava péssima. ─Fica aqui comigo. Preciso de você.

   ─Melhor não... - ela se arrepiou toda com o vento frio que passou por ela.

Diogo estava muito bêbado, mas percebeu o tremor dela.

   ─Você... está com medo?

   ─Não gosto deste lugar...

   ─Por favor, garota... fantasmas não existem! Posso garantir que esta casa mal falada só tem a fama. Deixe de ser boba. - ele a puxou para o lado dele na cama. ─Estou aqui e fantasma algum vai pegá-la. Não sem eu permitir. - e ele enfiou o rosto entre o pescoço e o ombro dela, e apagou.

Ela ficou ali com os olhos fixos na penumbra, assustada, mas aos poucos foi relaxando.

Por que ele estava tão fragilizado? Por que um homem como ele se entregara daquela maneira ao álcool? Não poderia se apaixonar por ele. Não seria uma relação saudável.

 Com seus questionamentos, ela acabou por adormecer.

     Vinte dias se passaram e Sophie tentava criar uma nova rotina. Sentia muita falta de sua irmã. Eram unidas e amigas. Sempre que podiam, elas se reuniam com as primas e os primos que moravam dentro da estância para passearem, para piqueniques divertidos. Nos churrascos, nas rodas de mate e dança. E agora... não tinha mais a alegria e o riso de Ticiana, o calor de seu abraço, e sua companhia. Continuava com as aulas para as crianças, escondidas no Quilombo, ajudava os escravos em tudo que fosse possível para tornar suas vidas mais leves e menos sofridas, fazia seus passeios com Luzia a tarde, e tentava superar a dor da perda, e esquecer tudo que vivera com Diogo, principalmente as palavras dele no dia do enterro de sua irmã.

Tentara conversar com o pai, que por muito pouco não batera nela ao ouvir tal acusação.

   ─Era só o que me faltava! Minha própria filha me acusando!

   ─Eu só quero saber se o senhor, realmente, mandou matar André! Eu não posso acreditar que tenha feito uma coisa dessas...

   ─Me poupe de suas desconfianças, rapariga! Volte para o teu tricô e o teu piano e não se meta em assuntos que não te dizem respeito. Logo te arranjarei uma boa ocupação. Estamos a um fio de uma guerra, com coisas seríssimas acontecendo e tu me perturbando com asneiras!

   ─Não se atreva a querer me casar ou farei algo bem pior do que Ticiana fez; senhor meu pai! E o sumiço desse rapaz não é asneira! Estamos falando de um ser humano!

    ─Pense muito bem antes de fazer qualquer bobagem. E a maior delas, que já está fazendo, é acusar teu pai, levianamente! - ele a avisou num tom duro.

Com a mãe foi ainda mais difícil, já que Emília não se abria nunca.

   ─Não sei nada sobre a vida de teu pai e o que ele faz fora de casa.

   ─Nem dentro de casa à senhora sabe o que ele faz. Ou simplesmente finge que não sabe, parece muito mais cômodo.

   ─Não seja insolente, Sophie!

   ─Mamãe... por favor, entenda! Se papai mandou matar André de verdade... ele deve pagar por isso! Ele gerou uma tragédia sem precedentes na nossa família e na desse rapaz! A senhora perdeu uma filha e um neto!

Emília estremeceu, segurou o choro e se levantou da sua cadeira. Estavam na sala que elas usavam para costurar e tricotar.

   ─Não posso ir contra teu pai! E não me interessa o que ele faz ou deixa de fazer! Quanto a Ticiana, só eu sei a dor que carrego e vou levar para o meu túmulo.

É porque a sua mãe não tinha ideia da dor que ela também estava sentindo com a morte da irmã. Ainda bem que ela tinha Luzia, pensar nela a fez sorrir e lembrar o começo de suas histórias.

   Sophie soube que o pai comprara uma escrava com a filha pequena, pelos comentários de Emília, que dizia que ela estava suja, chorava muito agarrada a perna de Afroline e que era uma criança inquieta. Durante a viagem de volta para o sul, longa e cansativa, Sophie tentou se aproximar dela, mas Emília a impedia com receio de que ela pegasse piolho ou alguma doença contagiosa. E a menina fugia com medo delas. Um mês na estância vivendo com os escravos na senzala, numa noite Sophie foi até ela. Alguns escravos mais raivosos tentaram pegar Sophie para se vingar dos maus tratos do pai tirano, mas a maioria gostava dela, e tinham pena pelo fato dela ser cega. O que era irônico, ou quem sabe um castigo, como alguns escravos já teriam dito, pois muitos deles morreram cegos, consequência do trabalho na charqueada com o sal direto no sol.

     Sophie era cega, mas não era tola. Mesmo com tão pouca idade, tinha noção do que acontecia com os escravos, como eram tratados e das maldades que sofriam. Queria poder ajudar, mas ainda não era possível. Ela se aproximou, com o auxílio de um deles, da menina que estava encolhida num canto. Sophie estendeu a mão a ela.

   ─Vem comigo. Eu não enxergo, mas eu sei o caminho.

A menina não se moveu.

   ─Não tenha medo.

Afroline tinha sido levada direto para dentro da casa, mas a filha não. E ela ficou em estado de graça quando a viu entrar com a filha dos donos da estância.

   ─Aonde pensa que vai com esta negrinha? - perguntou Emília pronta para fazer a menina voltar para a senzala.

   ─Ela vem comigo, mamãe. Deixa-a ficar. Por favor!

Emília suspirou contrariada. Não gostava de escravos dormindo na casa grande. Mas não podia negar um pedido da filha cega ainda por cima.

   ─Tudo bem. Mas se prepare para um não bem grande de teu pai.

  O que Emília se enganou. Everaldo soube e não se importou. Na cabeça dele, assim que a menina ficasse maior, a colocaria para trabalhar na lavoura, ou em algum outro setor da estância, ou dentro da própria casa.  Mas não foi isso que aconteceu. Sophie pediu que uma das primas, Vânia a ensinasse a ler e escrever, e se tornaram unha e carne.

 Luzia se tornou os olhos dela, e Sophie lhe deu uma vida melhor e a promessa de liberdade. Ticiana chegara a dizer que sentia ciúmes de Luzia com a irmã.   Com o tempo, Luzia entendeu como Sophie aprendeu a escrever, as primas cuidadosas e carinhosas, pegavam na mãozinha dela e com a pena a ajudavam a desenhar as letras até que ela pudesse sentir o seu formato e decorasse. Então, onde Sophie estivesse; Luzia também estava.

    Era interessante vê-las juntas. Lembravam a luz e a sombra existente em todos nós. Lembravam o quanto precisamos um do outro, numa escala menor ou maior, e que juntos podemos ser mais fortes. Conforme foi crescendo e ganhando corpo, Luzia começou a chamar a atenção dos brancos da estância e dos escravos da senzala. E algumas vezes, Sophie a salvou de ser violentada pelos homens. Como de um dos capatazes que tinha verdadeira fixação por Luzia. Antunes, homem severo, mau e assassino. Muitos escravos perderam a vida em suas mãos. Ele tentou atacar a menina e Sophie estava pronta para intervir.

   ─Se tentar tocar na minha escrava de novo, eu juro que eu mesma corto tuas mãos homem!

Ele sentiu vontade de rir daquela fedelha de onze anos o ameaçando. Mas a altivez e a segurança dela o intimidaram a responder.

   ─Nunca mais encoste um dedo nela, entendeu? Ela está sobre a minha proteção!

     Antunes entendeu o recado. Sophie era a filha do patrão e poderia sofrer severas represálias. Quem sabe um dia ele conseguisse pegar aquela negrinha de jeito, acreditava ele.

   ─Não sei o que seria de mim sem ti, sinhá.

   ─Não me chame de sinhá. É difícil te sentir igual a mim?

   ─Não posso evitar sinhá. Somos diferentes, e depois tenho uma dívida contigo para sempre.

   ─Não Luzia. Tu não me deve nada, somos amigas, lembra? Eu te prometi tua liberdade. E vou dar um jeito de cumprir minha promessa. E pare com essa ideia de que somos diferentes! A liberdade precisa começar pelo teu pensamento.

   ─Será que vou conseguir conhecer a liberdade, sinhá? Acho que os negros jamais serão livres.

   ─Serão sim! Acredite! Trabalharemos para isso, assim como muitas pessoas no mundo, já estão fazendo, nesse momento. A escravidão há de acabar!

   ─A escravidão sempre existirá sinhá. De uma maneira ou de outra. Seja ela com negros ou brancos. Estamos sempre presos a alguma coisa ou alguém.

Afroline que entrara naquele instante a tempo de ouvir o comentário da filha disse:

   ─No país que os nossos ancestrais foram capturados, África, todo o negro é dono de si. Todo o negro é livre! Talvez eu e tu, jamais possamos ir até lá. Mas acalente o sonho de que nossos descendentes sim, e principalmente, de quem sabe, eles poderão testemunhar a proibição de caçarem nossos irmãos como animais em sua própria terra que deveria ser respeitada. E jamais esqueça Luzia, quando tu te sentir preso a alguém, não sendo um escravo, essa relação já não é mais saudável. O verdadeiro amor, a verdadeira amizade, liberta.

 Luzia e Sophie estavam com lágrimas rolando pelas faces. A filha observou a mãe sair com seu caminhar lento e tranquilo de quem sabia onde estava pisando.

   Sophie suspirou tristemente voltando de suas lembranças. Já estava com quase quinze anos, Luzia com dezesseis e até agora não conseguira livrar a amiga como prometera. Mas jamais desistiria. Ela dera sua palavra e a cumpriria. Precisava convencer seu pai a assinar a carta de alforria. Ela subiu em seu cavalo, esfregou um pouco da flor de magnólia nas narinas dele. Era o seu segredo para que o animal a levasse para casa sempre pelo caminho certo. Mas nem chegou a sair do lugar. Seu animal foi seguro pelas rédeas, e ela arrancada de forma brusca. Apesar do grito, sabia quem era e seu coração disparou.

   ─Não suportava mais esse afastamento.

   ─E precisava agir como um assaltante, saqueando?

   ─Tu já roubaste meu coração, Sophie. Aliás, eu só tenho um, quando estou contigo. Tu entende isso, guria teimosa? Tu sabe que eu jamais faria nada para te magoar. Eu quero te proteger de tudo e de todos, até de mim mesmo se for preciso!

Ela o abraçou com lágrimas pelo rosto.

   ─Minha vida perdeu todo o sentido sem você, minha guria.

   ─Ah Diogo... eu te amo tanto! Senti tanto tua falta!

 Trocaram um longo beijo. Bastava um toque para os corpos incendiarem.  Sophie ouviu o som de outros animais perto deles.

   ─Não se preocupe. - disse ele entre o beijo. ─ São amigos. Teu pai começou uma perseguição intensa contra mim e meus companheiros. - suspirou tristemente. ─Não consegui encontrar o corpo de André, mas a fortes indícios de que ele mandou matá-lo, Sophie.

 Ela assentiu, tristemente.

   ─Eu sei do que o meu pai é capaz... Eu sinto tanto ter me colocado contra ti!

Ele a abraçou mais uma vez e beijou-a, demoradamente.

   ─Vá para casa. Nos encontramos a beira do rio depois de amanhã. Quero te fazer uma surpresa. Até lá, evite ter problemas com teu pai.

   ─Uma surpresa?

   ─Sim. Um presente que quero te dar minha guria, e não vá de preto. Fica lindo em ti, mas prefiro algo mais alegre. Eu te amo, Sophie!

   ─Eu te amo, Diogo!

  

                                       

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