Capítulo 3

                                                  3           

                                                                           

A revolução separatista durou 10 anos no Brasil Imperial do século XIX.

O movimento foi deflagrado por causas político-econômicas como os altos impostos nas charqueadas. A escassez de moeda circulante no Rio Grande durante todo o período colonial, e o pagamento das dívidas do governo central na província.

       Num plano de fuga audacioso e perigoso, de seis escravos jurados de morte por seu dono, Diogo escoltou-os ao cais do porto, escondidos dentro de seis barris de vinho, e ficou observando alguns homens embarcarem as “mercadorias”, pronto ao lado de seus amigos, para atacar, caso fossem surpreendidos. Os escravos estavam tão magros e judiados, fisicamente, que couberam nos barris sem problemas. Cena de cortar o coração. Diogo sofria muito, a cada vez que se deparava com tanta maldade. Quando teve certeza de que estavam seguros dentro do navio pequeno rumo à liberdade, a um dos tantos Quilombos espalhados pelo país, voltou para Viamão, rapidamente. Não podia levantar suspeita. Sua audácia e sua coragem o tornaram um perigo para a sociedade escravagista da região, e ele já tinha alguns inimigos dispostos a tudo para varrê-lo do mapa.

    Correndo pelo prado aberto, em cima de seu cavalo, perdido em seus pensamentos, ele entrou numa clareira de árvores que lembrava a entrada de uma capela, quando a avistou abaixada atrás de alguns arbustos. Os raios de sol, que penetravam pelos galhos, tocavam nos cabelos de cor tão incomum, que iam do tom prata ao branco. Desceu do cavalo e ficou à espreita. Podia ouvir o som abafado do riso dela.

    ─Prenda, Sophie! - gritava um homem a cavalo com mais três subordinados. ─ Teu pai não ficara nada contente ao saber que se escondeu de nós! Sabe que corre riscos nessas veredas, sozinha e indefesa!

   ─Eu indefesa... - sussurrou desdenhosa.

   Ele a chamou mais uma vez e nada. Ela continuava ajoelhada e curvada, muito bem escondida a não ser... pela suave fragrância de um perfume que a brisa trazia até as narinas de Diogo. Ele não sabia identificar o aroma, mas era inesquecível.

     Irritado, o capanga desistiu, e partiu. Depois de ter certeza de que estava sozinha, ela se ergueu e virou-se um pouco para trás com a sensação de que estava sendo vigiada. Diogo pensava em aproveitar o momento para tentar mais uma aproximação, quando a chegada de outra pessoa o impediu.

   ─Por Deus, Ticiana! Por que demorou tanto? Sabia que os homens de papai estavam nos procurando?

   ─Desculpe minha irmã! Mas eu não conseguia me separar de André. Foi muito difícil me despedir... - ela girou sorrindo feliz.

   ─Não podemos mais facilitar Ticiana! Se o papai descobrir, ele nos matará!

   ─Tem razão, Sophie. Não posso te colocar em risco. Eu e André decidimos fugir para nos casar. Meu amor por ele é imenso! Queremos estar juntos! Para sempre!

   ─Eu posso entender Ticiana. Mas sabe o que papai pensa sobre nos relacionarmos com pessoas diferentes de nossa classe social.

   ─Sim, eu sei. - a moreninha suspirou irritada e a seguir ironizou. ─ Até parece que tu te importa com a opinião dele.

   ─Claro que não! Mas se ele descobrir é bem capaz de arranjar um marido para ti. Tu já tem dezesseis anos e ele anda dizendo que tu vai criar os sobrinhos, que eu ainda não tenho, e nem quero. Ele já te considera muita velha para casar-se. Logo, eu no ponto certo. - ela resmungou.

Ticiana a olhou com incredulidade, pois não havia pensado nisso.

   ─Isso não vai acontecer. Antes, eu fujo com André! E se eu fosse uma velha, André não estaria comigo. – defendeu-se ofendida.

Sophie passou a mão na cintura da irmã.

   ─Eu não quis dizer que tu é velha, mas a nossa sociedade diz. Por eles, eu já estou em tempo de me casar e ter uma penca de filhos. A última coisa em que estou pensando neste momento. Foi assim com nossa mãe, tias, avós, bisavós... Vamos para casa. Este assunto me causa angústia!

     O perfume suave se espalhou pelo ar. Diogo sorriu entre divertido, assustado com o que elas conversavam, e encantado por aquela guria esnobe, mas maravilhosa!

   

       ─Se cuidasse melhor de tuas filhas, saberia onde elas andam Emília! E com quem!

A mulher estremeceu com o tom de escárnio, mas continuou com os olhos fixos no seu crochê.

   ─Duas destrambelhadas por aí, sabe-se lá fazendo o quê! Sophie então... essa rapariga é um grande problema! Barbaridade! Desde que veio do Rio de Janeiro só me trouxe problemas. E lá muito mais! Eu deveria ter te colocado num colégio de freiras! Ou tê-la feito se casar assim que suas... Regras (menstruação) desceram. Pequena, audaciosa, e ainda por cima aventureira! Era só o que me faltava! Ela só falta vestir uma bombacha e calçar botas.

   Emília o olhou de soslaio enquanto Everaldo caminhava de um lado a outro na sala com passos lentos e marcados batendo com o salto das botas no assoalho. Morria de medo dele! Sabia do que seu marido era capaz quando estava zangado. Sentira na pele, assim como todos os seus escravos. Menos Luzia e Afroline, sua mãe. Lembrava bem do dia em que fora com ele até o Rio de Janeiro, há dez anos, para a compra de novos escravos para trabalharem na charqueada. Sophie estava com quatro anos de idade. Levou-a junto para passear, mas logo se arrependeu pela viagem de seis dias de barco, cansativa e perigosa.

   No porto havia filas de escravos trazidos nos navios negreiros em condições subumana, maltrapilhos, cansados e famintos. Emília não era a favor da escravidão, dos maus tratos, e de nada que fizesse mal a ninguém. Mas não tinha coragem de externar suas ideias, que dirá lutar por elas. Era uma boa dona de casa, mulher silenciosa, mãe dedicada, mas sem grandes demonstrações de amor e afeto. E não passaria disso. Sua coragem, era dela, pertencia a ela, e ninguém mais precisava ficar sabendo do que ela era capaz.

     No mais, o máximo que sua coragem permitia era se levantar e sair da sala de cabeça baixa. Obedecer a ordens, cumprir suas tarefas, e fazer o que desejava, sem que ninguém tivesse participação de sua intimidade. Everaldo escolhia os escravos. Na sua estância os escravos saladeiros, responsáveis pela salga da carne, morriam rapidamente, quando ela o observou parar encantado em frente a uma escrava imunda, mas tão linda que nem mesmo a mais negra sujeira escondia tamanha beleza. Ao lado dela uma menina de idade aproximada de Sophie. Ela chorava agarrada a perna da mãe com o olhar amedrontado.

    Naquele instante, Emília soube que aquela mulher seria a amante preferida de seu marido. Ele gostou do nome dela, Afroline, deu-lhe um cargo na cozinha, mordomias como, boa comida, roupas limpas, e um lugar cativo na cama dela no quarto nos fundos do curral. Emília sonhava toda a noite que a colocava no tronco e a chicoteava até a morte. Afroline conseguira tudo, o que ela como esposa, jamais teve de Everaldo. Atenção, afeto, e por fim amor. Depois da chegada de Afroline, Everaldo se tornou exclusividade daquela escrava rainha capaz de revirá-lo do avesso.

      ─Se eu souber que algum de meus homens tocou em Afroline, será executado sem piedade pelas minhas próprias mãos!

Então, Afroline também tinha o respeito de todos na Estância das Magnólias.

Emília foi arrancada de suas divagações e o olhou assustada quando ele disse:

   ─Mas eu já tenho a solução. Um marido para cada uma antes que seja tarde demais. Ticiana já está passada, e logo mais Sophie estará também. Na minha última viagem ao Rio de Janeiro...

E Everaldo se lembrou do encontro que teve com um jovem rico e poderoso, herdeiro de muitas terras destinadas a plantação de cana de açúcar em Campinas, que passava uns dias no Rio de Janeiro, para um encontro com o Regente Imperial, e para compra de novos escravos.

    ─Sinto muito pela morte de teu pai, Dario. Um grande homem! O conheci numa visita dele a Porto Alegre na casa do nosso amigo em comum Pedro Alvarenga há dois anos.

     ─Sim, ele me contou, e também me disse que conheceu suas filhas e que estavam em idade de se casar. Duas lindas moças. Mas com a morte dele, não tive tempo nem cabeça para ir ao Sul conhecê-las. - Dario o fitou nos olhos com um brilho de grande interesse.   ─Ainda estão livres? Preciso de uma esposa. Quero um filho macho. Já estou com vinte anos, mais do que na hora de ser pai. Faço uma boa proposta para uma união vantajosa para ambos.

     ─Sim, estão. De quando vi teu pai até aqui, uma já está passando do ponto com dezesseis anos, e a mais nova com quatorze.

Dario sorriu. Um sorriso irônico e maldoso. Seu olhar perscrutador. Era um jovem dinâmico, cheio de energia para tomar conta de tantas terras, e tinha uma má índole vinda de sua alma.

     ─Me interesso pela mais nova. Virgem?

     ─Com toda certeza. - Everaldo ficou em silêncio por um momento. Estavam jantando na casa de um amigo em comum, com muitos convidados naquela noite. Todos à mesa grande e farta, onde só falavam do império e de riquezas. ─Só tem um problema... não posso te vender gato por lebre, então...preciso ser sincero contigo, tchê.

Depois de ouvir a confissão de Everaldo, Dario pensou por alguns segundos, muito sério.

     ─Se ela é bonita como diz, valerá à pena. Sendo assim como ela é, não me causará problemas. Me dará filhos saudáveis! Faço-lhe uma boa proposta e tão logo eu possa me livrar de minhas responsabilidades por alguns dias, irei até o Sul.

      ─Mas te apressa tchê, essa guerra entre o Sul e o Império é questão de tempo.

      ─Guerra nenhuma atrapalhará meus planos, sejam eles quais forem.

   

    Diogo a encontrou duas semanas depois numa situação muito perigosa. Disparou com o seu cavalo e seus dois amigos atrás dela ao vê-la correndo pela mata de mãos dadas com duas crianças escravas uma de cada lado. A lua clara dava uma luminosidade incrível àquela cena que seria estonteante não fosse tão perigosa. Havia uma expressão de horror na face dela que o deixou alarmado.

   ─Mais rápido, crianças! - ela ouvia os cascos dos cavalos dos inimigos cada vez mais próximos.

    Diogo fez sinal para que os rapazes acelerassem os cavalos e numa rapidez espantosa arrancaram as crianças de suas mãos. Ela pensava em gritar por socorro, mas Diogo pegou-a pelo braço com força bruta e segura, e colocou-a em cima de seu cavalo com facilidade, calando-a com a mão na boca.

   ─Vamos te ajudar. Não grite! Para onde meus amigos levam as crianças?

Ela concordou entre aliviada e incomodada com aquela proximidade inesperada sentada em frente a ele.

    ─Na Vila das Sombras. Ia deixá-los perto do rio para que viessem pegá-los. - ela sussurrou por ser um lugar secreto e, também, de conhecimento de poucos. Um Quilombo criado pelos negros e brancos simpatizantes da libertação dos escravos na região.

   Diogo assentiu, fez sinal para os amigos e disparou com ela para longe. Percebeu os capangas atrás dele.

   ─O que eles fizeram?

   ─Roubaram para fugir. São irmãos! Pertencem aos nossos vizinhos. Se os pegarem, estarão mortos!

Ele suspirou e esporeou o cavalo para que o animal corresse ainda mais rápido, ou os dois seriam mortos pelo capitão do mato e seus capangas.

   ─Pare o cavalo! Deixe-me descer!

   ─Não! Tu vai sofrer as penalidades do teu ato.

   ─Faça o que estou mandando! Eu sei o que estou fazendo!

E numa agilidade impressionante ela pulou do cavalo assim que sentiu o animal desacelerar e correu até uma grande clareira e parou.

    Alisou o vestido rosa pálido simples, estilo medieval, de perfeito caimento em seu corpo, principalmente pelo corpete, ajeitou os cabelos preso numa trança de lado, e se voltou para trás.

   ─Vá embora, ou o meu esforço terá sido em vão!

   ─Não vou deixá-la sozinha.

   ─Então se esconda, mas suma, agora!

Ela se voltou no exato momento em que quatro homens a rodearam com seus cavalos. Sorriu docemente.

   ─Algum problema, senhores?

   ─Onde estão os negrinhos que estavam com a prenda? Temos ordem de levá-los até seus donos para os devidos castigos!

   ─Crianças? Comigo?

   ─A prenda sabe do que estou falando, já que ajudou aqueles pestes a fugirem!

   ─Tem provas de que eu estava com eles?

   ─Teu pai não gostará nada em saber que os ajudou a fugir! Para onde eles foram?

   ─Meu pai jamais duvidará da palavra de sua filha! E ele não gostará de saber a maneira como o senhor está me tratando.

O capitão do mato olhou-a de maneira estranha, mas assentiu resignado. Ela o conhecia, e ele não queria comprar guerra com Everaldo, um homem tão influente em Viamão.

   ─Peço perdão, prenda Sophie. Deixe-nos acompanhá-la em segurança até sua casa como uma retratação.

   ─Desculpado será, se me der um cavalo. Estou muito cansada.

Com uma expressão de desagrado, mas ao mesmo tempo feliz em poder fazer algo por aquela moça de rara beleza, o capitão do mato fez um de seus homens descerem do animal, ajudou-a a montar e acompanhou-a até sua casa.

Diogo a seguiu a distância por precaução. Não confiava naqueles homens. Mas aquela menina era de uma assombrosa coragem.

    Alguns dias mais tarde, Diogo precisou ir até o Quilombo vale das Sombras (No período de escravidão no Brasil (séculos XVII e XVIII), os negros que conseguiam fugir se refugiavam com outros em igual situação em locais bem escondidos e fortificados no meio das matas. Estes locais eram conhecidos como quilombos), lá ninguém se atreveria a invadir. Os que tentavam, eram mortos. Teve uma surpresa ao entrar numa das cabanas feitas pelos próprios negros, com o uso de paus de forquilhas para a sustentação da cobertura com a ausência de janelas ao som de uma voz que já conhecia muito bem. Sophie andava de um lado a outro no espaço pequeno, onde várias crianças negras estavam sentadas no chão de terra batida a ouvindo com atenção. Ao lado dela um padre jesuíta que a auxiliava naquela tarefa.

   Ele encostou-se à parede com uma expressão surpresa. Numa rápida contagem confirmou trinta crianças. Ela ensinava as vogais e eles repetiam com ela uma a uma com tom de devotamento. As crianças estavam encantadas por ela, assim como ele. Ela seria odiada pela comunidade escravagista, e quem sabe até assassinada se a vissem ensinando crianças escravas.

 No começo de 1570 muitos dos negros chegaram ao Brasil muito bem instruídos para o cultivo das lavouras de cana de açúcar. A maioria eram islâmica, falavam árabe, sabiam ler e escrever e entendiam a palavra do Alcorão, o Deus Alá. Mas depois de muito tempo como escravos no país, sem estudo e com a mistura das raças e outras nacionalidades, tornaram-se analfabetos. O que os escravagistas queriam. Um escravo inteligente era sempre um problema. Alguns grupos de escravos fugitivos criaram tribos agressivas capazes de caçarem os próprios negros e negociá-los com os brancos. Era algo absurdo demais, pensava ele. Mas chegaram a lhe dizer, que era uma maneira de se protegerem da escravidão e dos maus tratos.

   ─Melhor tu sair Diogo. Venha tomar um mate, um trago de canha (cachaça). – o preveniu Aloísio que o acompanhava. ─Dizem que ela odeia intromissão nas aulas dela. Principalmente do capitão do mato. - riu divertido de sua própria brincadeira.

Naquele lugar se um capitão do mato ousasse entrar era morto e despedaçado.

   ─Essa guria é surpreendente!

   ─Sim, mas não é para ti. Não te esqueça de quem ela é filha. Eu ouvi uns boatos que ela está comprometida. Parece que o pai dela quer “ampliar” sua riqueza com alguém de fora do estado.

Diogo o fitou descrente e voltou a olhá-la. Ela só poderia se envolver com alguém de sua condição social. Com uma sensação de profundo desgosto, saiu porta fora.  Tinha coisas mais importantes a fazer, ajudar a tratar um escravo fugido que chegou muito machucado, do que ficar endeusando uma guria riquinha e mimada. Mais tarde, houve uma festa comemorativa com danças que recriavam a cultura e a história daquele povo tão sofrido. Em volta da fogueira, homens e mulheres dançavam ao som dos tambores encenando uma época de ouro de seus ancestrais na África.

   Diogo a viu conversando com uma jovem. Viu-a negar com a cabeça, e ser puxada para a roda de dança. A moça lhe dizia o que fazer e como fazer. E aos poucos, ela deu os primeiros passos, dois para cada lado e uma rodada sobre si mesma. E naquele compasso, ela dançou em volta da fogueira com as outras mulheres, sorrindo e se divertindo. O vestido de mangas boca de sino, e a saia rodada na cor verde escuro, se movimentavam harmoniosamente como ela. Diogo segurou a respiração e profetizou:

    ─Jamais verei alguém tão bela assim!

   Uma hora mais tarde, Sophie caminhava com pressa quando esbarrou em Diogo que a agarrou entre surpreso e zangado. Se não fosse rápido, ela cairia.

   ─Oh é tu! Bem oportuno já que gostaria de agradecer por tua ajuda naquele dia...

   ─Sou, eu sim. Deve ter sentido pelo cheiro, já que continua sem me olhar nos olhos.

Ela suspirou exasperada.

   ─Acontece que eu não dou o... privilégio a ninguém!

   ─É mesmo? E tem que fazer o quê, para merecer esse... privilégio?

   ─Tu é muito desagradável e pelo visto muito mais cego do que eu! - ela fez menção de se afastar, mas ele a segurou.

   Não podia ser! Levantou a mão e passou em frente ao rosto dela. Nada! Ela não moveu o olhar. Ele queria morrer de vergonha! Por isso a moça dançava ao seu lado cuidando dela e o vestido para não fossem em direção da fogueira.

   ─Acredito agora que esteja pensando num pedido de desculpas.

   ─Sou um grande estúpido!

   ─Concordo.

   ─Que idiota eu fui! Fiquei tão impressionado com tua beleza que não...

Ele falou demais e quando percebeu, ela já estava sorrindo. E que sorriso encantador!

   ─Deveria agradecer o elogio, guria!

   ─Tu deveria se desculpar, guri.

   ─Tem razão. - ele a soltou sem querer soltar. ─Perdoe-me Sophie.

Ela se arrepiou e estremeceu. O tom da voz dele dizendo seu nome foi direto em seu coração.

   ─Perdoo se parar de me olhar com essa devoção e me levar para casa na garupa do seu cavalo. Estou cansada, faminta e com frio.

   ─Terei o maior prazer! - ele tirou o poncho e colocou por cima dos ombros dela. ─Quanto a devoção acho que está enganada... - colocou o chapéu dele na cabeça dela.

   ─Um cego nunca se engana quando recebe um olhar direto em seu coração.

Ele sorriu abertamente. Ela também e delicadamente levantou a mão até a face dele.

   ─Posso?

   ─Não precisava nem perguntar.

Com a ponta dos dedos, ela tocou cada traço daquele rosto másculo, testa, sobrancelhas, olhos, nariz, faces e quando desceu aos lábios dele, Diogo já estava embriagado pelo toque e o perfume nas mãos dela.

   ─Parece um peão bonito Diogo.

   ─Até agora prenda alguma disse o contrário.

   ─E convencido.

   ─E tu cheirosa como uma flor... Que perfume é esse?

   ─Uma longa história!

   ─Gosto de histórias longas.

Ele pegou-a pelo braço e se pôs a caminhar ao seu lado lentamente até onde estava o seu cavalo. Queria ficar o máximo possível com ela.

    ─Nasci cega. Até os cinco anos de idade tive que me adaptar e aprender a me virar dentro da minha própria escuridão. O que foi muito difícil. Então um dia fui visitar uma tia no interior e encontrei flores caídas pelo quintal. Gostei do perfume, eram magnólias. Pedi ao meu pai que as plantasse no nosso terreiro. Ele disse que dariam árvores enormes, e eu disse, pode-as. E então passei a usar as flores esmagadas em minhas mãos para que me achassem com facilidade quando eu saísse dos limites permitidos. E assim a estância ganhou um novo nome, Estância das Magnólias, embora muitos não gostassem da mistura de cheiros do charque e das magnólias com outras flores - ela sorriu e logo após ficou séria. ─Mas hoje se tornou um problema, esse perfume está impregnado em mim e fica muito fácil me encontrarem. Entende? Mas sempre tem alguém por perto que me serve de olhos para os imprevistos mal vistos.

Ele parou de andar e segurou-a delicadamente pelos ombros. Aqueles olhos eram maravilhosos e cheios de luz na sua completa escuridão. Como poderia algo assim, se perguntou?

   ─Com pena de mim guri? - havia tristeza em seu tom.

   ─Pena nunca! Admiração! Tu é excepcional!

   ─Pelas coisas que eu faço? Sei de uma coisa, não vim de férias neste mundo. Vim aprender, trabalhar e vencer a mim mesma nessa escuridão.  Quantos salvam escravos todos os dias, salvam suas vidas de si mesmos? Sou apenas mais uma. Sei do meu valor como ser humano. Mas como mulher... somos tão marginalizadas perante essa sociedade machista. E uma mulher cega ainda é pior!

   ─Eu daria qualquer coisa para tornar teu mundo ainda melhor.

Ela sorriu emocionada.

   ─O que, por exemplo?

   ─Meus olhos para que tu pudesse ver tudo que deseja, pois fazer, não tenho dúvidas de que para ti, nada é impossível.

Ela deixou uma lágrima escorrer pela face pálida.

   ─Nunca me disseram algo tão lindo...

   ─Que bom que fui o primeiro.

   ─Cuidado. Tu pode se apaixonar.

   ─Tarde demais. Já fui, totalmente, descuidado.

   ─Até que ponto?

   ─Até as últimas consequências, minha guria. - levou a mão dela aos lábios e beijou dedo por dedo perdido em suas emoções, e naquele perfume inebriante, impregnado nos poros dela.

   Diogo acordou com a cabeça explodindo e com aquele aroma de flores em suas narinas. Levantou-se da cama lentamente e foi até a janela. Os galhos da magnólia estavam altos e havia flores nela. Pegou uma e cheirou, quando se lembrou de algo. Foi para o banheiro e pegou a toalha. SR.

   ─Sophie, é cega! Que doideira é essa? Que sonhos loucos são esses? E quem é o tal Diogo? Somos diferentes, não pode ser eu... Devo estar tendo um surto psicótico consequência da bebida ou eu... estou vendo algo além do meu entendimento.

Deixou de lado os questionamentos, sentou-se na cama com o laptop e passou a teclar rapidamente tudo que ainda estava vivido em sua memória. Horas mais tarde, ligou para seu terapeuta e amigo desde o tempo da universidade.

   ─Quem é vivo um dia liga. - disse Junior do outro lado da linha.

   ─Ainda estou... - brincou Diogo. ─Preciso de ajuda... - e num breve resumo contou o que estava acontecendo.

   ─Você continua bebendo Diogo?

   ─Estou falando sério! Sim... não...quer dizer, não como antes.

   ─Não dê tanta importância, Diogo. São apenas sonhos...

   ─Não têm nada a ver com o álcool. Tanto faz bêbado ou são, eu sonho igual. Preciso entender o que está acontecendo. Algo me diz que são muito mais do que sonhos. Ninguém sonha em sequência como se estivesse vendo um filme, uma série, uma novela. Eu sei do que estou falando!

   ─Pelo seu nervosismo e a ansiedade na sua voz... parece bem sério...

   ─Muito sério! Eu vejo tudo muito nítido, muito colorido... Os rostos... eu posso sentir o toque, eu sinto os aromas... é algo surreal!

Houve uma pausa.

   ─Eu não sei o que dizer, mas vou passar o telefone de um amigo que é Psicanalista e Terapeuta de Vidas Passadas. Talvez ele possa ajudá-lo Diogo. O que eu posso receitar é: pare de beber.

   ─Junior, estou num lugar afastado, sozinho, e preciso de certa...

   ─Que música é essa que está tocando? - indagou Junior do outro lado interrompendo a conversa. ─Ouvindo música clássica agora? - ele riu.

Diogo ficou todo arrepiado, os cabelos de sua nuca pareciam se movimentar.

   ─Como se chama essa música, Junior?

   ─Ora, você deve saber já que está ouvindo...

   ─O nome da música! - gritou.

   ─Fur Elise, de Beethoven, composta entre 1808 e 1810... Por que, Diogo?

   ─Não é eu que estou ouvindo esta música. Ela simplesmente começou a tocar e vem do salão e estou sozinho na casa. Pelo menos é o que eu penso...

   ─Espera; explica-me melhor...

   ─Depois... preciso descobrir quem está tocando o piano guardado naquela sala... - desligou o telefone e subiu as escadas como se voasse.  A música alta invadia todos os ambientes. Parecia ter vida própria flutuando pelos ares. Mais um pouco e ele seria capaz de ver as cifras musicais em 3D. Ele escancarou a porta da grande sala, bruscamente.  A canção ficara agressiva e intensa, o som era ensurdecedor.

     A sala vazia. A tampa do piano levantada. Um profundo silêncio se instalou. Restara somente o som da respiração ruidosa de Diogo.

   ─Seja quem for que está de gracinhas... eu vou descobrir. Não acredito em fantasmas. E mesmo que você seja um fantasma, não vai me assustar! Eu não estou maluco... Junior também ouviu a música. Deve ter algum aparelho de som potente pela casa e alguém a fim de brincar comigo. Mas eu vou descobrir. Não servirei de palhaço de ninguém!

  E numa avidez beirando a insanidade, Diogo passou a investigar canto por canto daquela casa, como se procurasse um tesouro, ou uma bomba. Teve um sobressalto ao se deparar num dos quartos com uma escadinha pequena e comprida que levava para um andar acima, o que parecia ser um sótão.

Com certa dificuldade, subiu, pois era grande e alto para o tamanho da escada. Abriu facilmente o alçapão. A claridade penetrando através das janelinhas, iluminavam móveis de portes pequenos, cobertos por lençóis amarelados do tempo. Teias de aranhas por toda a parte e um cheiro forte de mofo.

    Constatou as manchas de água, provavelmente da chuva que se infiltrava pelas goteiras no velho telhado precisando de restauração. Foi levantando um a um dos lençóis, descobrindo cadeiras de balanço, mesinhas de madeira feitas à mão. Surpreendeu-se com uma cadeirinha em formato de cavalinho de pau de uma criança, também, feitos artesanalmente. Encontrou um baú. Abriu com um soco seco. Dentro dele vários vestidos estilos medievais. Um xale branco de tricô comprido e um vestido vermelho cereja de tecido acetinado trabalhado com fios num vermelho mais escuro, encantador com mangas de sinos e corpete. Sophie tinha um estilo diferente para se vestir, extremamente, feminino. Isso ele percebera em seus sonhos. Aquelas peças tinham o perfume de magnólia! Quando viu um modelo azul turquesa, justo, com decote canoa, mangas sinos, corpete, saia cheia e longa, de muito bom gosto, teve um arrepio. Era o mesmo que ela usava num dos seus sonhos.

   Ao puxar um na cor rosa pálido, estremeceu violentamente. Ela usava na fuga do bosque com as crianças.

   ─O que... está acontecendo aqui?

Ele levantou os olhos e parou em algo a sua frente. Largou os vestidos em cima da cadeira de balanço e foi desviando dos entulhos até chegar à parede. Arrancou o lençol do que ele desconfiava ser um quadro. Empalideceu e ficou tonto. Jamais vira uma pintura tão perfeita e fiel ao retrato de alguém.     Sophie olhava para o nada com o rosto levemente de lado, ao fundo um rio. Os cabelos num tom prateado brilhavam com a luz do dia e lembravam o Sol, seu olhar azul, era uma extensão do céu. No pescoço delicado ela usava um cordão preto com um pequeno coração de ouro. Ela tinha uma expressão de paz e felicidade tranquila.

   ─Você existiu... Não é fruto da minha imaginação! -Tirou o quadro da parede. ─Você não pode ficar escondida desta forma.

Constatou que ela usava o vestido vermelho cereja que estava ali sobre a cadeira, o que a deixava ainda mais linda!

   ─Eu queria entender, porque está acontecendo isso comigo... Se eu sou o tal Diogo, me diga... Seja eu ou não quem a pintou, foi um verdadeiro artesão exibindo a sua beleza!

Ele saiu daquele sótão com dificuldade segurando o quadro com cuidado para não o estragar. Lá embaixo, colocou-o em cima da lareira.

   ─Seu lugar é aqui, bela Sophie, alegrando este mausoléu cheio de lembranças. - suspirou nervoso. ─Preciso de ar. Preciso beber!

E ele saiu apressadamente. A noite se aproximava. Na penumbra da varanda, o vulto flutuante iluminado por uma estranha luz, se aproximou do quadro, e deixou uma lágrima rolar.

                                      

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