Capitulo 2

                                                         2

     "O homem retorna à vida várias vezes, mas não se recorda das suas pretéritas existências exceto algumas vezes em sonho. No fim todas essas vidas lhe serão reveladas."

Texto egípcio, 1320 A.C)

    

           (1835) Três dias antes de 20 de setembro.

     Diogo ouvia atentamente o que Barnabé, o escravo alto de vinte anos lhe dizia.

    ─Josias ouviu tudo. Ele trabalha na casa de um amigo do sinhô Gomes Jardim. Ele me disse que vai ter uma reunião na loja... uma tal de... Maçônica Filantropia e Liberdade... acho que é isso, que vai decidir pelo início da revolta.

    ─É eu sei, ouvi sobre essa reunião e é isso mesmo. Porto Alegre já está sitiada. Pelas negociações paradas há meses, e as ameaças dos estancieiros de Pelotas e toda a região, até que demorou a decisão pelo confronto. Eles já estão convocando os homens para a guerra. O que era mais do que esperado.

Barnabé assentiu com os olhos arregalados.

─Sinhô acha que é verdade os boatos de que os brancos vão m****r os negros pra guerra em seus lugares? Parece que aos negros não será dado o direito a arma alguma a não ser as lanças de madeira.

    ─É o que estão falando. Eles têm medo de uma rebelião de escravos em meio à guerra, por isso querem evitar outro tipo de arma. Acredito que alguns cagões vão enviar seus escravos! O que dizem é que, vão criar um batalhão de lanceiros negros como o Império fez usando os escravos como bucha de canhão para morrer na frente. Covardes! Prometeram que quando a guerra terminar; darão liberdade aos escravos e suas famílias.

    ─Eu não quero ir pra guerra, sinhô. Não acredito neles.

    ─Nem eu! Duvido muito que essa promessa seja cumprida, conhecendo algumas cabeças envolvidas, e depois tchê, vai saber quantos irão sobrar no fim de uma guerra que promete muito sangue. Vou me encontrar com Antônio e Aloísio.  Partirei para essa guerra, com um único propósito, lutar pelos nossos ideais, meu amigo! Liberdade!

   Barnabé assentiu entre confiante e temeroso e entrou na casa onde era escravo. O rapaz subiu no cavalo e partiu pela campina a caminho do prostíbulo de chinocas (Casa de prostituição) de Deusa. Lá encontraria sua amada que o esperava para o último encontro antes de sua partida. Ajeitou o chapéu na cabeça, e enquanto corria velozmente pela noite escurecida com uma chuva fina e fria caindo, imagens vinham a sua mente.

                        Um ano antes (1834)        

    ─Venha trabalhar na estância de Everaldo ao invés de ficar por aí com esse bando de vagabundos fazendo esses desenhos ridículos vendendo a troco de nada para o tal jornalista que ninguém sabe quem é, ou se ele existe mesmo! Chegaste ao cúmulo de esconder um negro em nossa casa por anos, embaixo do meu nariz! - Almir o empurrou fazendo com o que o rapaz batesse com as costas à parede.

Eva se interpôs entre eles.

    ─Deveria ter orgulho do teu filho, Almir. Diogo luta contra as injustiças! E tu não vai bater nele! Hoje não!

    ─O senhor não vai me bater! Eu não vou permitir! Nunca reajo por ser meu pai, mas agora chega! -disse ele zangado. ─Tenho dezoito anos, sou um homem e não um piá que o senhor acha que pode bater quando quiser. Jamais vou trabalhar num lugar como aquele que não tem o mínimo de caridade com seus escravos e ainda os enterram entre a merda e o sangue do gado!

    ─Ora, deixe de bobagens! Os negros foram feitos para serem escravos! Do contrário por que nasceriam daquela cor? Fortes como touros para suportarem o tempo e o trabalho duro! E depois aprenda; um homem de verdade tira o seu sustento com as mãos. Quem manda aqui é eu! Tu come da minha comida! Eu trabalho o dia inteiro para sustentar esta casa. Tua mãe lava, passa e cozinha para algumas mulheres, enquanto tu fica por aí, como um boa vida com nada para se preocupar correndo atrás dos direitos dessa negrada!

    ─Eu nunca ouvi tantas... barbaridades como agora. Eu vou sair e fingir que não foi meu pai quem as disse!

Almir bufou furioso.

     ─Isto! Saia e não volte mais! Fique pelo prostíbulo de Deusa, onde tu deve gastar o tal dinheiro que nunca ninguém vê dos tais desenhos inúteis!

     ─Por favor, Almir! – ela fitou o filho com uma súplica. ─Vá dar uma volta filho. Teu pai e eu vamos conversar.

     ─Eu vou mãe, quem sabe eu siga o conselho dele. - Aquelas discussões eram rotineiras e ultimamente passavam para a agressão física. ─Se querem a verdade, aqui, nunca me senti em casa.

Eva lançou-lhe um olhar desolado. O rapaz colocou o chapéu na cabeça e saiu antes que a situação piorasse.

    ─Diogo, tu ainda vai me arranjar problema com esses encontros às escondidas na minha casa. - disse Deusa assim que o viu entrar com seus amigos, Antônio de dezenove anos, alto claro e acima do peso, Aloísio de estatura mediana, vinte anos, magro e careca tão jovem, motivo para tantas brincadeiras, e Tião um negro bonito de dezenove anos, que ultimamente vinha os acompanhando com mais frequência.

    ─Não se preocupe Deusa. Tua casa é uma das mais protegidas do Rio Grande do Sul. – ele olhou em volta, homens de vários lugares do país, unidos pela mesma causa, a luta pela liberdade dos escravos, entre eles políticos e jornalistas.  ─Ou tu ainda acredita que com todo este povo influente alguém teria coragem de atentar contra ti?

     ─Aqui, dentro da minha casa sou forte, mas fora dela sou a parte mais fraca. Não esqueça. Para essa sociedade machista, sou apenas uma velha chinoca dona de um prostíbulo que só tem serventia para uma coisa, vender sexo! - ela riu irônica. ─Mas hoje, estou recebendo até as prendas mais conhecidas e direitas da cidade, o que me deixa em pé de igualdade com elas, depois que nós prostitutas, fomos afastadas do convívio geral com a comunidade.

Ele assentiu, ela tinha razão. Diogo olhou em volta e se surpreendeu com a quantidade de mulheres estranhas em meio aos homens. Os debates começavam, e um deles, o porta voz, fazia um discurso num tom apaixonado.

     ─Para reconhecer a Independência do Brasil, a Coroa inglesa exigiu o fim do comércio de escravos e o Brasil assinou um acordo, em 1827, comprometendo-se a acabar com o navio negreiro. Mas esse acordo não foi cumprido, o que não é de se estranhar neste país, e o tráfico continuou e continua! Quem vai querer pagar salário aos índios, escravos e trabalhadores? Os ricos? Não...!

      Ouviram-se os gritos inflamados. Aproveitando, Diogo fez uma inspeção ao redor, quando seu olhar parou em três mulheres, uma linda negra vestida de maneira humilde, mas diferentemente das escravas, uma moreninha de rosto suave e terno, e finalmente na moça de cabelos num tom prata que lembrava o tom da lua cheia e olhos de um azul incrível. A pele dela era rosada, o nariz pequeno arrebitado, as bochechas cheias e o queixo delicado. Era um rosto em perfeita harmonia! Seu coração teve um baque violento. Ela estava sentada entre as duas, com as costas apoiada a parede, compenetrada ouvindo o que o jovem dizia. Ereta, suas mãos sobre o colo, ela parecia estudá-las com atenção. Ele estava fascinado por rara e tamanha beleza. E havia algo mais que ele não conseguia decifrar, uma energia intensa irradiando daquela prenda. Aloísio, percebendo o olhar de interesse do amigo, lhe disse ao pé do ouvido.

    ─Esqueça. Ela é filha do patrão do teu pai. Tu não a conhece? - ele continuou ao vê-lo negar com a cabeça. ─ Tem quatorze anos e acaba de chegar do Rio de Janeiro. Parece que estava estudando música. É bem influente na corte. Dizem que trouxe algumas novidades diretas da regência sobre os escravos e os altos impostos do charque.

    ─Tu fala como se fosse um estancieiro, como se te importasse o preço do charque! E escravos e charque estão muito ligados nas terras do pai dela. Tanto a ponto de matá-los pelos maus tratos e o trabalho desumano com o sal unido com o sol. Como tu sabe tanto dela e eu nada?

    ─Talvez porque eu goste de saber da vida alheia. Tu não vive me chamando de fofoqueiro?

Diogo riu. Aloísio gostava de uma boa fofoca.

    ─Buenas, eu não reparo na vida de ninguém, e muito menos em nada que esteja ligado ao meu pai. Não concordo com o que ele diz ou faz. Graças a Deus! Ou quem sabe hoje eu seria um capataz como ele quase é! E por que ela está aqui?

    ─Pediu para um dos nossos amigos, André, para participar. É uma pequena revolucionária! Dizem que faz coisas que até o Senhor dúvida pelas causas que acredita. A prenda é um fenômeno! Contam que aprontou muito com os nossos colegas abolicionistas no Rio de Janeiro nos últimos dois anos. Inclusive ajudando na fuga de escravos. Jovem, linda e corajosa! E parece que vive em guerra com o escravagista do pai dela.

   Um ponto para ela! Realmente, Diogo percebeu que pouco se importava com a vida alheia ou saberia da existência daquela moça. Cada vez mais intrigado, ele resolveu se aproximar delas. A escrava baixou o rosto assim que o viu parar a sua frente. A moreninha lhe sorriu amistosamente, a outra não o fitou. Continuou parada com o olhar fixo no palestrante. O que o irritou profundamente.

    ─Algum problema Ticiana?

    ─Não sei, depende do que o peão queira nos dizer.

    ─Buenas, se me permitem me apresentar eu sou...

    ─Agora não! - ordenou a moça do incrível cabelo prateado. ─Não quero perder a palestra!

Ele se indignou.

    ─Poderia ao menos, me olhar nos olhos quando falar comigo?

    ─Não, não poderia, nem que eu quisesse! - ela exclamou num tom duro fazendo as outras duas rirem. ─E, por favor, cale-se para que eu possa ouvir.

Ela não se dignava a olhá-lo. O que ele achou ainda pior do que ser rejeitado. Tentou argumentar, mas foi puxado por um importante orador para discutirem assuntos sérios.

   Depois, pensou ele. Depois eu te pego de jeito guria esnobe!

No pequeno palco improvisado com mesas no meio do salão, Diogo começou sua palestra

    ─Aqui, agora, eu não sou branco, negro, amarelo, e sim um cidadão dessa terra, do mundo! Estou aqui como tu, como qualquer um aqui nesta sala, estagiando na escola chamada vida! E nela, como humanos, precisamos tratar a todos com igualdade!

Alguém gritou da plateia.

     ─Conta a nossa história!

Diogo olhou enviesado para Tião que riu divertido, principalmente quando ele fez sinal que ia tirar a cabeça dele fora.

     ─Este é o momento as pessoas saberem do que um homem sozinho pode fazer, que dirá dezenas, centenas!

Diogo estava muito desconfortável com os gritos e pigarreou. Ouviu o silêncio na sala, as pessoas, a espera de que ele continuasse. Passeou os olhos em volta e parou na garota de cabelos prateados.

      ─Não posso.

Tião pulou para cima das mesas e o empurrou de uma maneira engraçada.

      ─Eu posso! Não reparem, mas este peão sempre foi muito modesto quando se trata de falar de seus feitos. E as pessoas aqui merecem saber. Quando nos conhecemos, eu e Diogo no armazém do Castro, numa tarde fria, eu apanhava do meu dono porque peguei uma banana. Diogo me olhava assustado. Depois, com o tempo me contou que estava espantado em me ver quase sem roupa naquele frio, e ainda apanhando por causa de uma banana. Fui levado de arrasto pelo meu dono até a chácara onde eu vivia. E ele... - fitou o amigo. ─Me seguiu. Cinco anos de idade e eu seis. Ele me roubou do meu dono, acreditem se quiser! Tenho certeza de que foi comigo, naquele dia, porque o próprio Diogo me disse, surgiu à vontade, essa gana dele lutar pela nossa liberdade. - riu emocionado como a plateia. Diogo estava encostado na parede incomodado com toda aquela atenção. ─E pasmem senhores, senhoras e senhoritas, eu fiquei por dois anos escondido no quarto dele. –ouviram-se murmúrios de incredulidade. ─Me transformei num prisioneiro de um algoz do bem. Que me protegia e dava abrigo, me ensinava a ler; me alimentava, e que assim que conseguiu, com a ajuda de pessoas maiores do que nós...- ele segurava o pranto bravamente. ─Me levaram para um lugar seguro, que a maioria aqui presente, sabe onde é. Diogo tinha muito receio de que o seu pai me descobrisse, e foram muitas vezes o perigo. E durante esses anos todos, ele me ajudou a juntar dinheiro para que eu pudesse, finalmente, comprar minha carta de alforria. Meu antigo dono morreu, mas sua senhora, uma boa alma aceitou o dinheiro, e me deu a minha liberdade, aqui, na minha mão. - e ele tirou do bolso do casaco a sua carta de alforria. Havia lágrimas nos olhos dele, e a plateia foi ao delírio. ─Eu conheço Diogo, ele nunca gostou de ser o centro das atenções, mas é preciso que se fale, mais e mais, que existem pessoas boas como ele. É preciso que se fale para os meus irmãos, que existem pessoas capazes como ele, e vocês aqui esta noite, de resgatar a nossa esperança, a nossa fé, e principalmente a acalentar o sonho de liberdade! Devo a minha liberdade a ele. E vou contar, sempre, essa história aos meus filhos, netos e bisnetos, porque eles hão de nascer num país onde a liberdade lhes será permitida e jamais negada!

  Diogo foi ovacionado com gritos, aplausos e parabéns. Ele sorriu sem graça, mas com a atenção voltada naquela prenda. Ela continuava sem olhá-lo. E isso realmente mexeu com ele. Saiu da sala com passos rápidos.

   Diogo acordou e se espreguiçou com um bocejo, virou-se de barriga para cima e fitou o teto.

    ─Sonho estranho... Guerra, escravidão... - lembrou do rosto da linda garota. ─Quem sabe um novo projeto. Algo diferente se delineando nessa mente de gênio! - sorriu arrogantemente. Um traço dominante de sua personalidade.

    Levantou, se ajeitou, preparou um café, e a seguir pegou seu laptop e passou a escrever cada detalhe do sonho. Mais tarde foi ao centro da cidade numa agência de empregos contratar uma empregada que pelo menos cozinhasse. Mas quando disse o local...

    ─Sinto muito, mas ninguém vai aceitar a vaga...

    ─Como assim? Quanta bobagem! Eu preciso de uma empregada! Urgente!

    ─Aquele lugar é mal afamado e... - tentou dizer a contratante, mas ele foi mais rápido.

    ─Escute, você sabe quem eu sou; não é?

A mulher o olhou em dúvida.

    ─Não, não sei. Eu deveria?

    ─Claro que sim! Diogo Dornelles, o escritor famoso!

    ─Sinto muito. Mas nunca ouvi falar... - disse a mulher sem jeito. Por dentro estava furiosa com a expressão autoritária e o olhar arrogante daquele homem.

    ─Pela sua cara bem se vê que nunca deve ter lido um bom livro mesmo! Tenho certeza de que deve passar nas redes sociais jogando ou postando selfs fazendo biquinho... ou quem sabe mandando nudes para homens...

A mulher se levantou da mesa, parou em frente a ele que já estava de pé, e o esbofeteou com toda força.

    ─Seja o Papa, tu não tem o direito de falar assim comigo! Queime naquela casa dos infernos com toda a tua arrogância!

Ele esfregou o rosto e deu um sorriso cínico.

     ─É... como eu disse, se lesse bons livros seu comportamento seria outro.

     ─Vá para o inferno, babaca!

      ─Quer parar de rir Vilma?

      ─Não dá. Muito engraçado te imaginar levando um tapa... mais um entre tantos...E convenhamos, tu pediste! Nem parece o homem que diz, “Que o ponto mais difícil de uma mulher, continua sendo o G, da alma!”

Ele fez uma careta sem graça. Como poderia ter dito aquilo, se nunca conseguira chegar perto desse ponto G? A reação da garota na agência era esperada. Afinal, ele a ofendera. Já levara uns bons tapas e socos durante sua trajetória, de cantores, colegas jornalistas, políticos, e de jogadores de futebol quando exercia a profissão.

   A polêmica fazia parte do seu sangue. Gostava de atiçar, de enfurecer as pessoas, ver a que ponto elas poderiam chegar para defender suas teorias, suas convicções, muitas vezes tão deturpadas quanto elas. Diogo gostava de provocar reações contrárias, de ser ele, o motivo do caos. Porque, ele não sabia. Dizia o que pensava. Não gostava de perder num debate que logo se transformava num bate-boca e por fim pancadaria, e por essas e outras até preso já tinha sido.

     ─Como é cantar essa música de merda, esse lixo, e ganhar tanto dinheiro à custa dos trouxas? - um tapa em cheio na face de uma cantora que conseguiu fama através das redes sociais.

     Você tem malas repletas de dinheiro, notas frias, contratos fictícios. Fez chantagens, comprou obras de arte, terrenos, tem contas em paraísos fiscais, empresas de fachada, mansões, jatos privados e quem sabe até, se não comprou títulos de campeonatos? - um soco de um dos investigados da corrupção da CBF.

     Ali Baba e os seus mais de 40 ladrões. Político nesse país de merda não vai para cadeia. Bom se safar, não é? Deve ser o máximo ser intocável! Mas um dia essa vergonha de político ficar impune, há de acabar! - brincou com um importante nome investigado na lava jato. Resultou no nariz quebrado. É; ele apanhara bastante. Era bom poder rir um pouco de si mesmo. Estava fora do cenário jornalístico há um tempo, se dedicando aos seus livros e no que mais sabia fazer, gastar sem medidas e arranjar processos por dizer o que pensava sem filtro e sem medir as consequências.

    Sempre fora assim. Desde o tempo da escola com os professores, familiares, amigos, com seus relacionamentos amorosos, na universidade, no trabalho, enfim, na sua vida. Era considerado aquele tipo de pessoa de difícil convivência.

     ─Você se considera um homem acima de tudo, e de qualquer suspeita?

Ele a fitou com uma expressão estranha. Vilma era perspicaz e inteligente. Era diferente das mulheres que ele costumava pegar quando queria sexo rápido e sem compromisso. Era exatamente isso que o amedrontava: essa capacidade de uma mulher ser várias ao mesmo tempo, enquanto os homens, sempre os mesmos. Ao mesmo tempo era fascinante, e motivador, tentar conhecer todas elas em uma só. O que ele não tentava de maneira alguma! Ele e seu egocentrismo já eram o suficiente e precisavam de muita atenção.

    ─Não me lembro de ter roubado dinheiro dos fracos e oprimidos, ou seja, do povo. Nem usado a boa-fé alheia vendendo lotes no paraíso.

 Pensando bem... fiz coisas bem piores..., Mas a única pessoa que faço mal é a mim mesmo, pensou ele.

    ─Quem sabe, tu mataste numa outra vida. - disse ela muito séria sem saber por que dissera aquilo.

    ─Você acredita em vida após a morte? Nessas baboseiras de outro mundo?

    ─Acredito sim. Sem espiritualidade a vida perde o sentido. Eu frequento um centro espírita.

    ─Ah é? Então se por acaso encontrar com o meu irmão Dirceu por lá, diga que lhe mandei um abraço e para ele aparecer. Ah, não. Diga que estou furioso com o que ele fez e que se ele aparecer novamente, agora, quem o matará, será eu! - ele foi embora com passos rápidos deixando-a estarrecida e arrependida de ter tocado num assunto que parece tê-lo incomodado tanto.

    Ao estacionar o carro em frente à casa, Diogo fitou a janela e teve a impressão de ter visto alguém parado a ela. Saltou do carro e entrou na casa em direção ao quarto, gritando.

    ─Apareça e de uma vez! Seja quem for se prepare para levar uma surra seu idiota, ou sua louca!

   Nada, nem ninguém. Tudo no mais absoluto silêncio. De repente o som do piano. Foi para sala de música com passos largos, e estava furioso! Sala vazia, mas a tampa do piano estava levantada. Ele sentiu um arrepio passar pelo corpo inteiro.

    ─Não acredito! Tudo que acontece na física e metafísica tem uma explicação lógica e cientifica. Não acredito em Deus, não acredito em fantasmas e muito menos no amor. – seu olhar era de desprezo. ─Acredito no dinheiro, e na força do poder (que ele dá). Por isso que estão todos em guerra. Todos fodidos, em busca do poder, da fama, da glória. Consumindo, adquirindo, matando por mais poder! Jovens sem referências, velhos sem esperança! Porque alguém com mais poder come a inteligência e a sensibilidade dessas pessoas, tirando a oportunidade de mais estudo, saúde e direitos. É assim que se vence, enfraquecendo os menos afortunados para que eles dependam cada vez mais de quem tem, os deixando mais ricos e poderosos.

Era a descrença na raça humana, em tudo que ele via acontecendo no mundo, e em si mesmo. A amargura no seu coração. Era a dor que sentia pela perda da esposa, o fracasso de seu casamento e a morte estúpida de seu irmão. E, o pior, sabia ser culpado dessas duas perdas. Águas passadas não movem moinhos. As duas pessoas que mais importavam em sua vida o deixaram por sua insensibilidade, pelo alcoolismo, e principalmente, por ele ser ele mesmo. Agora era ele e ele. Diogo se embriagou, deitou-se na cama de roupa e tudo e apagou.

O vulto se aproximara da cama e ficara ali, um longo tempo o observando.

                                                    (1835)

   Seu cavalo corria velozmente, como ele mais gostava. Sentia-se livre, voando pelos pagos. Avistou alguém correndo no prado, os cabelos e o xale branco esvoaçando como uma dança, iluminada pela lua cheia muito clara, típicas daquelas noites lindas que só o outono consegue proporcionar. Parou o animal bruscamente e desceu.

    ─Quem está aí?

    ─Vire-se, me olhe e saberá quem é.

Ela se voltou para ele, uma visão de tirar o fôlego. O coração dele falhou uma batida.

    ─Ah é tu. - disse ela com um tom de tédio, sem olhá-lo.

Ela lembrava uma pedra de mármore branca, linda, dura e inflexível, mas por dentro estava tão nervosa que tinha medo de que ele conseguisse ver o tremor de seu corpo no breu da noite.

    ─Sim, eu, o inseto insignificante que tu não se digna a olhar.

    ─Não seja ridículo, peão...

    ─Ah, e agora sou ridículo também!

    ─Ora, faça o favor! - ela fez menção de passar, mas ele a segurou com firmeza.

    ─O que uma esnobe e tão bem protegida, como tu, faz aqui sozinha podendo ser atacada por um animal, ou um maníaco?

    ─Tu é um deles? Porque do contrário não vejo mais ninguém. Me solte agora!

    ─Posso não ter posses como tua família, mas não sou um marginal!

    ─Eu não quis dizer isso...

    ─Mas a forma como me trata diz tudo!

Ela suspirou irritada. No fundo estava nervosa. Sabia quem ele era, como ele era, e a importância dele na sociedade local. Ouvira o que Tião contara sobre ele naquela reunião. Lembrou-se das palavras de Ticiana.

   Ele é um abolicionista ferrenho! Idealista, corajoso, e mais, bonito! Aqueles cabelos e olhos escuros deixam qualquer mulher alucinada. E tem um corpo sob medida!

   O que quer dizer um corpo... sob medida?

   ─Que ele cabe em qualquer mulher. - ela rira. ─ Se não fosse o meu André... com certeza eu não o deixaria escapar, minha irmã. Diogo é uma tentação.

   ─Sinto muito se fui grossa...

   ─Como vou acreditar neste pedido de desculpas quando tu nem me olha nos olhos?

   ─Tu é intragável, guri!

   ─E tu uma guria metida à besta que ofende as pessoas sem ao menos encará-las!

   ─Pois vá sonhando, seu idiota! Isso jamais acontecerá! - ela se soltou da mão dele, que ainda a segurava e com passos firmes sumiu na noite.

 Furioso ele subiu no cavalo e partiu para um encontro com seus amigos abolicionistas. Tinha uma missão muito importante para ficar se preocupando com aquela prenda malcriada e metida a esnobe, ajudar um grupo de negros a fugir.

    Diogo acordou tarde. Ficou algum tempo deitado pensando naquele sonho, naquele rosto sublime. Pegou o laptop e com dedos ágeis se pôs a escrever. Quando sentiu fome foi para a cozinha preparar algo para comer. A tal cozinheira, ou fantasma, fosse o que fosse não aparecera para lhe alimentar. Riu de seu pensamento. Saiu para os fundos e passou a caminhar em volta dos galpões, dos lugares demarcados onde um dia deveriam ter sido hortas. Fitou o horizonte com uma certeza, criaram gado naquele lugar. Olhando com outros olhos, aquela fazenda poderia render muito dinheiro para quem soubesse trabalhar com o que poderia plantar e colher. Como os donos poderiam deixá-la tão abandonada? A fragrância das magnólias brancas veio as suas narinas.

Teve a sensação de senti-la enquanto dormia.

    ─Não posso esquecer que tenho uma árvore bem ao lado da janela.

     Diogo se secava com a toalha rosa desbotada quando algo chamou sua atenção. No canto dela estava bordado S.R.

    ─Como não vi essas letras antes? O que quer dizer? Se é que quer dizer alguma coisa.

Ele se vestiu rapidamente saindo do quarto sem perceber no vulto através do espelho da penteadeira o observando. Na cozinha desanimou. Não estava com fome. Resolveu beber. Sentou-se no velho sofá e esticou as pernas com displicência. E bebeu tanto a ponto de ter soluço. Caiu na gargalhada.

    ─Um brinde a você guria sem nome! - ele gritou. ─ Gostaria de sonhar com você de novo... miragem, fruto da minha imaginação, ou seja, lá o que você for...- ele soluçou e se levantou cambaleante. ─Que porre, hein Diogo? Imagina se teu... psicanalista o vê assim... manda o internar!  Alguém me ajude aqui?... essa escada... hoje, está parecendo...- soluçou. ─... a muralha da China...Eu já estive lá. Sei do que estou falando... Eu já estive em muitos lugares... eu já fiz muitas coisas...a maioria erradas, sabe? Sou o Rei dos erros! Principalmente... se eu estiver bêbado...erro até o buraco de uma...boceta...pode rir! É verdade! Nem um cu eu reconheço... –e devagar, se apoiando no corrimão ele começou a subida que lhe pareceu imensa até conseguir chegar ao quarto.

Atirou-se na cama rindo.

    ─Que fogo... Você bem que poderia morrer de uma vez... criatura...

E ele caiu num sono profundo no mesmo instante.

    ─Agora, você não vai morrer. - sussurrou o vulto amorosamente.

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