Capítulo 2 - A Mansão

  — Nossos nomes são granes demais, a partir de hoje te chamo Nat e você me chama Vi, combinado?

— Tanto faz...

— Credo, mulher, te anima! Tremendo baixo astral, eu hem?

— Vi, você já se apaixonou por algum garoto antes?

— Tá louca? Não perco meu tempo pensando nisso, estou mais preocupada com meus estudos

— Igualzinho a chata da minha irmã, só pensa em passar o dia inteiro com as fuças enfiadas nos livros!

— Pelo menos em breve ela vai ter concluído o segundo grau, feito uma faculdade e arranjar um bom trabalho. Já você, se não acordar pra vida vai acabar na pior

— Sabe qual é o fim de mulheres como vocês?

É se formar numa profissão importante, casar com um vagabundo e trabalhar pra sustentar ele e uma reca de filhos, eu não nasci pra esse tipo de situação idiota!

— Você é uma pessoa muito insensível, seca por dentro

— Nada disso, simplesmente vejo outras formas de melhorar minha vida sem ter que passar anos de cara enfiada em livros e cadernos. Além disso, se um dia vou ter que andar com um bambolê no dedo da mão esquerda e carregar um guri na barriga por nove meses, toda desfigurada e destruindo minha beleza, que seja por uma boa causa e não por essa idiotice de paixão!

— Sei. E nesse caso a tal “boa causa” a que se refere é por dinheiro?

— E pelo que mais poderia ser?

— Misericórdia!

Apesar de se demonstrar indiferente aos próprios sentimentos, Nathália percebia que aos poucos algo se modificava dentro dela, desde que perdeu Vinícius devido o deslize que cometeu durante o passeio. Após vê-lo com outra sentiu ciúmes, já não era mais a mesma.

Enciumada tremeu na base e ficou incomodada com a possibilidade de nunca mais voltar a reatar o namoro. Os dias se passavam e na escola ficava cada vez mais difícil ter que conviver com a crítica dos outros jovens que riam da situação cômica vivida por ela, enquanto o ex-namorado curtia com outra bem debaixo de seu nariz. Assim, decidiu que abandonaria os estudos para não ter mais que conviver um só dia com aquela humilhação.

 Antes, porém, de tomar tal decisão foi pedir conselhos ao melhor amigo que sempre a ouvia e lhe dava boas orientações.

— Pai, precisamos conversar!

— Algum problema, mocinha?

— Muitos! O senhor me paga um lanche?

— Claro, vamos lá no seu tio...

Já durante a caminhada pela rua onde moravam, em direção ao carro de lanches, ela passou a comentar com o pai aquilo que a importunava e receber dele as orientações necessárias para escolher o próximo passo rumo ao futuro

 — Minha filha não podemos forçar você a dar continuidade aos seus estudos se o que deseja nesse momento é parar, mas posso lhe mostrar as consequências de sua decisão: Pare um pouco e pense, que futuro terá se não concluir pelo menos o segundo grau e aprender uma profissão para que possa ter um bom emprego? Como vai sobreviver num mundo cada vez mais competitivo?

— Concordo plenamente com o senhor, sei que se preocupa comigo, mas pai, existem outras formas de se vencer na vida, além de correr atrás de trabalho!

—  Verdade? E quais meios seriam estes, entrando pro mundo do crime? Se tornando uma traficante ou passando a se prostituir? Por acaso pensa em usar sua beleza para ganhar dinheiro, tornando-se uma garota de programas como muitas que existem por aí?

—´Tá louco, pai? Eu, hem!

— Então de que outra forma poderia ser, o que tem em mente? Sim, porque o pato de ovos de ouro que você namorava já caiu fora de sua vida...

— É, sei disso mais que qualquer outra pessoa! E essa é a principal razão de ter decidido abandonar a escola, não dá pra continuar sendo esnobada por aquele playboy de uma figa!

— Humm, agora as coisas ficaram mais esclarecidas

— Boa noite tio lindo!

— Olá, minha sobrinha predileta, vai o de sempre?

— Sim capricha com tudo o que tenho direito!

Enquanto saboreava o suculento lanche na agradável companhia do pai, desabafava a ele suas dores e tristezas, sempre recebendo apoio e aconselhamentos que considerava oportunos e indispensáveis, tinha muita sorte em poder contar com sua amizade, visto que da parte de sua mãe nenhuma palavra de incentivo costumava ouvir. Depois de retornar para casa permaneceu grande parte da noite desperta na cama sem conseguir pregar os olhos, ficando refém de uma terrível insônia.

Mas tudo parecia contribuir para seu próprio bem, pois lhe foi possível refletir um pouco mais em tudo o que ouviu e aprendeu com Dióstenes e tomar suas decisões.  Na semana seguinte não perdeu mais tempo e trancou sua matrícula na escola, iria dá um tempo nos estudos e correr atrás do seu sonho de se tornar uma mulher rica e importante através de outros meios.

Era uma jovem de boa aparência, alta e atraente, com certeza existiria alguma outra maneira de alcançar seus objetivos. Quem não gostou nada de saber que ela havia desistido do colegial foi a amiga, que não perdeu a chance de lhe dá uma tremenda bronca

— Pirou de vez, foi sua louca? Perto do final do ano e apronta uma dessas? Porque não termina pelo menos teus estudos para depois correr atrás desses teus sonhos loucos?

— Desculpa, Vi, mas não dá pra continuar aqui no colégio.

Vai ser insuportável ver esse pilantra de uma figa, zombando de mim.

Ele fica fazendo pouco da minha cara com essa branquela aguada!

— E desde quando isso te abalou, mulher, sempre que um carinha desses queria te humilhar não colocava logo vários outros na frente deles? Afinal, o que está acontecendo contigo, minha amiga, amoleceu pra esse riquinho?

— Sei não, pode ser que sim! Agora só quero sair daqui e fixar bem longe desse lugar!

— Está apaixonada e isso é muito mal, terrível mesmo!

— Não vou ficar me lamentando, mas erguer a cabeça e seguir em frente! E vou logo te avisando, se contar pra alguém que deixei a escola por causa dele te mato, viu?

— Credo, tá doida?

— Tá avisada, se espalhar por aí essa história esqueço nossa amizade e te quebro a cara!

— Misericórdia...

As duas amigas retornaram juntas para casa, pois eram vizinhas.

Ao chegar no lar já encontrou Dona Luiza pronta para querer maiores explicações da parte da filha sobre o fato de ter trancado a matrícula na escola, visto que a secretária já teria ligado no telefone da vizinha e denunciado o acontecido. A coisa iria ficar complicado para a adolescente, sua inconsequência irritou sua mãe, sempre agitada e nervosa com tudo.

— Que negócio é esse quem me falaram por telefone lá escola, mocinha, que a senhora mandou cancelar sua matrícula? Ficou maluca de vez? Tem ideia do quanto foi difícil conseguir uma vaga pra você estudar naquele bendito colégio?

— Não cancelei a matrícula, mãe, só pedi pra trancarem até o ano que vem, aí vou ver se recomeço!

— E vai fazer o que nesse tempo todo, vagabundar, rodar a bolsinha pelas esquinas? Sim, minha filha, porque de duas ou uma, estuda pra se tornar gente decente ou vira puta!

— Santo Deus, mãe, precisa falar desse jeito com ela?

— Eu falo com sua irmã como achar melhor, não se metas onde não é chamada!

— Coitada...

— Coitado é do rato que nasceu pelado, essa aí não merece ser tratada como gente, vive cometendo asneiras! Agora pra completar abandona os estudos afim de ficar vadiando, essa menina ainda me mata de desgosto!

Pela primeira vez Nathália não responde mal para a mãe e escuta as afrontas calada, até a irmã achou estranho seu comportamento. Depois de ser colocada abaixo do esgoto por aquela que devia lhe ouvir e entender suas angústias interiores, sobe a velha escada de madeiras e fica reclusa no apertado quarto localizado na parte superior da casa feita de madeiras apodrecidas, onde dormia com a irmã

Na próxima semana iria completar dezoito anos, certamente seria a mesma coisa de sempre, não receberia presentes nem votos de feliz aniversário, apenas ficaria mais velha e sem futuro.

Do pai ainda receberia um forte abraço e se sobrasse alguns trocados na carteira iriam comemorar no velho estilo, iriam ao carro de lanches e lá devoraria aquele sanduba no capricho.

Deitada sobre o curtido colchão de espumas, coberto com um lençol extraído de uma rede antiga, bastante grosso e espinhoso na pele, ela olhava para o teto feito de madeiras baratas e telhas de barro.

 Manchadas de lodo e enfeitados com as porcarias que os insetos espalhavam por lá. Já estava acostumada a dividir o espaço com as baratas e aranhas que ali faziam morada. A irmã se aproxima e tenta dar uma força.

— Oi mana, vim aqui te ouvir, caso esteja precisando desabafar...Mamãe pegou pesado com as palavras hoje

— Só hoje? E desde quando Dona Luiza me tratou com menos ignorância do que fez agora?

— Dá um desconto pra ela, minha irmã, nossa mãe é uma mulher amarga e infeliz devido a vida difícil que sempre teve ao lado de nosso pai

— Sei disso, por essa razão mesmo decidi me calar e não a confrontar de frente como costumava fazer antes, cresci e entendi os motivos de sua revolta! E é por isso que não pretendo me casar com homem pobre, não quero um dia me tornar uma mulher frustrada como nossa mãe nem descarregar minha revolta sobre meus filhos! Pois não acho isso justo, afinal, que culpa eu tenho se ela vacilou e não soube escolher a pessoa certa pra casar?

— Você tem toda razão, mana, agora começo a entender suas razões de viver procurando se dar bem na vida, não quer cometer o mesmo erro que ela cometeu

— Sim, e te aconselho a fazer o mesmo, porque esse papo de unir nossas vidas a alguém por amor é pura idiotice, esse sentimento idiota pode até trazer a ilusão de felicidade por um tempo, mas depois, quando nascem os filhos e a fantasia acaba dando lugar a realidade, o que resta é isso que vemos em nossos pais.

 A herança do que plantaram nas suas existências fracassadas foi somente uma total frustração!

— Nossa, hoje você está inspirada, falando bonito

— Você sempre me viu como uma moleca burra, sem sabedoria alguma.

De cabeça vazia, não é? Pois saiba que me deixei passar pela burrinha da casa e permiti que durante todo esse tempo você ocupasse o lugar de gênio, me esnobasse e tripudiasse sobre mim. Mas eu converso bastante com nosso pai, que não é nenhum doutor disso ou daquilo, na verdade coitado nunca nem concluiu os estudos primários, mas possui um conhecimento da vida que você nem imagina!

— Sério? Nosso pai?

— Sim, e ouvindo seus conselhos aprendi mais da vida do que você sabe lendo esses montões de livros!

— Poxa, Nathália, bom saber que estive todo esse tempo enganada com você. Mas, e agora que abandonou os estudos o que pretende fazer? Vai trabalhar em alguma casa de família ou em algum outro lugar?

— Sabe que você acabou de me dar uma ótima ideia?

— Como, assim?

— Lembra que o papai disse que a mulher do patrão dele estava sem babá pro filho pequeno e pediu para que ele arrumasse uma menina aqui do bairro? Será que ela já encontrou alguém?

— Não sei, só perguntando

— Pois é isso mesmo que farei tão logo ele chegue em casa!

De repente as duas moças passam a ouvir uma séria contenda na parte inferior da casa, seus pais discutiam veementemente sobre a questão da filha ter abandonado o colégio, enquanto Luiza acusava a menina de desinteressada, Dióstenes a defendia.

— Ninguém é obrigado a fazer aquilo que não gosta, mulher, eu por exemplo não nasci com a mente aberta pra esse negócio de estudo e nem por isso morri de fome. Aprendi vários ofícios e nunca fico desempregado

— Ah, mas é claro, sua filha puxou mesmo a você! Um analfabeto de pai e mãe, inimigo número um de sentar num banco de escola!

— Tem razão, não dei mesmo pros estudos e sou filho de um casal humilde que também não estudaram, mas possuo muito mais bons modos do que você que estudou tanto

— Quer saber o porquê que estudei e não dei em nada na vida? Pela simples razão de ter te conhecido e me deixado iludir pela tua aparência de galã, nisso foi que eu me ferrei e hoje estou aqui nesse chiqueiro imundo!

— Você não tem o direito de colocar sobre os meus ombros a culpa de seu fracasso, diversas vezes te avisei que não era o homem certo para entrar na sua vida, não tenho culpa se fez de tudo para se tornar minha mulher

— Quem te ver falando essas coisas pode até pensar que amarrei uma corda no teu pescoço!

— Mas foi como se fosse

— Se manque, homem, por acaso te forcei a casar comigo?

— Sim, engravidou de propósito só para me prender

— Meu querido, eu não te forcei a ir pra cama comigo e se engravidei foi porque não tomamos o cuidado necessário para evitarmos o pior!

— Deixa de conversa, mulher, sabe muito bem o que fez

— Ah, é? E o que foi que eu fiz? Me explica?

— Engravidou de propósito só para me prender nessa relação imunda, nojenta e infeliz! Foi isso que você fez! Sabia que nunca te amei, então jogou sujo!

Eles discutiam e sequer perceberam a presença das duas filhas ali na estreita sala e do filho que acabara de chegar do trabalho. A mais abalada de todos com aquelas revelações foi Nathália, que era amais velha e se sentiu o pivô da infelicidade dos pais. Paralisada, não conseguia sair do lugar, fugir, se esconder. Eles finalmente se deram conta da situação e do terrível erro que cometeram ao revelar diante dos filhos seus piores segredos de forma como nunca antes tinham feito. Mas era tarde demais, agora como explicar para a filha que mais amava que apesar de tudo ele não a via como a culpada pela destruição de sua felicidade.

Para qualquer um é doloroso imaginar que ao nascer causou a infelicidade de alguém e, principalmente, se estes forem seus pais. Nathália percebia que sua mãe a desprezava, mas não entendia as reais razões. Entretanto, daquele momento em diante tudo ficou bem esclarecido, ela foi uma criança gerada sem o menor planejamento, usada como artifício por uma mulher mal tencionada no intuito de prender a seu lado um homem que não a amava.

Sua cabeça deu um nó e tudo ao redor parece ter desmoronado, era como de repente as coisas na sua vida começassem a dá errado em sequência, uma atrás da outra. Sentada no meio fio na esquina da rua em morava é surpreendida pela chegada do maior amigo, que foi se explicar e pedir desculpas

— Me desculpe, filha, não era minha intenção passar a você a ideia errônea de que sua chegada em nossas vidas foi um erro

— Mas foi exatamente o que lhe ouvi dizer pra mamãe!

— Sim, meu bem, eu sei, e foi por isso que vim aqui me explicar. Realmente sua mãe usou a gravidez de má fé para me forçar a casar com ela.

Pois sabia que mesmo pobre sou um homem justo e de caráter, jamais iria abandonar uma filha. Porém, depois que você nasceu fez de mim um homem muito feliz e até hoje é a maior razão de meu viver nesse mundo de tanto sofrimento. As coisas para nós não são fáceis, como tem visto, mas tê-la me compensa todo o esforço do dia a dia.

— Poxa, pai, falando assim o senhor até me comove!

— Então perdoe minhas palavras ásperas e vamos retornar para casa, não é seguro ficarmos aqui a esta hora da noite

Pai e filha se abraçam e voltam para casa, onde já haviam encerrado os gritos e escândalos de horas atrás. Na mesma ocasião, Nathália aproveita e fala com Dióstenes sobre a possibilidade de trabalhar como babá para seus patrões.

— Pai, sua patroa já encontrou a pessoa que procurava para cuidar do filho pequeno?

— Não sei, porque?

— Quero trabalhar, ganhar meu próprio dinheiro e ser independente!

— O ideal seria terminar os estudos e aprender uma boa profissão

— O importante é ganhar dinheiro honestamente, meu pai, não importa o trabalho!

— Tá certo. Se quer trabalhar vou falar com a patroa e ver o que consigo

A mansão dos Mendes era a maior da cidade. Localizada na Avenida principal e de esquina com o Museu, ocupava toda uma abrangente área de privilegiada localização comercial. Naquela manhã, quando a patroa praticava sua rotineira Ioga no jardim, próximo a piscina, Dióstenes aproveita e lhe faz algumas indagações relacionadas a possível chance de emprego para a filha.

— Bom dia, patroa, queira me perdoar o incômodo

— Pois não, do que se trata?

— É que dias atrás a senhora me perguntou se não conheceria alguma moça interessada em exercer a função de babá pro seu filho

— Sim, de fato eu lhe fiz essa pergunta, mas é para acompanhante

— É que agora tenho uma moça que está disponível ao serviço, caso ainda precise

— Bem, estamos com uma senhora na função, no momento, mas ainda não sabemos ao certo se vai dá certo, pois nestes casos o ideal seria mesmo uma pessoa mais jovem. Meu filho, Seu Dióstenes, é uma criança que necessita de cuidados especiais. Ele é autista e sua acompanhante deve ser paciente, dócil e disposta a acompanhar sua rotina diária, que não é muito fácil.

— Entendo, creio que a candidata que pretendo lhe apresentar se encaixa neste perfil

— Bem, então façamos assim: Tão logo terminem os trinta dias de experiência com a senhora que está atuando nesse trabalho com nosso filho, irei despedi-la e colocaremos essa jovem em teste

— De acordo, senhora, me avise o momento certo para poder trazê-la

— Muito bem

Apesar de ainda não ser uma confirmação em definitivo saber que iria ter a chance de se candidatar ao primeiro emprego empolgou a moça que de imediato passou a fazer planos de como usaria o salário que iria receber pelo trabalho. Porém, o pai lhe advertiu da necessidade de estar de acordo com as exigências da patroa

 — Minha filha, preste bem a atenção:

Para se manter no cargo que irá receber na residência da patroa será necessário estar apta a exercer a função direitinho

— Sei disso!

— Me preocupo, porque uma das coisas que ela colocou em evidencia é que o garoto é especial

— Especial, como?

— Autista

— Que é isso?

— Não entendo muito do assunto, mas parece ser um pouco doidinho

— Santo Deus, gente, quanta falta de informação. O autismo é uma doença psiquiátrica que leva a criança a ter dificuldades em se comunicar, é pouco sociável e se sente mal em ambientes com muitas pessoas. Ela exige cuidados especiais, companheirismo e bastante paciência. Quem cuida de autistas não pode gritar, falar muito auto nem usar a voz com tom de extrema autoridade, tem que ser dócil com a criança

— Então lascou-se, porque como todos sabem eu só falo gritando!

— Pois é, minha filha, por isso mesmo disse estar preocupado se você seria a pessoa mais ideal para cuidar desse menino

—Minha irmã, se realmente quer esse emprego vai ter que se esforçar para mudar esse seu jeito grosseiro de ser

— E como vou fazer isso em tão pouco tempo, Chris, sou uma lástima pra mudar as coisas?

— Tenha calma, posso te ajudar. Quando vai começar a cuidar dele?

— Papai disse que pode ser daqui a um mês, mais ou menos!

— Sim, foi o que a patroa falou

— Ótimo, é o bastante. Então vamos começar o treinamento agora mesmo

— Agora?

— Isso mesmo, e para início de conversa se esforce para baixar ao máximo o tom da sua voz...

Daquela noite em diante Christina passou a educar a voz de Nathália, ajudando-lhe na entonação correta, ensinando as formas de se expressar de todas as maneiras, tanto no falar como na postura. O mês se passou depressa e era chegada a hora de comparecer no emprego para uma entrevista com sua futura patroa.

A entrevista aconteceu na ampla sala da mansão e a moça pobre que foi criada longe de grandes requintes da pôde deixar de demonstrar sua admiração diante de tamanho luxo, seus olhos brilhavam ao contemplar os lustres presos no alto teto, os móveis caríssimos, a decoração de ponta e até o piso do lugar. Era todo feito em porcelanato preto que combinava com a cor amarelo pérola das paredes.

 Dióstenes observava em silêncio todo o encanto no olhar reluzente da adolescente que parecia estar num outro mundo, antes existente apenas nos seus sonhos de cinderela.

 Ela sempre desejou um dia se tornar uma mulher muito rica, viver o restante de seus dias em completo luxo e conforto, algo digno dos contos de fadas. Mas, apesar de ter a beleza de uma linda princesa e até possuir o nome de uma estrela das novelas da televisão, nasceu na mais completa pobreza e somente na sua ambição de adolescente era capaz de imaginar tanta grandeza.

— Vejo que você se encantou com nossa casa

— Hã? Desculpe, senhora, só estava observando. Sua casa é mesmo muito linda

— Não precisa se desculpar, sou consciente da beleza deste lugar, pois eu mesma decorei

— Dona Bárbara é decoradora de ambientes finos como este, minha filha

— É mesmo...?

— Na verdade já exerci este ofício no passado, hoje sou a proprietária das cinco maiores empresas de arquitetura e designs de ambientes do Estado. Mas vejo que você é a jovem que o senhor Dióstenes ficou de trazer para a entrevista, só não sabia que se tratava de sua filha

— Sim, desculpe ter omitido esse detalhe, foi pura displicência de minha parte, senhora

— Tudo bem, não faz mal. É até mais cômodo que assim seja, pois o senhor já trabalha conosco a muitos anos e confiamos na sua pessoa. Mas qual é mesmo seu nome, minha querida?

— Nathália, senhora. Nathália do Valle

— Mas que belo nome, foi o pai ou a mãe quem teve esse bom gosto?

— A mãe dela, patroa, mas eu aprovei por achá-lo magnífico

— Muito bem, então ela já está entregue em boas mãos, o senhor pode voltar a seus afazeres que vou conduzir essa mocinha para meu escritório, onde iremos ter uma conversa mais formal

— Tá certo, a senhora me dê sua licença

— Toda

— Obrigado

Daquele momento em diante as duas foram iniciar a tão aguardada entrevista. Bárbara Mendes era uma mulher que ocupava posição de grande destaque na sociedade paraense, sua reputação como arquiteta, designer e empresária, costumava sobrepor outras do ramo e nem mesmo o esposo, Edgar Mendes, Engenheiro renomado e com semelhante prestígio tinha maior admiração por parte da elite.

Conversar com uma pessoa de tamanha importância social, olhar nos seus olhos e dar respostas precisas não era fácil, mas a moça da favela encarou sem nenhum temor aquele teste e não fraquejou nem por um segundo. Isso levou a milionária admirá-la, aceitando-a como a nova cuidadora de seu filho especial e no mesmo dia deu início aos seus serviços. Para sua alegria João Pedro, o autista, se afeiçoou de imediato com ela e passaram todo o tempo brincando, interagindo de forma admirável. Parecia que a tristeza crônica do menino havia desaparecido com sua chegada. Jogaram bola, nadaram na piscina infantil, usaram os balanços colocados próximo ao amplo jardim, assistiram TV e comeram pipocas.

A empresária ficou admirada com tamanha evolução na socialização do filho e agradeceu a Deus pela nova empregada.

No cair da noite pai e filha retornaram juntos do trabalho pela primeira vez e ao chegar em casa ela faz questão de expor tudo o que viu e viveu naquele lugar dos seus sonhos. Christina se colocou como ouvinte e não perdia a chance de corrigir os erros de expressão da irmã, na intenção de mantê-la qualificada para permanecer no seu primeiro emprego.

— Minha irmã eu nunca imaginei poder um dia trabalhar num lugar tão maravilhoso como aquele, é como nos contos de fadas, cheio de muito luxo e encanto por toda parte. Tudo lá é espetacular: Os móveis espalhados pela casa, o piso feito de umas lajotas grandes e pretas...

— Porcelanato, filha, o nome correto é porcelanato

— Ah, sim, pois é. E no teto um treco enorme, cheio de várias lâmpadas

— Chama-se lustre, sua bobona

— Você já tinha visto?

— Só nos livros e revistas, por isso é importante ler

— Pois eu vi ao vivo, maninha, são lindos!

— Olha o tom da voz, Nathália, cuidado com a entonação

— Tá bom, mas me deixa terminar de te falar: Menina a casa é tão grande, mas tão enorme que quase me perdi por lá

— Você ficou passeando pela casa ao invés de cuidador da criança, sua doida?

— Claro que não, mulher, eu estava o tempo todo com o doidinho

— Minha filha, não se refira dessa maneira sobre a criança.

 Respeite a deficiência dele

— Tá bom, pai, desculpe. Olha eu e o Pedro jogamos bola e até tomamos banho de piscina, foi tudo uma maravilha. Não vejo a hora de voltar amanhã.

— Parabéns, maninha, te desejo sorte

— Obrigada

— Tente ser forte e não faça nenhuma besteira

Nathália permaneceu firme em exercer sua atividade como cuidadora do menino Pedro, passava todo o dia na mansão dos Mendes e só retornava no final da tarde, sempre na companhia do pai. Aos poucos ela conseguiu convence-lo a interagir com outras crianças nos finais de semanas ou feriados.

 Acompanhando-o pelos parques da cidade, mas sempre ao lado de sua mãe e do pai. Apesar dos dois empresários possuírem pouco tempo livre concordaram em contribuir com a terapia.

Pedro tinha dez anos de idade, mas tinha as características mentais de uma criança bem mais nova, pois passava a maior parte do tempo dentro de casa e só saia quando levado ao médico ou a escola para autistas, local que ele odiava. Com a chegada da jovem ele se demonstrou mais à vontade e se desprendeu das amarras psicológicas que antes o afligia.

Ir aos passeios na companhia da adolescente lhe fez tão bem que sua mãe solicitou que a menina pudesse morar em definitivo na mansão, o que fez ela pular de alegria. Mas para que isso fosse possível era necessário a plena autorização der seus pais, pois ainda era menor de idade, e naquele final de semana toda a família se reuniu na pequena sala para tomarem essa decisão a pedido de Dióstenes.

— E é isso, pessoal, a patroa deseja que Nathália passe a morar em definitivo no emprego e decidi reunir todos aqui para juntos resolvermos esse assunto, gostaria de ouvir a opinião de cada um de vocês quanto a isso

— Eu dou total apoio, creio que ela já amadureceu bastante durante o tempo que começou a trabalhar e creio ser algo positivo para sua vida, até aprendeu a se comunicar melhor

— Sim, graças a você minha irmã

— Também dependeu muito de seus esforços, mana

— Eu fico com a Chris, se tá dando certo deve prosseguir, quando comecei a trabalhar na oficina me senti mais útil dentro de casa

— Valeu, mano

— E quanto a você, como mãe, o que tem a dizer?

Ocorreu um breve espaço sem palavras no local antes de se ouvir uma resposta, então o silêncio foi rompido:

— Não tenho nada contra essa menina trabalhar é melhor que ficar por aí vagabundando com essas molecas desocupadas dessa favela. Mas é bom levar essa oportunidade a sério, sua moleca, vê se não vai aprontar por lá e colocar tudo a perder. Não cause problemas na casa alheia para evitar de prejudicar seu pai, pois trabalha ali há muitos anos e é um funcionário de confiança dos patrões, não o envergonhe

— A senhora não se preocupe, apesar de sempre me ver como um problema eu garanto que não vou ser responsável pela demissão de papai do emprego

— Ei, vamos controlar os ânimos? Não nos reunimos aqui pra isso!

— Não pediram minha opinião? Pois então, é isso que tinha a dizer sobre o assunto. Conversa com tua filha, Dióstenes, cuidado para ela não complicar tua vida junto a teus patrões, porque onde ela põe os pés só causa prejuízo!

Depois dessas palavras Luiza se retira e deixa para trás um silêncio decepcionante que sangrou o coração da filha mais velha, parecia sentir prazer em causar-lhe feridas incuráveis e fez isso mais uma vez com tamanha crítica e através de palavras tão duras.

— Calma, minha irmã, não liga pra amargura de nossa mãe

— É isso aí, levanta a cabeça e segue em frente maninha

— Bem, agora que minha princesa está empregada e vai ficar cheia da grana daqui uns dias, tá na hora de retribuir e pagar lanches para todos nós!

— Isso mesmo!

— Hummm, oportunistas, hahaha!

A jovem passou um último final de semana em casa, com a família e na segunda-feira partiu com seus pertences para a mansão dos Mendes, iniciava ali um novo capítulo na sua história. Entretanto, na verdade seria a pior parte de sua triste existência.

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