HISTÓRIA

Gabriel sentou diante de Cátia com uma latinha de refrigerante e sorriu. Ela o olhou como se não o conhecesse, continuou mexendo no celular e dando garfadas sem vontade em seu almoço.

-Pensei em agradecer o café da manhã que você pagou para nós. - Sorriu simpático e suspirou a observando, virando a cabeça para tentar achar seus olhos.

-Alguém já te disse que é falta de educação ficar encarando as pessoas? - Levantou a cabeça do celular momentaneamente e depois voltou a mover o dedo para cima na tela.

-Eu sei que você ficou com medo, deveria ter visto outra mente, para começar ao menos. Mas logo a de Samanta? Deve ter sido bastante assustador.

-Qual o objetivo das palavras gentis e do sorriso forçado padre? - Largou o celular e o olhou como se o tivesse tirado do nariz.

-Meu objetivo é que você salve um número incontável de pessoas, e que possa se proteger do mal que virá atrás de você. Porque sim, Cátia, ele virá. Não importa se você fingir que nada aconteceu, nos ignorar e agir como se fosse apenas uma recepcionista de um hotel de praia vazio na baixa temporada. Eles não se importam com seus sentimentos ou vontades, se importam com o fato de que você é uma ameaça para eles, e vão matá-la, ou pegar você e a transformar em algo tão terrível quanto eles.

-Foi o que ele fez com ela? - O olhou apertando os olhos. - O vampiro bonito e mau, ele a transformou porque ela era especial?

-Não, eu não era como você, me encantei com a possibilidade de dormir com um homem lindo e sumir da minha cidadezinha, da minha vidinha simples. Eram outros tempos, com certeza eu não era boa, era uma garota burra e ingênua que se sentiu atraída pelo mau. - Samanta sentou e virou a cabeça de lado rapidamente, piscando um olho e fazendo um som com a boca. - Você, ele vai matar, ou então, contra a sua vontade, a transformar em algo pior do que eu.

Cátia a olhou séria, não tinha o direito de falar nada mais sobre o que viu na mente de Samanta, pensou por um tempo, medindo as palavras, e então abriu o refrigerante, bebeu um gole generoso, pegou o cigarro dos dedos dela e fumou apertando os olhos.

-Me digam, com todos os detalhes, tudo. Quem são vocês, o que era aquela coisa, o que eu sou, quem era aquele vampiro, o que eu preciso fazer, tudo, sem esconder nada. Depois conversamos sobre eu me tornar ou não o bem encarnado que salvará a humanidade. - Se escorou na cadeira empurrando o prato e os encarou levantando as sobrancelhas enquanto passava a língua nos dentes.

-Eu gosto dela! - Samanta sorriu escorando as costas na cadeira também. - Certo, eu sou uma vampira, é o que sou há 300 anos, antes disso, era uma humana que nasceu em uma prainha parecida com essa, vivia melhor do que imaginava, mas conheci um vampiro lindo por quem me apaixonei, ele me mordeu e agora, isso é o que sou. Vivi mais de 150 anos ao lado dele, então não podemos dizer que um dia descobri o que ele fazia e fugi. Eu apenas não aguentei mais.

-Você entendeu que todo o amor do mundo, não era mais suficiente para aplacar o horror do que ele fazia, certo? - Cátia a olhou e então fez uma careta. - Sinto muito, não tenho o direito…

-Não tem, mas está certa. Foi mais ou menos isso mesmo, claro, digamos que foi um casamento bem longo - Arregalou os olhos divertida. - Quando fugi, dele e de toda aquela vida, fiquei algum tempo por conta própria, matando aqueles que ele enviava para me caçar, ele me queria, viva ou morta. Já fazem uns 145 anos que me dou bem nessa, fugindo e matando quem me caça, e quem ameaça inocentes também. Mas essencialmente quem me caça.

-Não é bem assim, padre? - Cátia a olhou compreensiva e encarou Gabriel.

-Ela derrota nossos inimigos, não apenas os que a ameaçam, como o da outra noite, que ameaçou você especificamente. Acaba com eles, sempre. 

-Como você começou a trabalhar para eles?

-Salvei Gabriel de um mago que queria que ele fosse seu escravo, há o que? - Soltou o ar como se estivesse pensando. - 100 anos?

-110, ela me salvou, e eu a chamei para trabalhar com a gente. 

-Como assim? Você não é humano?

-Mas claro que eu sou! Sou humano, como, tomo banho e tudo mais, mas fui amaldiçoado, e agora não posso morrer.

-Você o que!? Como isso é possível?

-Na verdade, eu posso morrer, mas isso envolveria um procedimento demorado, e doloroso, tipo cortar meu corpo em muitos pedaços, e dividir eles em caixas, incendiar cada uma delas, e depois se livrar das cinzas em locais diferentes.

-Porra!

-Em resumo, ele não morre nunca. - Revirou os olhos e bateu o ombro no dele.

-O que é essa coisa onde trabalham?

-Bem, há cerca de 550 anos atrás, depois das invasões europeias e tudo mais, você sabe, esse horror que fizeram aqui. Um pajé foi escolhido pela Deusa para iniciar um projeto, digamos assim. Esse projeto deveria manter defensores, representantes de todas as fés e credos, para se livrarem do mal na humanidade. Eu era um padre que quase foi excomungado, e então um bom amigo, padre também, me chamou para participar, caçando monstros e organizando ajuda para quem precisasse, sabe, defendendo a humanidade do mal que a espreita. 

-E tem mais como você? E como você? - Apontou para Gabriel e Samanta.

-Não muitos, mas sim, temos alguns ainda, espalhados pelo mundo. A maioria é como Gabriel, tem alguns mortos vivos, mas nenhum vampiro como eu, não somos muito sociáveis e não costumamos pensar no bem comum, sabe como é. - A encarou chegando o corpo para frente e colocando as mãos na mesa. - O que mais menina?

-O que eu sou?

-Você é aquela enviada pela Deusa, sua filha criada a sua imagem e semelhança, literalmente, para acabar com o mal.

-Imagem e semelhança? A Deusa é uma mulher negra por acaso?

-Dizem que sim, mas os olhos dela são dourados, não castanhos como os seus.

-Então por que essa desgraça toda com o povo negro? Quer dizer, não somos as pessoas mais bem tratadas caso vocês não acompanhem os jornais, ou livros de história.

-Porque o mal faz isso, descredibiliza a imagem, assim descredibiliza a própria Deusa, seus filhos criados para reger a terra são tratados como párias. 

-Por que? Ela não pode resolver?

-A pergunta que me faço todas as vezes que os policiais deste país atiram nas crianças negras, infelizmente ninguém consegue responder essa. - Samanta suspirou desanimada, com uma tristeza diferente em seus olhos.

-É por isso que você nasceu Cátia, para salvar a todos, restabelecer a ordem, o bem.

-E resolver os problemas criados por homens brancos? Que surpresa! - Riu fazendo uma careta.

-Verdade, os inimigos que se parecem com os humanos são sempre brancos, e homens… - Samanta olhou Gabriel como se ele fosse o culpado.

-Muito bem! Eu não discordo, mas não fui eu quem criou a profecia, apenas obedeço.

-Só faltou pedir desculpas por ser homem! - Cátia riu e escorou a cabeça nas mãos piscando um olho para Samanta.

-Ela tem razão novamente! 

-Já entendi, vocês têm razão. O que mais?

-Essa é pessoal, mas preciso saber. - Eles a olharam acenando afirmativamente. - Você vai viver tipo para sempre?

-Se ninguém me matar, sim. - Gabriel respondeu dando de ombros.

-E vai ser padre para sempre?

-Caso você não tenha entendido Gabriel, eu posso explicar onde ela está querendo chegar. - Samanta riu.

-É eu entendi.

-Tudo bem, essa vocês me respondem outra hora. O que querem que eu faça agora?

-Você vai aceitar? - Gabriel a olhou sorrindo.

-Não, eu vou coletar informações, pensar a respeito. Quero ver esse pessoal aí, quero saber quem são nossos inimigos. Quer dizer, apenas um vampiro? Não me entendam mal, mas ele pode ser morto, não pode?

-Ele pode, e apesar de se esconder muito bem, e de comandar metade das merdas que acontecem, tem um chefe, como todos nós. Esse chefe o substituiria rapidamente, já quis fazer isso na realidade. - Samanta olhou o horizonte e sorriu amarelo.

-E quem é? O Diabo?

Os dois riram e ela franziu a testa. Gabriel levantou e fez um sinal com a cabeça.

-É mais complicado do que você imagina, venha comigo, vamos pegar aquele corpo e eu levo você até a sede.

-Samanta, você vai também?

-Não, eu tenho trabalho a fazer.

-Ah não, eu não vou ficar sozinha com um padre em um lugar cheio de padres, esquece! Se você não for eu não vou.

-Samanta, vamos juntos dessa vez, os monstros podem esperar. - Gabriel fez um gesto com a cabeça, enquanto seus olhos pareciam nervosos acompanhando os movimentos dela, ele queria há muito que ela voltasse, ao menos para ficar por perto.

Ela fez uma careta e levantou, não muito satisfeita, os seguindo até seu quarto. Entrou pegando a valise e sua bolsa, Cátia parou em seu caminho aproveitando que Gabriel fazia uma ligação avisando seu pessoal para virem buscá-los, e a olhou sem graça.

-Eu sinto muito, não queria ter visto tudo assim.

-Eu sei que não, entendo que não controlou o que fez com minha mente, mas nunca, nunca diga nada do que viu, para ninguém. Entendeu? - Seus olhos se tornaram maus, ela deu um passo na direção da menina.

Cátia acenou concordando, suspirou disfarçando e foi até a sacada, mas não demonstrou medo.

-Quer que eu faça alguma coisa?

-Pega a sacola, você é mais nova e iniciante, carrega o fedido. - Sorriu fazendo um sinal com a cabeça, havia trocado o vestido pela calça de couro e camisa pretas que Gabriel trouxera.

-E quanto a minha família? Minhas coisas…

-Vamos passar na sua casa, você inventa uma desculpa, pega algumas roupas e vai poder voltar para ver sua mãe.

-Vou mesmo?

-Merda! Esqueci que você sabe quando estamos mentindo. Olha, você vai poder tentar voltar, quando as coisas estiverem mais calmas, mas se ficar por perto de quem ama, pode colocar eles em risco. - Apertou os lábios, detestava ter que fazer aquilo com ela. - Se tiver mais alguém de quem quiser se despedir, um namorado ou namorada…

-Não, apenas minha mãe. - Segurou o choro e saiu caminhando rapidamente com a sacola atravessada nos ombros.

A despedida foi triste, como seria normal imaginar, Cátia disse para a mãe que havia conseguido um trabalho para o qual havia se candidatado, administrando um hotel em outro estado, a mãe sempre soube que sua menina tinha um futuro brilhante, mas desconfiou da situação. Até Samanta entrar em cena, e a convencer, com sua voz doce e sussurrada, prometendo que a filha seria bem cuidada, e nada de mal lhe aconteceria.

Gabriel e Cátia já haviam entrado na grande caminhonete dirigida por uma mulher antipática, vestindo um hábito e batom vermelho forte, - o que para Cátia foi uma visão um tanto curiosa - Samanta fechou os olhos e se segurou no carro pouco antes de entrar, sentiu as pernas fracas e soltou um palavrão. 

-Ele? - Gabriel a amparou preocupado.

-Vocês precisam ir, eu sigo para outro lado, nos vemos na sede assim que eu conseguir me livrar dele.

-Não! Nem pensar, tenho um avião esperando no aeroporto da cidade, ele não vai nos identificar. 

-O tal Alec? - Cátia franziu a testa.

-Sim, e para vir pessoalmente, deve saber que você está aqui. Não sei como, mas sabe, e como não sei, talvez algo em mim o tenha atraído, não posso ir com vocês.

-Samanta, por favor… - Gabriel parecia querer chorar.

-É Samanta, venha conosco, vamos nos defender juntos.

-Menina, você não vai conseguir se defender de nada, vão e eu despisto eles, faço isso a tempo suficiente para não correr mais riscos do que deveria. Vão logo! - Enfiou a cabeça dentro do carro e sorriu. - Karina, bom te ver gatinha!

-Se cuida, vampira, se as coisas apertarem avise, eu vou com as meninas pegar você. - Pareceu simpática, mas logo depois fechou novamente a expressão e permaneceu em silêncio.

-Obrigada, mas está tudo sob controle. Cátia, guarda isso para mim por favor, se eu não voltar pode abrir. - Entregou a valise para a menina com uma expressão séria. - Gabriel vai explicar tudo, se eu não aparecer, se concentre em seu treinamento e depois vá acabar com eles. - Piscou um olho e fechou a porta do carro, mas enfiou a cabeça pela janela e deu um selinho no padre, rápido como seu desaparecimento, logo depois.

Gabriel tirou os óculos, fechou os olhos, pressionando os dedos contra eles, e sacudindo a cabeça desconsolado. Suspirou com os olhos cheios de lágrimas, sabia que para deixar Cátia livre, ela poderia se entregar a Alec, a valise era a prova de que não tinha muitas esperanças de escapar dessa vez.

-Por que ela me entregou isso? O que é isso?

-Isso é um segredo que Samanta costuma não mostrar para ninguém, ela a carrega sempre, não quer deixar em cofres ou nenhum outro lugar, quando chegarmos pode ficar sozinha, e abrir, vai saber o que fazer com o conteúdo. - Ele a olhou tentando sorrir, mas não teve muito sucesso com isso.

-Deveria ser meu? Ou ela não tem esperanças de fugir dele?

-Ah Cátia, eu queria mesmo que você não fosse tão esperta. - Ele ajeitou os óculos e olhou para frente, não queria falar, não ainda.

Cátia sentiu a culpa, ninguém precisava dizer, ela sabia ser a responsável por uma possível captura de Samanta. Praticamente uma entrega voluntária ao mal do qual fugia há tanto tempo. Engoliu o choro e ficou em silêncio também, seria melhor não falarem, Gabriel tentaria mentir, e depois falar a verdade mas de forma doce, não precisava disso.

O aeroclube da cidade era controlado pela polícia militar, mas Gabriel aparentemente tinha contatos com eles, estacionaram próximo a um do hangares, desceram e entraram rapidamente no avião, que decolou logo depois, Cátia nunca havia entrado em um avião antes, mas não sentiu medo, a não ser que o tal Alec pudesse causar um acidente, não havia maiores perigos. Era um avião pequeno, mas bastante moderno e potente, provavelmente essa tal associação de crenças era milionária, a julgar que entre as pessoas mais ricas do país estavam pastores e padres.

Mas estava um pouco enganada sobre seu destino, descobriu depois de cerca de 4 horas de voo que recém chegavam a metade do trajeto, perguntou surpresa, com uma expressão preocupada, para onde estavam indo, afinal, ao que Gabriel sorriu como se desculpando e encolhendo os ombros.

-Espanha, obviamente.

-Obviamente?

-Bem, é que os fundadores de nossa organização resolveram se instalar na casa dos inimigos, na época é claro, então temos sede na Espanha.

-E quando você pretendia me contar que estamos indo para a Europa?

-Você não perguntou!

Ela fechou a expressão e sentou entediada, quatro horas depois eles desciam em um aeroporto pequeno e escondido, uma grande construção a certa distância, imponente e antiga. Gabriel sorriu quando desembarcaram, 

-Estamos finalmente a salvo! - Sua expressão ficou carregada e ele pareceu sombrio depois disso, mas não falou nada.

-Ela vai conseguir chegar, vamos ter fé padre, nela é claro.

Ele sorriu concordando, mas seus olhos procuravam o horizonte, como se a qualquer momento ela fosse aparecer em sua frente. Começaram a andar até a construção antiga, e ela o olhou diminuindo o passo.

-Você a ama mesmo? A Samanta?

-Muito, mais do que você pode imaginar, mais do que eu posso contar. - A olhou e riu sacudindo a cabeça. - Mas não vou contar mais nada, não vou dizer porque não ficamos juntos, não farei confidenciais que podem no futuro, ser um peso para você Cátia.

-O que eu vou encontrar lá? - Apontou para frente, para os muros de pedra que se aproximavam.

-Não é nada demais, eu acho que você vai gostar, somos apenas guerreiros e guerreiras que lutam contra o mal, fazemos o necessário para derrotá-lo, em todas as suas formas.

Ela ficou quieta, suspirou sentindo o peso da maleta em suas mãos, não o peso físico necessariamente, porque desde que acordou naquela manhã, se sentia mais forte do que jamais foi, - chegou a entortar uma faca pegando manteiga, e quebrar uma caneta, a estourando sobre o balcão do hotel, ao tentar escrever depois de saber quem era - Mas era um peso diferente, o peso que segredos tem, provavelmente tinha algo a ver com segredos do passado da vampira, ficou curiosa para abrir, como se precisasse.

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