O Investigador Ambicioso

Acordei em um pulo. O coração batendo tão forte contra minha caixa torácica que pensei que estava tendo um infarto no miocárdio. Assim que não percebi outros sintomas, me livrei dos lençóis de pelos de unicórnio-ovelha que estava grudado ao corpo, e concluí precipitadamente que havia sido apenas uma forma do meu cérebro me acordar,  ativando hormônios de adrenalina e não um sonho profético.

No meu sonho uma sombra tomava toda Teran e perfurava as pessoas, não se importando entre culpados e inocentes, e eu só olhava inútil e sem valor. Da mesma forma que me senti quando os meus seis irmãos me amarraram e me jogaram na floresta para morrer; eu era só um pueril de 12 anos. 

Sacudi a cabeça e ignorei o pesadelo junto com as lembranças, da mesma forma que ignorava todos abaixo de mim.

A minha bola de cristal tocava em algum lugar do meu suntuoso e circular quarto. As paredes eram feitas em quartzo e o telhado abobado banhado em ouro. Um capricho que recebi por resolver um caso bobo. A Rainha Elise foi morta em seu quarto superprotegido, e, como era esperado por qualquer um com meio encéfalo, a Guarda Real não conseguiu achar o culpado, e de contragosto e por pedido dos Doze, me chamaram. Eu resolvi o crime assim que pisei no quarto, ela havia sido morta pelo próprio grifo, é algo raro de acontecer, mas há a possibilidade. E se há a possibilidade, pode e vai acontecer. Qualquer pessoa com o mínimo de inteligência e astúcia teria percebido todos os sinais que estavam estampados em todos os cantos. É claro que por essa incompetência da Guarda Real, eu ganhei fama e prestígio.

Levantei-me da cama com uma enxaqueca e Gálio se agitava demais pulando sobre meus lençóis, por algum motivo seu brilho estava mais opaco do que o habitual, não era um bom presságio.

A senhora Guilordina havia preparado meu café da manhã de forma soberba, - chá de folhas de Ents com pastéis de ovos de gansas de esmeraldas. Eu sempre agradecia aos Doze por ela existir e saber exatamente como gosto das coisas nos mínimos detalhes, e ter um Ent que produz os melhores chás de toda Teran.

— Gálio, poderia, por favor, silenciar essa sirene supérflua que insiste em soar e piorar minha enxaqueca?

Meu totem obedientemente cobriu a bola de cristal com uma capa preta com bordas prateadas que eu usava em ocasiões reais acabando com a balbúrdia.

Por ser uma fada Gálio me era muito útil, tanto na vida pessoal quanto em meu trabalho, o seu poder de sentir quando as pessoas mentiam me ajudava muito a me destacar dos medíocres. Não se deixe enganar pelos seus trinta centímetros e musculatura similar a uma mandioca fina, ele era tão esperto e sábio quanto qualquer bom dragão. Não era para menos, era meu totem. Eu o consegui no mesmo dia em que tive minha epifania suprema, quando deixei de sentir pena de mim e comecei a ter pena dos outros por não chegarem aos meus pés. Na floresta cercado por quimera-bestas e com os sorrisos dos meus irmãos felizes com a minha morte, das minhas lagrimas Gálio surgiu brilhante e juntos rumamos ao sucesso.

Depois do desjejum me aproximei da bola de cristal para ver qual o motivo do incomodo matinal, eu estava sendo invocado em Espiral, o lugar mais importante de Teran. Coloquei meu terno feito sobre medidas e minha cartola preta, ambos repletos de sigilos de proteção, e meu anel de rubi em forma de flecha que me possibilitava canalizar minha magia e ser tão incrível.

O caso era simples, porém complicado ao ponto de me invocarem. Eu tinha que encontrar um assassino mefistofélico ou a causa de uma morte deveras anormal, de qualquer forma meu nome circularia por Teran por algum tempo e isso era um pequeno passo rumo a entrar para história do mundo e conseguir uma vaga para o Magistrado da Espiral, ou até entrar para os Doze. Essa situação me era muito favorecida e eu me sentia grato aos Doze por ela, bendita morte. Alguns têm que perder para outros ganharem, era assim que o ciclo funcionava, e eu não iria mudar isso se me valia.

Eu sabia que depois desse caso muito bebês teriam o nome de Conrado ou Gálio. Eu estaria mais alto que poderia chegar apenas resolvendo contendas entre camponeses e crimes menores, apesar de odiá-los contas tinham que serem pagas.

Era o meu novo momento. Uma fama maior que o caso da rainha Elise ou das crianças desaparecidas da Vila Luidomm, me aguardava.

***

A Espiral era a central de Teran, tudo que acontecia de importante era relatado aqui e quando mais se descia os degraus mais importância tinha e mais secreto era. 

Por fora parecia ser uma grande árvore oca, porém assim que se dava o primeiro passo para dentro se percebia o quanto a magia era maravilhosa. Um grande salão repleto de pessoas e totens passando por todos os lados se revelava. Centenas de magruxeiros e seus fragmentos de alma resolvendo e criando problemas, incontáveis estátuas e artefatos mágicos e tecnomágicos, e além de portais para outros mundos, que apenas os Doze e alguns privilegiados podiam usar.

Pessoas comuns desciam os níveis  da Espiral pelos degraus, mas eu caminhei até o elevador, que funcionava quando se doava um pouco de magia, e apertei o número vinte e um com largo sorriso no rosto. Gálio continuava opaco e quieto, e isso me dava arrepios. Um facho de luz varreu meu corpo e uma voz calma ecoou da madeira.

— Investigador Conrado, membro de elite e convidado de honra. Já é aguardado.

O elevador parou no penúltimo andar, a sala do Alto-Magistrado. O lugar era mal iluminado e com cheiro de tabaco e mijo, quando eu for o líder disso darei a classe merecida a tal lugar de poder . Assim que entrei encontrei o alto policial Lesmir, um senhor rabugento com altos bigodes, uma pança larga e um desejo inadequado por garotas jovens, e sua harpia Meguedera empoleirada na guarda de uma cadeira.

Ele me cumprimentou com um aceno de cabeça rígido. A inveja e a preocupação eram palpáveis, saboreei o momento com um largo sorriso.

Lesmir estava sentado ao lado do Líder do Ligência, o Alto Magistrado Sir Nicolaj Vargo, um jupteriano decrépito de barba lilás e bom porte físico, era comentado que havia sido excluído dos Doze por seus abusos de poder e por maltratar seu totem, um kappa verruguento de nome Ismir.

Mas em minhas investigações descobri que quem o fez sair dos Doze foi o senhor Noar. Ele o acusou de um grave crime, mas não havia nenhum relatório e ninguém tocava no assunto. Eu ainda iria descobrir o que tinha acontecido e como isso se ligava a esse caso. Assim que conseguisse resolver esses mistérios, eu chegaria ao topo dos Doze e poderia até ser um bom candidato a Rainha Lim. Rei Conrado me soava muito bem.

Eu esperava que o Senhor Noar estivesse lá, sua família era complicada, mas era um homem poderoso e de cabeça boa, com as perguntas certas conseguiria resolver dois mistérios. Infelizmente o que me esperava era dois velhos corruptos e tão fracos quanto qualquer criança da escola de magia e tecnomagia. Isso era ridículo, homens fracos de inteligência e índole no poder do vilarejo mais poderoso de Teran.

— Olha quem chega, — Comentou o óbvio com um sorriso nada encantador o senhor Vargo. — Esse homem vai nos dar as respostas para essa atrocidade. — Ele apertou minha mão forte demais em uma tentativa fútil de tomar a liderança da situação. — Como vai Conrado?

Gálio cochichou em meus ouvidos a verdade do que Nikolaj Vargo quis dizer, ele não acreditava que eu poderia resolver esse caso e queria que isso fosse abafado o máximo possível, quem se importava com um lenhador que se machucou com uma árvore? Quem se importa com seres inferiores?

 Senhores, eu espero estar à altura de suas expectativas. — Saudei amavelmente, ser educado e cordial fazia parte do meu emprego, além de fingir modéstia. — Eu vou bem de acordo com as possibilidades.

Ismir todo trêmulo preparava um chá pra seu senhor, sua mão esquerda tinha marcas vermelhas e a única coisa que machucava a pele de um kappa era sal, deve ter sido castigado por alguma bobagem. Algumas pessoas são tão ruins que gostam de agredir seus próprios reflexos de alma. Repugnante em minha opinião, mas não era contra a lei, você faz o que quiser consigo mesmo.

Tenho a plena certeza que seus conhecimentos serão de grande utilidade senhor Conrado. — Disse soltando minha mão. — Afinal, você é o grande detetive de Teran. — Continuou sorrindo para Lesmir.

Eu nem me dei o trabalho de corrigir que eu era um investigador e não um detetive, eu sabia que era só manobras para me abalar. 

A pança do alto policial quase fez o botão de seu paletó disparar feito uma bala, se ele comesse mais um pouco isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Era repugnante homens de alto nível social serem tão desleixado com sua aparência e caráter. Alguns anos atrás Sir Nikolaj era considerado o melhor partido de Teran, mas depois que foi expulso dos Doze, virou uma carcaça de arrogância.

— Chega de elogios, eu vou agora mesmo para a floresta e começarei meu trabalho. — Cortei-os, pois sabia que se ficasse mais tempo iriam começar a despejar suas indiretas de poder para que se eu descobrisse algo de muito importante não revelasse para os Doze e para os outros representantes da Espiral. — Espero que todos os documentos e recursos me estejam disponíveis o mais rápido possível.

 Antes que me esqueça, a jovem da família Quillua, vai te ajudar. — Comentou Nicolaj enfiando as mãos em uma bandeja com azeitonas rosa. — Ela é a mais talentosa da academia e tem interesse de ser investigadora no futuro. — Um sorriso se formou no rosto redondo dele e Lesmir acenou com a cabeça concordando com algo que os dois tinham combinado.

 Eu terei que ser uma babá durante um caso de assassinato? — Respondi um pouco excedido, confesso.

— Calma, Conrado, — Apaziguou Lesmir se divertindo. — Veja como uma chance de mentoreado, isso poderá ajudar você subir ainda mais, e outra, para ser sincero, eu acho que Paxcal estava cortando a árvore e ela caiu em cima dele, todos sabem que ele era dado ao vinho amargo.

— Vinho Amargo. — Repetiu Meguedera.

Encarei-os estupefato, eles estavam zombando de mim, sabiam que aceitava o que era dado e que sou ambicioso. Gálio me contava que eles estavam segurando o riso. Fiz uma reverência rígida e sai. 

Para subir era necessário comer alguns tentáculos gosmentos sem reclamar, mas isso era temporário. Eu iria mostra a eles o que eu podia fazer e que os dias deles estavam contados.

***

Já fazia um tempo que eu não saia em campo e eu não me lembrava de que a natureza fedia a esterco e era tão barulhenta. Atrás de mim seguia a garota Quillua, seu vestido rosado lhe dava uma aparência infantil e ingênua, mas em seus olhos roxos havia inteligência e sagacidade, ela habilmente escolheu botas de caça e estava com uma adaga presa em seu cinto sobre o vestido. Em seu peito pendia um cristal de memória, algo muito útil para uma aspirante a investigadora, mas de difícil manejo, um deslize dela e poderia acabar em coma, tendo sua mente sugada para o cristal. Era impressionante ver a coragem dela.

A cena do crime não me chocou tanto e pareceu não abalar a senhorita Quillua, que anotava tudo que via e gravava em seu cristal de memória os detalhes que achava relevante.

O corpo do lenhador Paxcal estava repugnante, seus olhos foram furados e sua garganta amassada, além de terem cravado seu machado entre suas pernas, e ao seu lado havia cinzas de totem. Um tronco de madeira estava jogado sobre o corpo. Por isso que os boatos estavam dizendo que foi um acidente, bando de tolos!

Gálio sobrevoou a cena e voltou ao meu ombro cochichando em meus ouvidos que sentia uma vibração de vingança, ódio e medo. Isso com toda certeza foi um assassinato e o culpado estava em Ligência. Mas quem mataria um lenhador dessa forma? Essa pergunta era a mais errada possível, mas fui perceber isso tarde demais.

— Quillua, você foi tão elogiada, o que acha disso? — Não duvidava da capacidade da garota, mas precisava de outros pontos de vista.

É claro que isso tudo foi armado, — Ela apontava para cena com um olhar concentrado. — Esse tronco foi quebrado e não por causa de um corte, ele foi puxado do solo com raiz e tudo. — Disse a menina de cabelo safira, dando a volta no tronco e mostrando as raízes com terra presa. — E além do mais, dá pra ver que o lenhador foi atacado primeiro nos olhos e depois enforcado. — Ela apontou para as feridas. — Depois que o mataram colocaram o tronco para despistar.

Ela seguiu uma trilha de pegadas e voltou para perto do corpo encarando os pés do morto.

— Eu até poderia usar uma invocação pra fazê-lo voltar à vida temporariamente e fazê-lo falar, mas como a garganta foi destruída não daria em nada, mas o estranho não é isso, só tem um par de pegadas e elas se encaixam com os pés do lenhador e há muitos sulcos na terra como se raízes tivessem saído do chão. — Continuou a garota.

Sua criofênix Glacy saiu voando pela floresta, acreditei que devesse ser a primeira vez que ficava ao ar livre.

Muito bem senhorita Quillua. — Elogiei tirando minha cartola, um ato raro meu. — O que disseram de você não são acréscimos banais.

O totem da garota voltou com algo brilhante no bico.

— Senhor Conrado, olhe, Glacy encontrou algo.

Ela me entregou um monóculo quebrado. Algo muito intrigante nesse ambiente e que destoava de tudo.

— Interessante, podemos descobrir quem era o dono disso com um simples feitiço. — Comentou a garota acariciando seu totem. — Muito bem Glacy.

Totalmente desnecessário, — Corrigi-a. — O dono está na nossa frente. — Apontei para Paxcal. — Mas há valia nesse monóculo quebrado.

Esse caso estava se tornando interessante.  Ele se ligava ao maior mistério da minha vida, eu tinha dois suspeitos, e mesmo que um estivesse morto, eu não podia tira-lo da lista. E eu estava certo.

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