8. Jovem adulto

Minha irmã ainda dormia comigo todas as noites, desde que nos mudamos para Brasília, e então a levava para a cama no seu próprio quartinho, contava histórias para ela dormir, brincava de bonecas e ia em todas as festinhas da escola. No dia dos pais o nosso avô ganhava o presente e surpreendentemente eu também. Eu ficava feliz por ela me ver dessa forma, afinal, sempre estaria ao seu lado e Fernanda nunca teria que se preocupar em me perder. 

— Filho, seu pai ligou perguntando se você já decidiu algo sobre a faculdade. — Minha avó comentou, ainda hesitante. 

Ela sabia que eu odiava falar do meu pai, e odiava mais ainda quando ele tentava se meter na minha vida. 

— O que ele tem a ver com isso? — Perguntei irritado. 

— Ele quer arcar com os gastos. 

— Não quero nada que venha do Roberto! 

— Mas ele não está fazendo mais do que a obrigação. 

— Eu vou tentar ir para uma pública! 

Minha avó entendeu que se meu pai fosse o responsável por bancar a minha faculdade eu não faria, não queria nada que viesse dele, todo dinheiro que depositou na minha conta durante todos esses anos permaneceram lá, intocados. 

— Tudo bem, querido, eu entendo. Já tem algum curso em mente? 

Eu tinha, sempre tive, mas não queria seguir os passos do meu pai. 

— Medicina. 

Seguiria os passos da minha mãe e tinha certeza que essa escolha encheria meus avós e tios de orgulho, e eles eram os únicos que me importava agradar. 

— Medicina? — Ao contrário da reação que eu esperava, minha avó se mostrou surpresa, ela sabia que eu não tinha o perfil necessário e apesar de me incentivar e apoiar sempre, não ficou tão animada quanto imaginei que ficaria. 

Talvez por saber que isso nunca daria certo, não passei no primeiro vestibular para medicina que fiz para a faculdade pública, seria necessário muito mais dedicação para atingir uma nota tão alta, mas eu teria entrado tranquilamente em Engenharia Civil. Porém o problema não foi esse, meu avô decidiu que pagaria a minha faculdade já que me recusei a aceitar as esmolas do meu pai, então passei no vestibular de uma faculdade particular, mas logo na primeira aula prática desmaiei ao me deparar com um cadáver humano dissecado na sala de anatomia. Acho que era uma resposta fisiológica do meu organismo para me proteger, como aconteceu no enterro da minha mãe, talvez fosse isso, o fato é que eu já não dava conta e além do mais odiava as aulas. 

Quando falei que iria desistir minha avó não se opôs, fiquei sem graça pelo dinheiro que meu avô já tinha gasto comigo, mas ele não demonstrou desapontamento, o velho era um médico aposentado e sabia melhor do que ninguém que aquilo não era para mim. 

Fiquei um semestre parado, não havia nada para fazer além de esperar o próximo vestibular. Eu ainda tinha contato com alguns amigos da escola, boa parte deles já estavam na faculdade e agora haviam novos tipos de festa para curtir. Eu tinha um carro, foi meu presente de 18 anos, logo conquistei mais liberdade para ir e vir e minha avó já não pegava tanto no meu pé. Quem adorou essa parte foi o Rafael, ele ainda era menor de idade e me ter por perto facilitava muito as coisas. 

No semestre seguinte, fiz o vestibular para a faculdade pública novamente. Eu havia conversado com a minha avó e explicado que não queria ser como o meu pai e não pretendia seguir os passos dele, apenas gostava da profissão, e acabei passando para engenharia civil. Minha avó nunca se importou, na verdade era eu que me sentia mal, porque não queria sequer ter os mesmos gostos que aquele homem.

Então entrei para a faculdade, como era pública eu não precisava do dinheiro que meu pai mandava e tão pouco fazer com que meu avô continuasse gastando comigo, mas ao mesmo tempo que enchi meus avós de orgulho, passei a procurá-los, pois a faculdade era um mundo novo, eu já não era mais aquele garoto tímido e adorava uma farra. Geralmente começava na sexta-feira e seguia pelo final de semana, às vezes passava noites fora de casa, ou voltava extremamente bêbado, minha avó que já tinha os cabelos brancos agora faltava apenas arrancá-los da cabeça. 

Eu não queria de forma alguma ser um problema para os meus avós, mas me acomodei com o fato de que eles evitavam me dar broncas, era como se quisessem me compensar por tudo que eu havia sofrido. Ambos foram pais bastante rígidos com os filhos, mas isso não se aplicava a mim, eu respeitava eles acima de qualquer coisa, mas nunca precisaram se impor para isso, e mesmo estando preocupados com as minhas atitudes, nenhum dos dois me repreendia. 

Tia Adelina, por outro lado, chamava mais minha atenção, principalmente quando eu chegava bêbado das minhas noitadas. Na maioria das vezes ela cuidava de mim antes que meus avós pudessem notar o meu estado. 

— Você tem que ser mais responsável, Felipe, seus avós não têm mais idade para lidar com esse tipo de coisa! Nenhum de nós deu trabalho assim, eles não precisam passar por isso agora! — As palavras da minha tia me atingiram como um soco no estômago. Eu estava bêbado naquele momento, mas no dia seguinte, já sóbrio, percebi que estava sendo um fardo que eles não precisavam carregar. 

Passei a me conter mais, principalmente depois que meu avô adoeceu, estava cada dia mais debilitado, seu coração estava falhando e ele precisava passar por uma cirurgia para que fosse possível prolongar seu tempo de vida. Seria algo extremamente arriscado, todos nós sabíamos, foram meses de luta até que descansou. Seu velho coração cansado não esperou sequer a cirurgia, decidiu parar de bater, em casa, estava dormindo, uma morte tranquila como meu avô e único exemplo de pai que tive merecia.  

Sofri muito, todos nós sofremos, mas de alguma forma já sabíamos que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, os médicos estavam tentando apenas prorrogar o improrrogável, mas minha avó ficou arrasada, ela havia perdido alguém que esteve ao seu lado na maior parte de sua vida, o homem com quem havia escolhido dividir sua história, constituir uma família, estava se despedindo de seu grande amor. Se eu fosse usar a história dos meus avós como exemplo, talvez me permitisse acreditar que valia a pena amar, mas aquela era uma história em um milhão, na minha cabeça, era algo raro, algo que não se via mais. 

Permaneci fechado para relacionamentos, da mesma forma que queria viver em paz eu também não queria ser a razão do sofrimento de alguém, e no momento não me via com apenas uma única mulher, gostava de variar e se não fosse para ser correto, preferia não me envolver. Eu via os meus amigos, ou o próprio Rafael que ainda namorava com a Melissa, ficando com outras, saciando seus desejos momentâneos e voltando para as pessoas que diziam amar. Parecia algo comum para eles, estavam apenas saindo da rotina, mas foi saindo da rotina que meu pai matou a minha mãe. Solteiro, eu não correria o risco de ferir os sentimentos de ninguém.  

A morte do meu avô trouxe à tona lembranças que durante anos tentei arrancar da minha cabeça, todas aquelas memórias da morte e do enterro da minha mãe pareciam frescas novamente, e eu tentava de todas as formas ocupar minha mente com qualquer coisa que me permitisse esquecer, nem que fosse por um breve momento. Na maioria das vezes eu utilizava a bebida, as noites de farra, mas não queria causar mais problemas para a minha avó, ela vivia triste e aparentemente levaria um bom tempo para se acostumar com a ausência do vovô. 

Foi aí que comecei a realizar atividades físicas, me matriculei em uma academia de artes marciais, praticava Jiu-jitsu, e posteriormente dei início a musculação. Aquilo me fazia bem, eu me dedicava arduamente, foquei nos treinos e nas dietas, se tornou um vício saudável e um alento para o corpo e a mente. 

No ano seguinte, ao da morte do meu avô, tia Anelise decidiu se mudar para Brasília, ela queria ficar perto da vovó e acredito que o fato de todo o resto da família viver aqui pesou na decisão. Obviamente foi o tio Romeu quem não gostou nada da ideia, Cristiano também ficou contrariado, ambos gostavam do campo e da vida na fazenda. Meu tio ainda mexia com o gado e tinha dado para meu primo um cavalo de boa linhagem, com o qual ele passou a participar de várias competições, e para a minha surpresa Cristiano ganhava dinheiro com isso.

Fiquei feliz em ter minha tia por perto novamente, tio Romeu usou o dinheiro das terras que havia vendido no sul para comprar uma nova fazenda em uma cidade de Goiás, que ficava a algumas horas de Brasília, mas tia Anelise queria morar perto da minha avó e então eles se mudaram para uma casa próxima. Cristiano parecia um bicho do mato, vivia carrancudo pelos cantos, resmungando por tudo, odiava viver na cidade grande tanto quanto eu odiaria viver na roça, não era difícil compreendê-lo.  

Mas tinha algo em Brasília que ainda fazia meu primo sorrir, nossa prima Clarinha, irmã do Rafael, ela estava prestes a completar 15 anos e tinha escolhido ele para ser seu príncipe na festa. Minha prima era uma menina doce, sempre sorridente e além do mais estava ficando cada dia mais linda, eu pude perceber que Cristiano a olhava de uma forma diferente, eles não tinham crescido juntos, e apesar de serem primos, eu me perguntava se havia algo a mais no imenso carinho que ele tinha com ela. 

Rafael, Cristiano e eu passamos a sair juntos, e apesar do seu jeito matuto Cristiano se desenrolava com as garotas bem melhor do que eu na idade dele. Meus primos iam começar a faculdade no início do ano seguinte, ambos optaram por fazer medicina veterinária, Cristiano em si não me surpreendeu com a decisão, mas o Rafael sim. Se quase morri nas primeiras semanas de medicina, eu ficava imaginando o que teria acontecido comigo na veterinária, que tipo de coisas eles teriam que ver e tocar. 

O tempo passou e minhas suspeitas se confirmaram, Cristiano ficou com a Clara, às escondidas obviamente, nossa família jamais aceitaria se descobrisse, mas para minha surpresa o Rafael compactuava, ele ajudava os dois, e eu imaginava que se fosse a minha irmã, certamente eu mataria o meu primo. Mas quando estávamos a sós, apenas nós três meu primo confessava o que sentia pela Clarinha, ele realmente estava apaixonado e sofria com o fato de ter que viver se escondendo. Mais um bobo sofredor, mais um que decaía ao se entregar para essa droga chamada amor. 

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