1. Infância

Eu tive uma infância feliz, de certa forma, nós tínhamos uma boa vida, financeiramente falando, minha mãe era médica, como meu avô, o pai dela. A medicina foi um caminho que todas as suas filhas seguiram, mas a maioria delas não exerceu a profissão no fim das contas, incluindo minha mãe que largou tudo quando se casou com o meu pai. Ele era engenheiro civil, profissão que eu achava o máximo, adorava bisbilhotar os seus complexos projetos e quando tinha a oportunidade, acompanhá-lo em seu trabalho.

Roberto nunca foi do tipo presente, que se importava em me dar atenção ou brincar comigo, trabalhava muito e eu imaginava que isso era necessário, e geralmente ele compensava sua ausência com presentes, qualquer presente, eu tinha tudo que queria, exceto seu afeto. 

Por outro lado, minha mãe era meu porto seguro, companheira e dedicada, havia abdicado de sua carreira para cuidar de nós, de mim e do meu pai, e se dedicava fielmente a isso. Helena, seu nome, era uma mulher doce e amorosa, creio que isso é de família pois todas as minhas tias são da mesma forma, e isso com certeza elas puxaram da minha avó, Carmen.

Infelizmente nós morávamos longe da minha avó materna, pois ela havia se mudado com o meu avô para Brasília há alguns anos, para que ele assumisse um cargo como servidor público. Junto com ela foram duas de minhas tias que ainda eram solteiras, e minha mãe que havia se casado recentemente com meu pai, acabou permanecendo em Porto Alegre. Minha madrinha, tia Anelise, também ficou, porém ela morava com o marido, Romeu, em uma cidade um pouco mais distante, na serra gaúcha, tio Romeu mexia com gado e eles sempre levaram um estilo de vida um tanto quanto diferenciado, eu diria um estilo mais, como poderia explicar, roceiro. 

Tia Anelise tem um filho dois anos mais novo do que eu, Cristiano. Nós não éramos muito amigos na época, às vezes eles iam para Porto Alegre visitar a minha mãe, mas eu o achava insuportável, parecia um bicho do mato, só sabia falar de cavalos e além do mais, era extremamente mimado por toda a família, por ser o filho único da minha tia, após ela ter sofrido três abortos e acreditar que não poderia ter filhos. Ele havia nascido prematuro e frágil, literalmente um sobrevivente, segundo ela, devido a uma promessa que fez. O problema em questão é que meu primo era saudável, uma criança normal, porém aparentemente todos o enxergavam ainda como aquele bebê indefeso e a beira da morte, algo difícil de entender. 

Eu adorava ir para Brasília visitar a minha avó Carmen, geralmente nós íamos nas férias e passávamos as festas de fim de ano por lá, porém eu odiava quando eles decidiam passar as férias no sul, porque isso significava que passaríamos o natal na fazenda da tia Anelise, e eu não conseguia entender como alguém em sã consciência poderia gostar de viver naquele lugar, no meio do mato. Ao anoitecer os pernilongos faltavam nos carregar pelos ares, mas eles eram o menor dos problemas, tendo em vista que era normal a casa ser invadida por cobras, sapos e aranhas enormes com certa frequência. 

No ano anterior ao da morte da minha mãe, não tive sorte, minha avó resolveu ir com o restante da família para o sul, eu podia ver na expressão do meu pai que ele odiava quando isso acontecia tanto quanto eu, não posso negar que éramos muito parecidos nesse aspecto, estar na área urbana, no nosso luxuoso apartamento e longe daqueles bichos e insetos repugnantes, sem dúvidas era mais confortável para nós. 

Minha avó Carmen, chegou em Porto Alegre acompanhada do meu avô e da minha tia Adelina, a única que nunca se casou por opção própria, sempre gostou de ser livre e viajar, viver a vida sem compromissos maiores, algo admirável vindo de uma mulher naquela época, levando-se em conta que a grande maioria só tinha dois objetivos, casar e ter filhos, deixando muitas vezes a vida profissional de lado. Junto a eles foram a tia Clarisse, com o marido e os dois filhos, Rafael e Clara. 

Meu primo Rafael era um pouco mais legal que o Cristiano, ele também era dois anos mais novo do que eu, a diferença de idade dele para o Cris era de apenas alguns meses, mas na questão de maturidade a distância era gritante, talvez por não ser tão mimado quanto o outro primo, ele também gostava de videogames, futebol, e sabia conversar sobre outras coisas que não fossem os malditos cavalos. Isso até que os dois se juntassem, pois de uma forma estranha ele parecia adorar a fazenda, e se divertia com o Cristiano andando a cavalo, coisa que só tentei fazer uma vez, e depois de cair e fraturar o braço nunca mais cometi tamanha sandice.  

No fim das contas, eu acabava sozinho, até queria me juntar a eles, mas não gostava das brincadeiras, principalmente as que envolviam proximidade com animais. Nos raros momentos em que conseguíamos brincar todos juntos, brincávamos de pique-esconde, ou contávamos histórias de terror, isso era divertido, exceto quando levávamos bronca por fazer a Clarinha, que tinha apenas 5 anos, chorar apavorada. 

Naquela época, eu não me atentava muito aos problemas dos adultos, meus pais eram discretos quanto aos contratempos do seu relacionamento, eu sequer sabia que eles tinham qualquer problema, não os via brigando ou discutindo, mas também não os via tão próximos e amorosos como os pais dos meus primos. Aliás, essa diferença eu notava, os pais deles eram carinhosos, tio Romeu, o pai do Cris o chamava de campeão e vibrava sempre que ele mostrava ter aprendido algo novo, principalmente em relação aos cavalos, eles se abraçavam, ele o beijava, e tudo isso para mim era algo extremamente estranho vindo de um pai. Com o Rafael e a Clarinha não era diferente, e eu que cresci acreditando que era normal um pai ser mais distante, não entendia muito bem, mas sentia uma pontada de inveja. "Será que a culpa é minha?" pensava. 

Diante da dúvida, imaginei que talvez não fosse o filho que meu pai esperava, talvez eu fosse o culpado por ele ser tão ausente, mas não conseguia entender o que fazia de errado. Se eu era tão ruim assim, por que minha mãe me tratava com tanto amor, da mesma forma que minhas tias tratavam meus primos? Decidi tentar uma aproximação. 

Era noite de natal, nossa família já estava toda reunida na fazenda e meu pai estava distante, como sempre, notei que ele falava com alguém no seu celular, lembro-me que era um aparelho extremamente diferente do que usamos hoje, mais parecia até nossos telefones sem fio atuais. Ele aparentava estar chateado com algo, estava distraído em sua ligação sozinho num quarto, talvez buscando um local mais silencioso, imaginei que estivesse tratando sobre assuntos de trabalho como sempre. Me aproximei sorrateiramente a fim de não incomodá-lo, ele não me viu de imediato e continuou sua conversa.

— Eu sei meu amor, eu também dava tudo para estar com você, mas infelizmente enquanto não resolver toda essa situação, teremos que suportar… — Ele dizia. Estranhei imediatamente o fato dele chamar a pessoa que estava do outro lado de meu amor, afinal eu nunca tinha visto ele tratando alguém dessa forma, por que trataria alguém do trabalho assim? 

— Também estou morrendo de saudade, não se preocupe, assim que eu voltar para Porto Alegre arrumarei uma desculpa para sair de viagem, e passaremos um tempo juntos, só nós dois! — Nem mesmo a minha inocência de criança foi o suficiente para deixar de interpretar o que isso queria dizer, meu pai não estava tratando de assuntos de trabalho, ele tinha uma amante. 

— Pai… — Chamei propositalmente, ele se virou para me olhar com uma cara assombrada, como se eu fosse um fantasma. 

— Desde quando você está aí? — Era notável o desespero em sua voz trêmula. 

— Acabei de chegar. — Menti. Ele respirou fundo parecendo aliviado e rapidamente encerrou a ligação. 

— O que você quer? — Seu tom era bastante irritado naquele momento, aparentemente não gostou que eu tivesse atrapalhado o seu romance patético.

— Nada, eu só estava passando. — Abaixei a cabeça e senti meus olhos pesarem, se enchendo de lágrimas. — Com quem o senhor estava falando? — Perguntei, sabendo que não deveria. 

— Não é da sua conta, moleque! — Alterou a voz. — Não se meta onde não foi chamado e suma daqui, estava tratando de assuntos de trabalho! 

"Mentiroso", pensei, erguendo a cabeça para olhá-lo nos olhos e uma lágrima escorreu. Nesse momento sua expressão suavizou e acredito que o pouco de afeto que sentia por mim o quebrantou de alguma forma. 

— Desculpe filho, eu… Eu estou estressado, tenho algumas coisas para resolver, é só isso. — Falou num tom mais brando, arrependido. 

Permaneci encarando-o com repúdio, as lágrimas ainda desciam, mas não conseguia dizer nada, e o que poderia dizer? Como deveria agir? Eu só conseguia pensar em minha mãe, em como isso a machucaria. Virei as costas ignorando suas explicações e pedidos de desculpa, Roberto provavelmente imaginou que eu estivesse daquela forma devido a sua ignorância, mas eu sabia que se não contasse para a minha mãe, seria tão traidor quanto ele. 

Aquele foi um dos piores natais da minha vida, já não conseguia me distrair dos meus pensamentos. Meu pai voltou rapidamente e tentou de todas as formas me bajular, achou que quando desse o presente caro que havia comprado para mim, o videogame de última geração que eu tanto queria, rapidamente me animaria de novo. Mas vi a surpresa em sua face quando ignorei seu presente, sequer abri. Ele rasgou por si só o embrulho para que eu visse o conteúdo, meus primos se juntaram empolgados, exceto o Cristiano é claro, que pouco se importava com essas coisas, e naquele momento agi com tanto desprezo quanto meu pai merecia, todos estranharam, ninguém entendia a minha atitude, mas percebi que ele compreendeu, entendeu que eu sabia demais. 

A partir daquele dia muita coisa mudou, passei a ficar mais atento com suas atitudes, e isso fez com que Roberto parasse até mesmo de me levar junto para o seu trabalho. Ele notou que havia algo errado comigo, pois agora era eu quem o evitava, que o ignorava, principalmente quando vinha com suas falsas demonstrações de carinho, após perceber que seus presentes já não me comprariam. Percebi também, que ele mudou a forma de tratar a minha mãe, carinhoso e mais prestativo, hoje entendo que o traste queria evitar que ela acreditasse caso eu abrisse a boca para contar o que sabia. A questão era que meu pai não sabia exatamente o que eu tinha ou não ouvido, e ele jamais me perguntaria, não arriscaria, e apenas tentava de todas as formas me fazer esquecer, me fazer acreditar que eu havia entendido errado, mas foi em vão.

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