Capítulo 2/Realidade

Quando entrei pelo portão, foi do mesmo jeito que saí, com a mesma loucura e insensatez, a diferença é que naquele dia havia um cerco policial em volta da casa. Não conseguia ainda assimilar o ocorrido, sentia-me mal. O fato de ter me afastado completamente de meus pais durante anos me deixava desconfortável, vez ou outra. Ser quem eu sou, pensar como eu penso sempre foi quase incompreensível para a maioria das pessoas. Não consigo ver as coisas com a naturalidade que os outros veem, e minha família estava envolvida nesse meu jeito de enxergar o mundo, não tinha nada a ver comigo... Todos aqueles presentes, mimos e cobranças ridículas me afastaram cada vez mais deles. Nunca me deixei levar por riqueza e poder, para mim, o mais precioso sempre foi a liberdade. Liberdade de ser quem sou, falar o que penso, fazer o que gosto. Isso nunca combinou com o nome da família, e por isso me afastei. Jamais poderia ser quem eles queriam que eu fosse.

Quantas vezes imaginei ter nascido na família errada... Algumas vezes, ouvindo conversas pelos imensos corredores da casa, até pensava que poderia ser verdade. Coisas do teor “esse menino nem parece meu filho!” Apesar de, infelizmente, muitas coisas ensinadas tenham sido absorvidas pela minha personalidade, não sou nem de longe o que eles gostariam que eu fosse.

E, naquele momento, me via ante uma situação completamente inusitada e amedrontadora.

Desci da moto, e logo um policial se aproximou:

— Você não pode entrar aqui!

— Sou filho de Giovanna e Peter Donovan. — as palavras saíram quase como um sussurro.

— Oh... Sinto muito. O investigador está lá dentro observando a cena do crime com os peritos — o policial disse, me encaminhando pela porta de entrada da casa, que, a propósito, continuava exatamente como eu me lembrava.

Entrei sem coragem e logo vi os peritos trabalhando, passavam pincéis com algum tipo de pó pelos corrimões da escada, paredes, degraus... Olho ao redor e percebo que tudo continua do mesmo jeito por dentro também. Um homem se aproxima e estende a mão:

— Você deve ser Matthew Donovan.

Eu o cumprimento e assinto com a cabeça.

— Prazer, sou o investigador Ramires. E prometo que faremos todo o possível para encontrar o assassino, ou assassinos, de seus pais. Preciso lhe fazer algumas perguntas, mas antes poderia me acompanhar até o quarto em que eles foram mortos?

Paro um pouco, não sei se gostaria de ver aquela cena, mas acabo concordando.

Subo as escadas atrás de Ramires e logo vejo a porta do quarto de meus pais aberta e várias pessoas lá dentro, tirando fotos. Por maior que fosse a diferença com eles, jamais os odiei. Senti uma sensação estranha, procurei não demonstrar, não para os outros, mas para mim mesmo. Entrei logo atrás do investigador, e o choque foi grande... Tanto meu pai quanto minha mãe tinham a cabeça praticamente arrancada do corpo... Vários hematomas espalhados pelo corpo, como se tivessem lutado muito pelas suas vidas... Quanto ódio pode existir em um ser humano para que ele faça algo assim? Senti meu rosto ficar quente e vermelho e um misto de ódio por terem feito aquilo com eles, além do remorso que me corroía. Saí do quarto e desci as escadas, seguido de perto por Ramires.

Já no andar debaixo, sentado na poltrona que era de meu pai, tentei entender tudo aquilo, sem conseguir, é claro, e Ramires inicia uma conversa:

— Já percebi que você é de poucas palavras, mas precisamos conversar. Matthew, você sabe de algum inimigo que seu pai ou mãe pudessem ter?

— Olha, Ramires, para ser bem sincero, não via meus pais há sete anos... Nos falávamos às vezes por telefone. Então não posso te dizer muita coisa. Mas por que inimigos? Não foi roubo ou coisa parecida?

— Nada foi levado da casa, a porta não foi arrombada, o sistema de segurança não foi acionado...

— Mas e as câmeras? Meu pai sempre viveu cercado por elas!

— Já procuramos e absolutamente nada foi gravado, por incrível que pareça, parece que o sistema de segurança foi desligado propositadamente por seu próprio pai alguns minutos antes de essa pessoa entrar... É como se ele não quisesse que a tal pessoa fosse vista.

— Sinceramente... Não posso ajudar muito. Sei lá, talvez por ser um homem de negócios... Lembro-me de ouvi-lo dizer como era complicado o mundo dos negócios, sempre tinha alguém querendo puxar o tapete... Mas isso faz tanto tempo!

— Tem certeza de que em nenhuma de suas conversas pelo telefone com seus pais eles deixaram escapar nada? Pense bem!

— Não, nada que parecesse suspeito.

— Nem um pedido de ajuda?

— Já disse que não!

— E por que se afastou de seus pais tanto tempo?

— Isso é um assunto meu e deles...

— Por que o nervosismo Matthew? Estou apenas investigando o caso! Afinal, você sendo o único filho e não tendo um bom relacionamento com seus pais... A morte deles daria a você direito a tudo!

— Sabe o que eu acho? Que você é um bosta querendo ganhar fama com esse caso! Faz sete anos que eu não piso aqui, vocês me chamam e agora você quer me acusar de assassinar meus pais, seu merda! Saí daqui porque não queria nada deles... Se quisesse, teria ficado, imbecil!

— Calma aí, rapaz, está falando com uma autoridade!

— Autoridade? Que autoridade você acha que tem? Vai fazer seu trabalho e descobrir quem fez essa barbaridade.

— Vou dar um desconto porque sei que deve estar chocado com tudo isso aqui... Mas vou investigar tudo, sim, inclusive você!

— Pode investigar o quanto achar necessário.

Saio pela porta e vou até o jardim acender um cigarro, a imagem dos meus pais mortos não sai da minha cabeça.

É claro que havia inimigos, afinal o poder e o dinheiro atraem muitos desafetos, ainda mais de meu pai, que sempre passou por cima de tudo e todos para alcançar seus objetivos.

“Quem teria tanto ódio para fazer tal coisa?” — esse era o pensamento que me rondava.

Fumei meu cigarro, acendi outro, a essa altura já não sabia mais o que me impulsionava a fumar um cigarro atrás do outro, se a dor de vê-los naquele estado ou o remorso. Não conseguia chorar, apesar de sentir um nó na garganta.

Tentei ser prático, eu era o único que poderia organizar as coisas daquele momento em diante... Eu era o herdeiro — meu Deus, como essa palavra era pesada! Sentia que ela podava absolutamente a liberdade pela qual eu tanto prezava.

Fechei meus olhos, respirei fundo... Não era mais um garoto de dezoito anos, era um homem, e apesar de minha vontade de sair de lá correndo e deixar tudo nas mãos de outras pessoas, sabia que não podia fazê-lo. Queria tanto crescer alguns anos antes, mas naquele momento vi que quando se cresce, há um tipo de sinal, de alarme que cresce junto e resolve ficar apitando na nossa cabeça quando uma coisa chamada responsabilidade aparece.

Precisava preparar o velório deles, até já podia imaginar as manchetes do dia seguinte, que, àquela hora, já deviam estar rodando nas prensas de todos os jornais do país.

Imaginava os acionistas da empresa de meu pai como urubus sobrevoando a carniça... Minha vida tomaria um rumo completamente diferente de tudo o que eu sempre quis... A vida estava me carregando pelas mãos de volta a um mundo que havia muito eu deixara para trás...

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