A hora da verdade

Jorge mal falou com Ana depois que chegaram. Logo deixou que os outros terminassem o que ainda havia por fazer e se afastou, dizendo a Ana que iria tomar banho e descansar um pouco. Como estava com pressa de falar com Jeremias, Ana concordou e, quinze minutos depois, autorizou o resto da equipe a deixar o que estavam fazendo para mais tarde. Depois que todos se retiraram apenas Jeremias ficou para trás e Ana ordenou que a aguardasse em sua sala.

Quando Jorge chegou ao alojamento, foi logo tomar banho. Ao voltar para o quarto, em que dormia com outros três caçadores, percebeu que não havia mais ninguém além dele e trancou a porta. Sentou-se sobre a outra cama e, exausto, logo se deitou. Alguns minutos depois, quando Jorge já estava cochilando, alguém bateu à porta. Ele despertou de repente e levantou num pulo. Sobressaltado, olhou em direção à porta, só então lembrou que a havia trancado. Como Jorge demorou a responder, o assistente de Ana bateu mais uma vez e então disse:

– Jorge? Ana o aguarda em sua sala e quer que você vá até lá o mais rápido possível.

Jeremias estava lá quando ele entrou e o encarou com um sorrisinho debochado, que fez com que Jorge tivesse vontade de lhe bater outra vez. Jorge não disse nada ao entrar, apesar de olhar furioso para Jeremias, passado alguns instantes, Ana disse:

– Sabe, Jorge, depois de tantos anos trabalhando com vocês, muitas coisas mudaram e evoluíram, mas o que eu nunca consegui entender era como vocês conseguiam fazer tanto num período tão curto. Pois nos últimos anos o tempo das viagens de vocês tem reduzido bastante, apesar de muitas vezes mostrarem mais trabalho e trazerem mais animais. Além de, é claro, fazerem mais viagens que antes. Esta e outras coisas me deixaram desconfiada e tentei encontrar uma maneira de descobrir o que estava acontecendo.

“Ouvi muitas vezes vocês falando nomes de coisas que desconheço. Confesso que isso me levou até mesmo a pensar que estivessem envolvidos em tráfico de animais e outras coisas desagradáveis, mas eu precisava ter certeza do que se tratava. Então tive que contratar Jeremias, e para garantir que não levantasse suspeitas optei por buscá-lo entre os alunos em treinamento, e ele se mostrou muito interessado em fazer o que eu lhe pedia. Por favor, não se assuste, eu não vou passar nenhum sermão, só quero que me diga uma coisa, Jorge, é verdade o que ele acabou de me contar?

Jorge, ainda calado, foi até a cadeira e sentou-se nela, não esperava por uma coisa dessas e foi pego de surpresa. Não sabia o que ele havia dito a ela, mas deve ter dito o que viu por isso respondeu:

– É... É verdade!

– Há quanto tempo isso está acontecendo? – disse Ana, começando a fazer as perguntas que Jeremias não soube responder.

– Deve fazer uns dez anos, talvez mais. Eu não estive entre os primeiros caçadores que se associaram a eles, até onde sei foram eles que nos procuraram pela primeira vez – respondeu Jorge. Não podia dar uma data precisa porque também não sabia. – O primeiro encontro foi numa época difícil que os caçadores passaram na América do Norte. Aquela equipe encontrou dois homens que não pertenciam ao grupo, mas logo se juntaram a eles e os convenceram a ajudá-los, com o tempo outros vieram e as demais equipes começaram a fazer o mesmo...

– Há dez anos vocês ainda trabalhavam com o exército e as estações mal haviam sido inauguradas – disse Ana interrompendo-o. – Quantas equipes estão envolvidas? Como puderam me trair desta maneira... E por tanto tempo?

– Não posso dizer com certeza, mas imagino que todas as equipes estejam envolvidas – respondeu Jorge. – Nós não a traímos, eles prometem vir procurá-la desde o início, mas estão sempre adiando com novas desculpas. Você sabe que o começo foi difícil, ninguém queria ser caçador num lugar como este, e não foi fácil para eles também. Apesar das dificuldades, eles sempre tiveram um ótimo equipamento, o que tornava tudo mais fácil e seguro.

“Nos últimos anos eles sempre nos acompanham com dois aviões, um deles os possibilita procurar o que queremos do alto. Com o metrô, às vezes, levávamos dias para encontrar as espécies que procurávamos e horas para caçá-los. Mas hoje, com o avião, a área investigada é mais ampla e rápida, encontramos os animais com mais facilidade e basta apenas um tiro, que dispara um objeto redondo que pega os animais escolhidos e os prende numa gaiola sem nenhum esforço de nossa parte.

Jorge olhou mais uma vez para Jeremias, que estava de pé atrás de Ana e acompanhava tudo em silêncio, com a expressão mais séria que alguém pode ter. Instantes depois, Jorge voltou-se para Ana à sua frente desejando já ter respondido tudo o que ela queria saber, mas, se bem a conhecia, ela não iria contentar-se com tão pouco. O que se confirmou instantes depois, pois Ana, ao ver que o silêncio de Jorge já estava se prolongando demais, fez outra pergunta.

– O que eles fazem com os animais que levam?

– Eles têm um trabalho de pesquisa parecido com o nosso, mas ao contrário de nós, nunca interromperam suas pesquisas com os animais carnívoros – respondeu Jorge, acrescentando em seguida: – O resto não passa de boatos que na maioria das vezes eles contam, passando a impressão de que não falam sério.

“Esses boatos falam sobre um programa genético, no qual estariam criando diversas espécies de dinossauros com o propósito de serem levados a outro planeta, para que sobrevivam à extinção. Eles sempre evitam falar sobre isso e acho que alguns nem acreditam naquilo que chamam de ’projeto arca de Noé’, mas, qualquer que seja a verdade, deve ser um segredo conhecido por poucos.

– Há razões para não acreditarem – disse Ana, parecendo surpresa com o que ouviu. – Nenhum planeta do nosso sistema solar seria capaz de abrigar qualquer espécie de vida. Os poucos planetas com capacidade de abrigar alguma forma de vida estão fora de nosso sistema solar, como eles pretendem levá-los até outro sistema solar se ainda nem conseguimos sair do nosso? Apesar de inúmeras supostas aparições de discos voadores e alienígenas, ainda não há nenhuma prova concreta de qualquer forma de vida fora de nosso planeta. E, mesmo que no vasto universo haja um planeta capaz de abrigá-los, como eles pretendem levar estes animais para lá? E por que alguém investiria tanto em algo que não dará lucro algum e nem sabem se vai dar certo?

– Estas são perguntas para as quais eu não tenho respostas – disse Jorge, espantado com a reação de Ana. Por um momento pensou que ela iria lhe cobrar até mesmo respostas que não tinha.

Jorge levantou da cadeira, esperando que já pudesse se retirar, mas Ana prosseguiu:

– Espere, ainda não acabei! – disse, obrigando-o a sentar-se novamente. – De onde eles vêm?

– Depois de todos estes anos ainda conheço poucas pessoas de lá, apenas caçadores ou biólogos como nós e alguns pilotos. Nunca cheguei a conhecer o laboratório deles, sempre nos encontramos pelo caminho, só o que sei é que os animais são levados para um lugar perto daqui, que nunca soube onde fica – respondeu Jorge e depois de uma breve pausa perguntou: – Posso ir agora?

– Esteja à vontade! – disse Ana tranquilamente. – Mas esteja ciente de que haverá uma suspensão de dez dias para todos o período de cada um virá na escala – acrescentou.

Jorge fez menção de sair, mas seus olhos pararam sobre Jeremias e então, pensando no que aconteceu, lembrou que ainda havia algo a dizer.

– Se ele pretende ficar, trate de colocá-lo em outra equipe – disse Jorge, prosseguindo em direção à porta.

– Não o culpe pelo que eu mandei que fizesse – disse Ana.

– Não me refiro ao que ele fez por você, mas ao que ele fez por conta própria – disse Jorge, levando uma das mãos à maçaneta da porta, voltando-se para Ana. – Mas, como eu já imaginava, não deve ter contado nada sobre os erros que cometeu, apesar de saber narrar muito bem os dos outros.

“Antes de voltarmos, fomos atacados por um carnotaurus. A primeira coisa que ele fez foi correr para o caminhão e se trancar lá dentro, destruindo o botão que abre a porta. Mais tarde soube até que discutiu com Mateus, querendo obrigá-lo a partir, deixando os outros para trás. Foi o pior caçador que eu conheci nos últimos anos, é por causa de gente como ele que tantos colegas já morreram lá fora.

Só então Jorge abriu a porta e deixou a sala, enquanto Ana, virando-se para Jeremias, perguntou:

– Isso é verdade?

– Bom... – começou Jeremias, ficando nervoso – não foi bem assim, o botão quebrou por acidente, fazendo com que a porta se trancasse, não foi culpa minha. – Ele tinha tanta esperança de se sair bem na viagem, para não ter que terminar o treinamento, e as esperanças agora estavam se tornando cada vez mais vagas. Então ele ainda hesitou por um momento, antes de tomar coragem e perguntar. – E agora, como é que vai ser?

– Como é que vai ser? – repetiu Ana. – Agora você vai repetir todo o treinamento, isto se é que ainda pretende continuar depois do que fez!

– É claro que pretendo continuar, se eu fosse desistir na primeira dificuldade não estaria aqui, só espero fazer melhor da próxima vez – disse Jeremias, e em seguida saiu decidido.

– A propósito – disse Ana chamando-o de volta. – Dez dias de suspensão para você também serão cobrados quando você entrar para o grupo.

Nada saíra conforme Jeremias esperava, estava certo de que Jorge e Ana teriam a maior discussão onde Jorge negaria tudo até o fim. No entanto, tudo se resolveu com um simples diálogo, em que Jorge não perdeu tempo com desculpas, contando logo tudo o que sabia. Alem disso, herdara a punição deles em um emprego onde ainda nem havia começado

Pouco tempo depois que Jeremias saiu, a secretaria entrou dizendo a Ana que queriam falar com ela. A única coisa que sabia deles eram seus nomes: Renato, Carlos e Débora.

Quando Ana os encontrou, conversaram durante muito tempo. Como já haviam planejado, os ecologistas não disseram o que queriam, por isso começaram querendo conhecer a universidade. Ana hesitou um pouco, mas acabou concordando em mostrá-la. Apesar de ser mais voltada a cursos universitários, a instituição continha também salas de primeiro e segundo graus, pois, como muitos funcionários moravam ali com suas famílias, os mais jovens também precisavam de escolas, então decidiram colocar tudo num só lugar.

Os ecologistas queriam conhecer tudo, chegando inclusive a entrar em algumas salas de aula, mas se demoraram mais nas partes que lhes interessavam, como o laboratório e a área destinada a abrigar os animais. E foi só quando estavam no pavilhão, andando por corredores cercados por gaiolas, que se sentiram confiantes a ponto de revelar a Ana que eram ecologistas.

– Espero que entenda que só estamos revelando isso porque confiamos em você e sabemos que entende a nossa causa – disse Renato, logo após revelarem. – E queremos fazer um pedido que é muito importante para nós. Da próxima vez que os caçadores saírem da estação para cumprir suas tarefas, queremos acompanhá-los. Mas não devem saber o que fazemos e qual o nosso verdadeiro objetivo entre eles, pois é a única maneira de vigiá-los e descobrir se estão cometendo alguma irregularidade. Se puder nos ajudar, talvez no futuro possamos ajudá-la também.

– Vocês não estão falando sério? – perguntou Ana, surpresa. – Eu não posso permitir uma coisa dessas!

– Escute, Ana, é muito importante... – interveio Débora, mas Ana não permitiu que ela acabasse seu argumento.

– Escutem vocês... Quando as obras começaram, este lugar era protegido pelo exército... Nem eles foram capazes de nos proteger contra os perigos que há lá fora. Eu, particularmente, acredito que o erro foi deles por agirem de um modo muito agressivo, mas já vi o suficiente para saber que este lugar é perigoso.

“Os primeiros anos da Dimensão Turismo guardam uma história tão terrível que, se não fosse pela descoberta do manto elétrico que torna possível ocultar a nossa existência dos animais que vivem lá fora, talvez não estivéssemos aqui hoje. Agora peço que vocês me entendam, esse é um assunto que não depende apenas de minha boa vontade e, sim, de segurança.

“Os caçadores convivem com animais perigosos, solitários em um mundo onde não sabem o que poderão encontrar pela frente. Eu mesma acabei de fazer uma investigação quanto aos caçadores e posso garantir que suas irregularidades não têm nada a ver com problemas ambientais. Mas confesso que fui um pouco precipitada em escolher o meu espião, chamando-o antes que acabasse o treinamento, e o resultado quase foi catastrófico. Lamento, mas não posso deixá-los juntar-se aos caçadores, não sem antes passarem por um treinamento, assim como todos os outros.

Ana continuou andando após concluir seus argumentos, mas os ecologistas pararam no meio do caminho, chocados com a proposta da bióloga. Eles olharam um para o outro e, por um momento, pareceram muito pensativos tendo que tomar uma decisão rápida, então Renato balançou a cabeça com um sinal afirmativo e, sem que nenhum deles dissesse nada, Carlos voltou a andar em passos rápidos para alcançar Ana e disse:

– Nós aceitamos... Faremos o treinamento! – Pouco depois os três alcançaram Ana, voltando a acompanhá-la lado a lado.

Quando Renato, Carlos e Débora deixaram a universidade naquela tarde pareciam abatidos, não por terem se frustrado em suas expectativas, ou por não terem alcançado seus objetivos, mas por perceberem que sua permanência ali seria bem mais longa do que esperavam.

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