Capítulo 2

Capítulo dois - Entrando em problemas

* * * * * * * * * * 

“Se você se sente só, é porque ergueu muros em vez de pontes"

- William Shakespeare -

 * * * * * * * * * * 

~ Lydia ~

            Eu ainda aguardava por alguma resposta. Ensaiei aquele momento tantas vezes, que esperava por qualquer tipo de reação da parte dele. Esperava que ele gargalhasse, que dissesse que eu estava louca em lhe pedir algo daquele tipo, ou mesmo que levantasse e saísse correndo. Mas nunca, em momento algum, imaginei que ele, simplesmente, não tivesse reação alguma. Ficou parado, estático, me encarando com os olhos azuis arregalados. Sequer piscava!

— Branquelo? Ainda está vivo? — Sacudi a mão diante dos olhos dele.

Após mais alguns segundos, ele enfim disse alguma coisa:

— Espera, vamos por partes! Deve ter um meio de anular esse contrato.

— O que o tornaria nulo? Pode não parecer, mas eu sou uma mulher. Não sou nada além de uma propriedade de minha família.

Eu odiava dizer aquilo, como todas as minhas forças. Mas era a mais pura verdade. E Daniel sabia disso. Porém, continuou a insistir:

— Tem que ter um jeito... Qualquer coisa, menos isso.

Acho que eu não tinha explicado da forma certa. Por isso, tentei tranquilizá-lo:

— Olha, não vai ser de verdade. Entenda, é apenas uma farsa. Estou com vinte e cinco anos. Eu só preciso de um ano... Ou melhor, de oito meses, antes que eu complete vinte e seis e esteja livre dessa obrigação.

— E depois disso?

— Depois disso nós “rompemos” nosso “noivado”. Branquelo, por favor... Apenas por oito meses! Disse que faria qualquer coisa para me ajudar.

— Qualquer coisa, claro! Mas não mentir!

— O que é pior? Uma mentira para a minha família, ou a minha infelicidade pelo resto dos meus dias? Não entende? Aquele homem é um velho asqueroso. Eu não posso me casar com ele!

— Mas e depois? Quando passarem esses oito meses, como vou explicar para sua mãe o fato de te “renegar” do dia para a noite?

— Não vai precisar explicar nada. É só ir embora! Ela nem vai se surpreender com o fato de um homem estar me renegando. Ela sabe que sou insuportável, me diz isso pelo menos cinco vezes ao dia!

Ele suspirou e abaixou a cabeça, pensativo. Após quase um minuto de total silêncio, tornou a me encarar e deu a sua resposta:

— Eu sinto muito, magrela. Mas não poderei fazer isso por você.

Novamente, uma reação que eu não poderia esperar. Sempre achei que pudesse contar com ele, mas, naquele momento... justo no momento em que eu mais precisava na vida, ele estava se recusando a me ajudar. Mas eu já deveria esperar por isso. Eu era mesmo sozinha no mundo, sempre fui... E precisaria resolver aquilo por mim mesma. Embora não fizesse ideia de como faria isso.

Senti que meus olhos começaram a inundar, mas não iria me permitir chorar diante dele. Já tinha sido humilhação demais em uma única noite. Assim, apenas me levantei e disse:

— Desculpe por isso. Eu apenas achei que fôssemos amigos. – Antes de me virar e sair do local.

Ao voltar ao frio congelante da rua, senti-me completamente perdida, desnorteada. Mais do que em qualquer outro momento da minha vida.

Ali, não consegui mais conter as lágrimas.

* * * * * * * * * * 

~ Daniel ~

Ainda levei alguns instantes para conseguir recapitular e compreender o que tinha acabado de acontecer ali. A situação era tão surreal, que, por um momento, me pareceu que eu deveria estar preso em alguma espécie de sonho bizarro. Porém, logo compreendi que não poderia continuar a ficar pensando a respeito daquilo. Não enquanto a Magrela estivesse sozinha pelas ruas, completamente desnorteada.

Quando, enfim, consegui ter alguma reação, levantei-me e me apressei em pagar a conta e correr porta a fora, até alcançá-la, já na rua. Segurei-a pelo braço, fazendo-a parar.

— Espera, magrela... Olha, eu vou te ajudar, mas... Mas não assim.

Ela se virou, me encarando. O rosto rosado já molhado pelas lágrimas, e os olhos verdes expressando nada mais do que medo. Nunca a tinha visto de tal forma, e aquilo fez o meu peito doer, como se estivesse sendo rasgado de dentro para fora.

Ainda achei que ela fosse tentar fugir, mas, ao invés disso, insistiu em seu pedido:

— Por favor! Sei que isso pode te trazer alguma vergonha. Mas nenhum de seus amigos precisa ficar sabendo.

— A questão não é essa!

— Então qual seria?

— Seria... — Calei-me, perdendo-me em meus próprios argumentos.

            De fato, qual seria a questão? Seria apenas uma mentira pequena, para salvar uma amiga. E sabia que eu era a única pessoa com quem ela poderia contar para fazer tal pedido. Se eu não aceitasse, seria o fim da vida dela. Ela seria obrigada a casar com um homem a quem abominava, e a passar o resto de seus dias a mercê dele. Um destino triste, trágico, que eu não desejaria nem para meu pior inimigo.

Se estava em minhas mãos impedir que minha amiga tivesse que passar por tal coisa, por que não fazê-lo? Lembrei-me da relação de companheirismo e cumplicidade que sempre tivemos nos tempos do colégio, ou mesmo depois, nas poucas vezes em que nos reencontramos. Apesar de termos passado os últimos três ou quatro anos sem qualquer contato, o carinho que eu tinha por ela permanecia o mesmo. Ela fazia parte do pequeno e seleto grupo de pessoas pelas quais eu faria qualquer coisa no mundo para ver feliz. Sendo assim, como poderia deixá-la na mão, no momento em que ela mais precisava?

A ideia era absurda e estúpida. Mas era a única ideia que poderia salvá-la. Sendo assim, declarei, por fim:

— Certo, eu vou te ajudar.

            Ela abriu um largo sorriso e, num surto extremo de felicidade, me abraçou rapidamente e, quando soltou, começou a socar-me o peito, com força.

            E a doida, apesar de pequena, era bem forte.

— Obrigada, obrigada, obrigada! — ela gritava, feliz.

— Tá, tá... Chega disso, Magrela.

Ela parou e, ainda sorrindo, me corrigiu:

— Lydia!

Franzi a testa, ainda demorando alguns segundos para compreender a palavra dita. Eu praticamente nem me lembrava mais do nome dela.

Aliás, desde quando fazia questão de ser chamada assim?

— Não vou conseguir te chamar de “Lydia”.

— Que pena, porque esse é o meu nome.

— Mas você nunca fez questão dele.

— Eu não faço, mas a minha mãe faz. Seria muito estranho o homem que pedirá minha mão em casamento aparecer me chamando de “magrela”.

Eu mal tinha aceitado o acordo, e já começavam as exigências! E isso porque era um noivado de mentira!

— Certo... Lydia! Quando vamos para a forca?

Ela riu. Que bom que mais alguém encarava a situação com bom humor.

— Daqui a exatos dez dias. Esteja na minha casa, para o baile. E chegue cedo, se não o Lord pode te passar a perna!

— Mas de jeito algum! A dama é minha! — Minha atuação ao dizer essa frase foi digna de um ator de quinta categoria. Até eu achava estranho me referir à Magrela... ou melhor, à Lydia, como uma dama.

Mesmo assim, ela voltou a rir. Parecia se divertir com tudo aquilo.

— Esteja lá! — ela reforçou.

— Estarei!

— Bem... Então, boa noite!

Ela virou-se para ir embora, mas eu logo comecei a segui-la. Tínhamos andado poucos passos quando ela olhou para trás, percebendo que eu a acompanhava.

— Achei que sua casa ficasse para o outro lado, Branquelo.

— E fica. Mas, já que vamos ficar noivos, acho que devo te acompanhar, donzela! — Novamente, fui irônico.

Mas ela conseguiu entender qual era, exatamente, a minha intenção:

— Certo... Está sem sono e quer jogar mais conversa fora, não é?!

Foi a minha vez de rir.

Como ela podia me conhecer tão bem?

* * * * * * * * * * *

Dez dias depois.

Descendo da carruagem, eu ajeitei os meus trajes. Confirmei o endereço em um papel, mas nem precisava: o entra-e-sai de pessoas vestidas elegantemente denunciava que era naquela mansão onde ocorria o tal baile.

Nunca havia ido à casa da Magrela (digo, Lydia!). Portanto, me surpreendi com o tamanho de tudo aquilo. Apesar de a família estar praticamente falida há mais de duas décadas, ainda viviam (muito bem, por sinal) de aparências.

Cruzei o extenso jardim, até chegar a casa. Adentrei-a, olhando ao redor, à procura do único rosto conhecido por ali. Logo no hall, passei por uma elegante dama, e lhe fiz uma breve mesura, antes de seguir caminhando. Mas parei, quando ouviu a voz dela a chamar o meu nome:

— Daniel?

            Virei-me em sua direção, olhando-a um pouco melhor. Senti o ar me faltar por breves instantes.

            Seria possível?

Era uma bela jovem, trajada em um elegante vestido verde, que, juntamente com um conjunto de colar e brincos de esmeralda, realçava-lhe a cor dos olhos. Os cabelos aloirados estavam presos, com alguns fios soltos, cacheados, caindo sobre seu rosto e pescoço.

            Seria possível que fosse ela?

            — Magrela?

— Lydia! — Ela me corrigiu, parecendo achar graça da cara de bobo com a qual eu certamente a olhava. — Chegou na hora certa.

Não disse nada. Ainda estava tomado pela surpresa daquela visão.

* * * * * * * * * * * 

~ Lydia ~

            Ver Daniel vestido de forma tão elegante não significava exatamente uma surpresa para mim. Mesmo assim, não era algo que eu pudesse deixar de admirar. O Branquelo sempre foi um garoto bonito, embora, provavelmente, bem menos do que se considerasse (como ele poderia ter a audácia de se achar mais bonito do que seu irmão Adam, que era a perfeição em forma de ser humano?).

            Ele era bem alto (e por isso me considerava baixinha, embora eu tivesse uma altura mediana, para uma mulher). Tinha os cabelos loiros e a pele bem branquinha, o que, obviamente, rendeu o apelido de infância. Precisava confessar que o que eu mais gostava nele eram os olhos. Azuis, vivos, brilhantes e, acima de tudo, sinceros. Daniel odiava mentiras e, exatamente por isso, não se sentia nada à vontade na situação em que eu o tinha colocado.

            O pedido de noivado tinha sido feito logo no início do baile. Percebi que Daniel ficou meio impressionado com o assombro dos convidados e principalmente da minha família ao ouvirem aquilo (afinal, até eu precisava concordar que era mesmo muito estranho Lydia Graham ser pedida em casamento). As mais assombradas, claro, foram minha mãe e minha irmã caçula. Quando minha mãe, vencida, sorriu e nos felicitou, ficou clara a falsidade explícita ali. Um sorriso absurdamente falso, frio e forçado.

E então, enfim, estávamos compromissados. Se em algum momento das nossas vidas alguém nos dissesse que terminaríamos ficando noivos, acredito que tanto eu quanto o Branquelo seríamos capazes de ter um ataque de risos. Aquela era, sem dúvidas, a situação mais bizarra das nossas vidas.

Após as formalidades do pedido, nós dois seguimos para o jardim, no mais absoluto silêncio. Até chegarmos a um ponto onde eu, ao olhar ao redor e constatar que não havia mais ninguém, parei e pude enfim deixar claro o meu desespero. Comecei a, aflitamente, balançar as mãos e a pular, pedindo:

— Abre! Abre! Abra esse vestido, pelo amor de Deus! — Virei-me de costas para Daniel e ouvi que ele começava a rir.

— Mas aqui, querida? E agora? Seja paciente e espere até o casamento.

Isso lá era hora de fazer piada? Eu estava morrendo!

— Idiota! — gritei. — Abre logo isso, eu não consigo respirar!

Soltando uma sonora gargalhada, ele enfim teve piedade e atendeu ao meu pedido, afrouxando o entrelaçado das costas daquele maldito vestido. Finalmente pude respirar, aliviada. Minha coluna e meus pulmões agradeciam por aquela liberdade.

Deixei-me cair sentada na grama, largando de lado todo e qualquer vestígio dos modos que exibia minutos antes. Sentando-se ao meu lado, Daniel continuava a rir.

— Tá rindo do quê, Branquelo? — Fiz bico, mostrando irritação.

— De você tentando bancar a dama.

— Não gosto disso, mas não tenho escolha. Ao menos, consegui fazer um acordo com minha mãe: eu me comporto como uma perfeita dama diante das visitas, e ela não interfere no meu jeito de vestir ou agir quando estamos só nós e os empregados em casa.

— É uma troca vantajosa para os dois lados. Mas e agora, qual o próximo passo?

— Bem... Você dormirá aqui.

— Querida, já lhe disse: uma dama decente espera até o casamento para fazer essas coisas.

Foi a minha vez de rir.

— Eu disse aqui, e não comigo! Ficará em um quarto de hóspedes. Aliás, eu já peguei no sono na mesma cama que você incontáveis vezes.

— É, mas nessas ocasiões, não estava vestida como uma dama.

— Como se isso fizesse alguma diferença.

~ Daniel ~

            Não deveria mesmo fazer. Eu sabia que, embaixo de toda aquela roupa elegante, ainda estava a mesma Magrela dos tempos de escola. Mas juro que nunca imaginei que ela pudesse ficar tão bonita vestida daquele jeito.

            No entanto, uma curiosidade vinha me consumindo desde que cheguei ali:

— Você me disse que o tal Lord vinha ao baile, mas acho que não o vi.

O sorriso dela se desfez. Parecia não gostar muito de falar do tal sujeito. Mas, mesmo assim, respondeu:

— Ele estava um pouco afastado. Mas notei que pareceu revoltado com o seu pedido. Aquele asqueroso... Arg!

— Por que o odeia tanto?

— Não gosto da forma com que sempre me olha. Mesmo quando a esposa ainda estava viva.

— E que jeito seria esse?

— O jeito que homens sem-vergonhas costumam olhar para mulheres.

Ah, era verdade. Lembrei-me das palavras do meu irmão: nunca se esquecer de que a Magrela era uma mulher. Quando ele disse isso, confesso que pensei que tal conselho era completamente idiota. Oras, eu sabia que ela era uma mulher. Mas, só agora tinha entendido. Eu sabia, mas não entendia isso, até então.

Mas ainda poderia recuperar o tempo perdido e tentar, enfim, compreendê-la como mulher.

— Ei, magrela... Me  conta, por que nunca se casou?

Ela abaixou os olhos, parecendo não se sentir à vontade com a pergunta.

— Porque nunca encontrei ninguém que me interessasse.

Ainda assim, insisti:

— Eu sempre te contei sobre as minhas paixões, mas você nunca falou nada a respeito das suas. Nunca gostou de ninguém?

Ela fez uma pausa. Eu olhava para a grama, mas voltei a olhá-la e então percebi que o rosto dela estava corado.

— Eu... Gostava de um garoto, do seu colégio.

Aquela, sim, era uma surpresa e tanto.

— Mesmo? Quem?

Alguns segundos de um constrangido silêncio antecederam a tímida resposta:

— Lord Adam Harrington.

Eu praticamente gritei, incrédulo:

— Você gostava do meu irmão?

— Fale mais alto, Daniel. Acho que os criados da cozinha não conseguiram ouvir.

É, e eu acho que aquela não era uma frase muito feliz para ser gritada por um noivo. Passei a falar mais baixo:

— Você gostava do Adam?

— Que diferença isso faz?

— Como “que diferença faz”? Devia ter me contado. Eu falaria com ele, se fosse o caso.

Ela riu.

— Ah, é? E que chances eu teria sendo uma “magrela”, tendo o cabelo para o alto assim —  Ela gesticulou, imitando o modo como eu sempre me referia ao cabelo dela nos tempos de escola — sendo uma louca e, ainda por cima, não fazendo o tipo “moça para casar”?

Pude ouvir a minha própria voz naquelas palavras. E isso não foi nada agradável.

— Magrela... Não devia dar atenção às palavras de um idiota.

— São as suas palavras.

— Exatamente!

Ela se levantou e, enquanto passava as mãos pelas vestes para tirar a poeira (sem uma gota de classe, aliás), falou:

— Nada disso tem mais importância. É melhor voltarmos ao baile, vem.

            Ela estendeu a mão para me ajudar a levantar. Então, eu consegui reforçar mentalmente o quando a nossa relação era incomum. O mais estranho não era o fato de sermos amigos, sendo um homem e uma mulher, mas, sim, de não nos portarmos, juntos, como um homem e uma mulher. Eu realmente a tratava da mesma forma como tratava os meus amigos, ignorando completamente o fato de, no fundo, ela ter os mesmos sonhos e a mesma sensibilidade que toda garota teria. E ela, em contrapartida, parecia se esforçar para esconder tudo isso. Lydia não tinha nada da fragilidade e delicadeza comuns a uma dama. Por isso é que eu, tampouco, me preocupava em tratá-la como tal. Naquele momento, por exemplo, era eu quem deveria ajudá-la a se levantar, e não o oposto.

— Preciso lhe dar uma péssima notícia — Ela alertou, enquanto caminhávamos de volta para a casa. — Terá que dançar comigo.

— E você sabe dançar?

— Não. Exatamente por isso disse que seria uma péssima notícia.

Voltamos a rir, juntos. E a tal dança, de fato, não foi das mais exemplares. Mas, ao menos, serviu para que nos divertíssemos.

* * * * * * * * * *

~ Lydia ~

            Na manhã seguinte, eu despertei com os primeiros raios de sol que invadiram o meu quarto. Sentia meu corpo inteiro dolorido. Bancar a dama era algo extremamente cansativo. Aquele maldito vestido comprimia a minha coluna, a dança me cansava as pernas, sem contar que passar a noite inteira tendo que forçar sorrisos para convidados desagradáveis era incrivelmente estressante.

Mas, graças a Deus, o pior já havia passado. E meu plano, aparentemente, tinha dado certo. O Lord não iria voltar a me importunar... E, em poucos meses, Daniel estaria “livre” novamente.

E eu não poderia negar que estava absurdamente feliz com a presença do Branquelo na minha casa. Sentia muitas saudades do tempo em que nos víamos quase todos os dias, e que passávamos horas conversando. Sem contar que a solidão naquela casa era enorme. Era bom ter alguém com quem conversar, embora ele fosse ficar por lá por apenas duas semanas. Então voltaria para Londres e passaria a retornar uma vez ao mês, para me visitar, até que toda aquela farsa terminasse.

Lembrar que em oito meses aquilo iria terminar me dava uma ponta de tristeza.

Levantei-me da cama, lavei o rosto, troquei de roupas e, empolgada, saí do quarto. Passei pelo corredor como uma flecha, indo diretamente até a porta do quarto onde meu fajuto noivo se hospedava. Preparei-me para abri-la, mas parei ao ouvir a voz de minha mãe:

— Você não foi educada para ter esse tipo de atitude.

Virei-me, encarando aquela mulher à minha frente. Mary Graham era uma mulher muitíssimo elegante, embora ninguém pudesse dizer que fosse verdadeiramente bonita. Mas, também, não era feia. Era um tipo sem atrativos ou qualquer espécie de brilho próprio. Sem contar que seus olhos castanhos eram frios e ela parecia ter, ao seu redor, um ar sombrio, acentuado pelos vestidos de cor preta que sempre usava para exibir um luto que, na realidade, nunca existiu pela perda do marido há mais de quinze anos.

— Eu apenas ia dar bom dia para o meu noivo — justifiquei-me, com uma voz carregada de ironia e despeito.

            Minha mãe ergueu uma das sobrancelhas, numa expressão que ela fazia com muita frequência enquanto falava comigo.

            — Quem é esse rapaz?

            — Ora, mamãe, ele se apresentou ontem, formalmente. Não prestou atenção?

            — Então ele surgiu assim, do nada?

            — Nós estudamos juntos.

            — Juntos? O colégio para moças agora aceita homens?

            — Ele era do internato masculino, ao lado do colégio para meninas no qual a senhora me trancafiou.

            — Eu só queria que você aprendesse a ser uma dama. Mas vejo que foi dinheiro jogado fora.

            Preferi não retrucar, embora soubesse que um dos principais motivos que minha mãe teve para me colocar no internato, além de querer se livrar de mim, era para me manter longe dos rapazes. Afinal, seria bem inconveniente que eu viesse a me comprometer com alguém e, assim, perder a oportunidade de se casar com Lord Gregory.

            — Devia ter entendido há tempo que você era um caso perdido — ela disse, antes de dar-me as costas e ir embora, resmungando. — Seu pai teria vergonha de você.

            Fiquei sem reação diante daquilo. Eu poderia já estar acostumada aos insultos que minha mãe jogava contra mim, mas ela sabia usar o que mais me doía: mencionar o meu pai como forma de me atingir.

Eu sempre soube dos motivos que minha mãe tinha para me odiar. Era tudo bem simples: ela não gostava do falecido marido e, por consequência, não gostava da filha que tivera com ele. Frases como “você é igualzinha ao seu pai” eram constantemente usadas contra mim em forma de insultos.

Com Sarah, minha irmã caçula, as coisas eram diferentes. E os motivos disso eu, infelizmente, também conhecia muito bem.

Tinha apenas seis anos de idade quando presenciei aquela cena. Meu pai estava de viagem e eu acabei flagrando minha mãe na cama, com Alfred Williams, um velho amigo da família. Era óbvio que, naquela ocasião, eu não sabia do que se tratava aquele estranho “ritual”, mas os conhecimentos da vida aprendidos na mocidade me fizeram compreender tudo (oras, eu cresci invadindo um colégio para garotos. Ouvi muitas conversas a respeito daquelas coisas! Sem contar que isso também era descrito em alguns livros que eu roubava na biblioteca). Inclusive, compreendi também o motivo da minha irmã caçula ser tão diferente de todo o restante da família (agora, a origem dos olhos azuis finalmente tinha sido descoberta). Se, antes, eu já não tinha qualquer afinidade com a minha mãe, passei a odiá-la ao descobrir a verdade. Meu pai era um homem bom, não merecia, de forma alguma, aquela traição. Mas a verdade é que ela nunca o amou... E, consequentemente, também não me amava. Toda a sua atenção e carinhos sempre foram destinados à caçula, que era filha do homem que amava.

— Não envolva o meu pai nisso — murmurei, por fim. Mais para mim mesma, pois minha mãe já havia descido as escadas.

Tentando deixar aquilo de lado, adentrei o quarto onde Daniel dormia e, sem a menor cerimônia, sentei-me na cama ao lado dele e o sacudi, sem gentileza alguma.

— Branquelo, é hora de acordar!

Ele resmungou qualquer coisa nada educada e eu achei graça. Algumas coisas nunca mudavam. Se havia uma coisa que Daniel Brand sempre detestou, essa coisa era ser acordado. Ao que parecia, ele ainda tinha o mesmo sono pesado.

— Vamos, acorde! — insisti, sacudindo-o mais uma vez.

Com certo esforço, ele abriu os olhos.

~ Daniel ~

Quando abri os olhos, automaticamente já me preparei para praguejar com o fato de estar sendo acordado, mas detive-me, curioso com a visão que tive. A Magrela de agora em nada lembrava a elegante dama da noite anterior. Voltara para suas roupas largadas e “descombinadas”, para os cabelos soltos e desleixados e para a boina. Foi impossível resistir fazer uma piada com aquilo.

— Quem é você e o que fez com a minha noiva?

— No momento não temos visitas. Posso ficar à vontade.

— Como assim? E eu, o que sou?

— Você não é visita, é meu futuro marido e um membro da família, não se esqueça.

— Mas nós nem casamos e você já está me tratando assim? Essa não é a melhor forma de me conquistar, querida!

— Anda, levante daí! Hoje preciso lhe mostrar a casa e a terra que você irá administrar quando nos casarmos. — Ela riu diante da última frase. — E precisamos estar de voltar antes do almoço. Meu tio virá para lhe conhecer.

Claro, o tio! Como pude esquecer dele?

Já tinha ouvido muito a respeito desse tal tio. Era a única pessoa da família com a qual Lydia tinha um bom relacionamento. Perguntei-me se seria necessário ter que mentir, também, para ele.

— Então, eu te espero lá embaixo, para o café da manhã — ela disse, levantando-se da cama onde eu permanecia, preguiçosamente, deitado.

— Sim, querida.

Ela riu e, então, apoiou os braços sobre a cama, debruçando-se e me olhando nos olhos.

— Pare de me chamar assim quando estivermos sozinhos. Senão corro o sério risco de me apaixonar por você.

Era uma brincadeira e eu entendi isso. Contudo, num primeiro momento eu não consegui rir. Era como se o tom irônico demorasse um pouco até me fazer sentido. Notei que a iluminação solar que adentrava pelas frestas da cortina fazia o verde dos olhos dela ficar mais intenso. Ela tinha lindos olhos e um belo sorriso. Não precisava de roupas elegantes. Mesmo daquele jeito, tão à vontade, tão natural e despreocupada, ela ainda era linda. Como não havia notado nisso antes?

Aliás, porque diabos notava isso agora?

Por fim, forcei-me a sorrir e responder:

— Fique tranquila, que isso não acontecerá.

— De forma alguma.

E ela se levantou, saindo do quarto. Sentando-me na cama, eu passei a mãos sobre meus cabelos bagunçados, tentando entender o que tinha acabado de acontecer ali. Que sensação louca tinha sido aquela?

Decidindo que seria melhor não pensar a respeito disso, eu me levantei e fui me trocar.

* * * * * * * * * *

A mãe e a irmã não tomaram café da manhã conosco. Elas saíam no momento em que eu descia as escadas. Foram muito amáveis ao pedirem desculpas por não poderem esperar-me para o desjejum, explicando que precisavam ir à cidade, comprar coisas importantes para o enxoval do casamento de Sarah. Ao que tudo indicava, a irmã mais nova de Lydia também estava de casamento marcado.

            Aliás, não pude deixar de notar o quanto aquela jovem era bonita. Deveria ser três ou quatro anos mais nova que Lydia. Tinha os cabelos negros e lisos, que contrastavam com seus olhos azuis. Apesar de a Magrela sempre me contar que ela não era muito confiável, ela me parecia bastante delicada e simpática. Ela fazia exatamente o tipo de mulher que eu gostava.

            Ah, se ela não fosse compromissada...

            — Já pode tirar essas ideias da sua cabeça! — ordenou uma voz autoritária, atrás de mim.

            Ao me virar, dei de cara com a Magrela, que me encarava com os braços cruzados e um olhar ameaçador.

            — Que ideia?

            — A de se deitar com a minha irmã.

            Fiz a maior cara de ofendido que poderia fazer. Como ela poderia pensar aquilo a meu respeito?

            Não que fosse mentira, mas...

            — De onde você tirou isso? — questionei.

            Ela deu um sorriso de lado, como quem está prestes a dizer o óbvio:

            — Eu apenas conheço você. E conheço a minha irmã.

            — Então você precisa concordar comigo que ela é linda!

            Ela moveu a cabeça negativamente. Como era capaz de não concordar comigo? O que ela era? Cega?

            — Desiste, Branquelo. Você não pode se deitar com a minha irmã.

— Oras, mas por que não?

— Além do fato de ela estar comprometida, você também está. Você é meu noivo, esqueceu?

— Mas o nosso acordo não incluía fidelidade!

— Mas incluía fazer as pessoas desta casa acreditarem que nós nos amamos. Então, benzinho, se quiser me trair, sinta-se à vontade, mas terá que ser fora da minha casa.

Ah, é claro! “Branquelo, você só precisa fingir que somos noivos. Nada na sua vida vai mudar, não te custa nada!” Sabia que a coisa não seria tão fácil assim. Já começavam as exigências!

Sarah e a mãe não estavam mais em casa, mas, ainda assim, continuamos a representar nosso papel de bons noivos. Enquanto tomávamos café, tivemos o cuidado de medir muito bem as palavras que usaríamos, pois era evidente que as criadas da casa não tiravam os olhos de nós. Em certo momento, Lydia sussurrou que elas provavelmente tinham ordens da patroa para isso.

            Após a refeição, Lydia cumpriu o prometido, dizendo que me levaria para conhecer a mansão. Contudo, para a minha surpresa, ela me guiou diretamente para a ala dos empregados.

            — Quero que conheça o meu lugar especial — ela disse, enquanto abria a porta de um pequeno e estreito quarto, que era usado como armário para objetos em desuso, além de esfregões e produtos de limpeza.

~ Lydia ~

            A cara dele ao entrar ali foi bem engraçada. Parecia se perguntar o que aquele local poderia ter de tão especial. Percebi que os olhos dele se detiveram em algo e segui o olhar na mesma direção, avistando o que era. Tratava-se de uma velha boneca de porcelana, que estava em cima de uma prateleira.

            — Era sua? Eu não acredito que você brincava com bonecas — ele zombou.

            Senti o meu rosto queimar, em um misto de vergonha e raiva.

            — Qual o assombro? — Apanhei a boneca. — Foi o meu pai que me deu, ela é especial para mim.

Fazendo bico, sentei-me no chão, chateada. Sabia que Daniel não tinha a intenção de me magoar. Provavelmente, apenas estranhava descobrir em mim alguns detalhes tão femininos que, até então, ele desconhecia totalmente. Na verdade, o que me chateava não era o assombro dele, mas as lembranças que aquele local me trazia. Apesar de serem, em grande parte, boas lembranças, exatamente por isso eram carregadas de saudade. E a saudade doía.

— E... — Daniel começou a falar — Por que esse lugar é especial para você?

Expliquei enquanto, delicadamente, ajeitava os cabelos da boneca:

— Eu costumava me esconder aqui, quando criança. Minha mãe sempre brigou muito comigo, por qualquer motivo banal. Ela nunca vinha para a ala dos criados e, portanto, não corria o risco de me encontrar aqui. Meu pai era o único que conhecia meu esconderijo e era o primeiro lugar onde me procurava, caso não me visse quando chegasse em casa. Sabe que, às vezes, passávamos horas aqui, conversando...

Calei-me, continuando a mexer nos cabelos da boneca. Daniel já sabia do que o meu pai havia morrido: suicídio. Eu tinha oito anos quando ele se atirou da sacada do terceiro andar e caiu no cimento frio... Bem diante dos meus olhos. Mas ele também sabia que aquele era um assunto do qual eu não costumava falar. Mas, naquele momento, senti uma súbita necessidade de desabafar. E Daniel me conhecia bem o suficiente para saber reconhecer esses momentos, tanto que fez uma pergunta que nunca fizera antes:

— Por que ele fez aquilo?

— Eu não sei. Ter uma esposa neurótica e desonrosa e criar como sua uma filha que sabia bem ser de outro homem seriam motivos mais do que suficientes... Mas não acredito que ele não tenha pensado em mim. Ele era tudo o que eu tinha na vida... E me abandonou, sozinha, nessa casa com aquelas duas.

Senti minha visão começar a turvar em consequência das lágrimas e odiei-me por isso. Aquela cena jamais sairia da minha mente. Ver o corpo do meu pai cair, inerte, no chão a minha frente, naquela noite de verão em que eu tinha fugido para o jardim na intenção de brincar com os vagalumes (Não sei por que diabos eu tinha tanta obsessão por aqueles insetos idiotas. Mas, desde então, passei a não gostar deles) me deixou, simplesmente, sem reação alguma. Somente após passar minutos num estado atônito, foi que tomei a atitude de gritar por ajuda. Mas já era tarde... Meu pai já estava morto.

Quando a primeira lágrima rolou pela minha face, eu tive a reação de tentar detê-la. Contudo, senti que uma mão que não era a minha foi mais rápida em secar o meu rosto. Levantei os olhos e encontrei Daniel abaixado no chão, à minha frente.

— Ei, magrela... Pare com isso — ele disse, com a voz baixa. E abriu um sorriso lindo, que me encheu de uma inusitada sensação de paz. — Isso de lágrimas não combina com você.

Surpreendi-me com a atitude dele, com o tom de voz... E com a minha própria reação àquilo. Por qualquer razão, os olhos dele pareciam prender os meus em um estranho feitiço e o toque dos dedos dele na pele de meu rosto ocasionou-me inesperados arrepios.

Desde quando a presença de Daniel me ocasionava tão estranhos sentimentos?

Meu sangue pareceu gelar quando o avistei, lentamente, aproximar o rosto dele do meu.

* * * * * * * * * * 

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo