Sempre em seu Coração
Sempre em seu Coração
Por: LF Freitas
Prólogo

* * * * * * * * * * 

“Amor é um marco eterno, dominante,

Que encara a tempestade com bravura;

É astro que norteia a vela errante,

Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora

Seu alfange não poupe a mocidade;

Amor não se transforma de hora em hora,

Antes se afirma para a eternidade. ”

- William Shakespeare -

 * * * * * * * * * * 

Inglaterra – Século XIX

~ Lydia ~

            Não é curioso como às vezes certos fatos, aparentemente irrelevantes, da infância nos vem à mente, assim, do nada? Naquele dia, antes de sair de casa, eu me lembrei de uma noite qualquer ocorrida durante o inverno de 1826. Parecia que eu ainda era capaz de ouvir a minha própria voz, infantil e estridente:

— Aí está você, Branquelo!

Na escuridão da sala vazia, ele parecia um amontoadinho de roupas do jeito que estava: todo encolhido no canto da sala. Mesmo tendo seu esconderijo descoberto, ele não esboçou nenhuma reação. Mal me olhou e voltou a abaixar a cabeça. Parecia triste.

Além de termos a mesma idade, dez anos, usávamos o mesmo uniforme do internato para garotos. E essa parte é interessante, já conto o porquê. Bem, a roupa era composta por calças justas e um grosso casaco de lã. A única diferença é que eu usava uma boina na cabeça.

            — Como me achou? — perguntou o pequeno Daniel Brand.

— Fui ao seu quarto e você não estava lá. Vasculhei este internato inteiro atrás de você!

Apesar de ser inverno, eu senti o suor – devido à correria – formar-se em minha testa. Então arranquei a boina, o que revelou os meus longos e revoltos cabelos aloirados.

E é aí que eu explico o porquê de meu modo de vestir ser interessante. Não era algo que se permitia que uma menina vestisse. Mas também não me permitiriam andar pelo internato se soubessem que eu era uma menina, então esse era o meu disfarce perfeito.

Desde criança que eu já tinha a estranha atração por tudo o que não era permitido. Não era à toa que minha mãe sempre fez questão de dizer que eu era a maior das inconvenientes.

Por falar na minha mãe, digamos que ela nunca tenha ido muito com a minha cara. Eu tinha oito anos quando ela praticamente me largou no Internato de Boas Maneiras para Moças, que funcionava em uma luxuosa construção anexa ao colégio para meninos. Sei que a intenção real disso era apenas se livrar de mim, mas ela alegava que era para que eu aprendesse a me portar como uma dama, para, quando crescer, me tornar uma boa esposa. Mas, ao invés disso, eu aprendi a vestir calças,  pular muros e, assim, passei a frequentar o colégio masculino, que era bem mais divertido. E, dessa forma, eu conseguia ficar perto do meu melhor amigo. Na verdade, do meu único amigo.

Ali, eu não precisava forçar boa postura ou modos e, ao invés de conversas chatas sobre chás, piano e roupas, tinha alguém com quem falar a respeito dos livros que eu tanto gostava de ler.

— O que está fazendo aqui? — perguntei, sentando-me no chão ao lado dele.

Levou alguns segundos até que Daniel respondesse, de forma constrangida:

— Hoje o meu pai veio buscar o Adam para passar o Natal com ele, no castelo.

Compreendi, então, qual era a situação. Daniel Brand e Adam Harrington eram meio-irmãos, ambos filhos de um Lord.

Unidos pelo sangue, mas separados pelos ditames sociais. Daniel era filho bastardo do Lord para quem sua mãe trabalhara na juventude, e por quem foi seduzida e enganada com falsas promessas. Ela morreu no parto e, desde então, o Lord deve ter sentido peso na consciência, porque passou a cuidar do sustento do menino, logo o colocando em um colégio interno. Às vezes, o visitava, mas era sempre bastante formal.

Adam, em contrapartida, era o filho legítimo, sempre cercado de mimos e atenção paterna. Quando a mãe faleceu, seu pai decidiu que talvez fosse bom que os irmãos se conhecessem e, assim, colocou o filho legítimo no mesmo colégio interno do bastardo. Também era uma forma de suprir a necessidade de presença familiar dos dois meninos e de fugir da responsabilidade de criá-los. Nos feriados, ele levava o Adam para a casa, onde este desfrutava do descanso e da companhia da família: tios, primos e avós. Já Daniel não tinha as mesmas regalias. Ainda que tivesse assumido seu sustento, a paternidade não poderia ser legalmente revelada. O menino era a vergonha da família Harrington.

O fato que nem mesmo o Lord contava é que seus dois filhos haviam se aproximado e se tornado melhores amigos. Porém, deixava claro que o relacionamento de amizade deveria se limitar à escola. Tudo pela moral e pelas boas aparências.

Não era à toa que eu sempre odiei essas tais de “boas aparências”. Parecia só servir para deixar as pessoas infelizes.

Sentei-me ao lado do Daniel, com cuidado para não deixar cair o livro que eu levava dentro do casaco.

— Você sabe que sempre foi assim, Branquelo. O Natal está chegando, e o Lord todos os anos leva o Adam para casa nessa época.

— E o Alex vai amanhã. Mais uma vez, acho que vou ser o único dos meninos que vai passar o Natal aqui.

Ah, Alex era o outro melhor amigo de Daniel e Adam. Os três formavam um grupo inseparável, mas só o Branquelo gostava de mim. O Alex era um chato, e dizia que meninas não sabiam fazer nada direito e não eram boas companhias para jogos ou conversas. Já o Adam concordava com a minha mãe na opinião de eu ser uma inconveniente. Ele sempre foi todo certinho e dizia que não queria estar perto quando algum professor descobrisse o que eu fazia, muito menos que achassem que ele tinha conhecimento disso.

Apenas o Daniel gostava de mim. Tratava-me da mesma forma como tratava os outros garotos. E eu adorava viver essa ilusão de que eu poderia fazer as mesmas coisas que eles. Ser tão livre quanto eles.

Mas, é claro, o tempo me ensinou que não era assim que as coisas funcionavam.

— Olha pelo lado bom, Branquelo. Eu também não vou a lugar algum.

Ele esboçou um sorriso. Mas era mais de alívio, por não ficar sozinho, do que propriamente de alegria. Nossa situação não era nada animadora. Ambos abandonados, praticamente sem família. Devia ser por isso que tínhamos ficado amigos e nos dávamos tão bem.

— Que livro trouxe hoje, magrela? — Ele apontou para a minha barriga, onde, por baixo do casaco, eu trazia sempre um livro roubado da biblioteca, para lermos juntos.

Peguei o exemplar de capa grossa e mostrei a ele.

Sir William Shakespeare.

O Branquelo fez careta.

— De novo?

Mais uma vez, precisei explicar minha preferência:

— Era o escritor favorito do meu pai. E por isso é o meu também.

Ele bufou, mas sabia que de nada adiantaria reclamar. Era a única leitura que tínhamos para aquela noite e ele teria que aceitar. Ajeitei-me sentada ao lado dele, colocando o livro entre nós. Como sempre fazíamos, cada um de nós lia uma página. E ficaríamos assim, entretidos na leitura, até o amanhecer, quando eu voltava para o meu internato, onde também era o meu lar.

A Megera Domada falava sobre acordos de casamento. E, como sempre acontecia, a leitura era constantemente interrompida pelas nossas conversas. O Branquelo, que era bem menos focado do que eu, era quem quase sempre puxava algum assunto com relação à história do livro.

— Quando crescer, vou querer uma noiva como a Bianca.

— Falta muito para isso! — retruquei. A ideia de crescer nunca me pareceu muito animadora.

— É claro que não falta. Logo serei um homem adulto, e poderei me casar!

— Coitada da sua esposa! — impliquei.

— Coitado é do seu marido, que vai ter que te aturar, sua magrela!

— E quem te disse que eu vou me casar?

— Vai ser solteira para sempre? — Ele franziu a testa.

— Vou!

— E como fará para viver?

— Bem, nisso eu ainda não pensei, mas... Deixa de ser chato, Branquelo! Sua vez de ler!

Continuamos com a leitura. E, como era previsto, passamos a noite inteira assim. Muito embora a gente não conseguisse entender boa parte do que líamos, era a nossa forma de passar o tempo, de se divertir um pouco... e de ficarmos juntos.

Apenas anos depois, quando ambos saímos da escola, foi que eu realmente compreendi a importância daqueles momentos. E, mesmo agora distantes, de certa forma eu tinha certeza de que o Daniel compreendia também.

Agora, como daquela vez, também era inverno. Mas muitos anos tinham se passado. Novamente, eu saía de um lugar, escondida e usando calças. Novamente, fui à procura do meu melhor amigo.

Do meu ainda único amigo.

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