Capítulo 2

                                         2

(“Nossa época foi difícil. A molecada de hoje já começa com carrão, eu tinha um Chevette 79”, compara Joel, 52 anos, ex-atacante do Atlético. Ainda moleque, o catarinense despontou como “carrasco” do Coritiba com os dois gols do título estadual rubro-negro em 1983.)

    Alguns dias depois, Sarah entrou no refeitório como de costume com Gloria ao seu lado e começou a passar mal.

      ─O que foi branquela?

      ─Minha barriga... tá fazendo uns barulhos estranhos... tô tonta...- Sarah levantou o olhar, e a última coisa que ela lembra, antes de soltar um jato de vômito e sentir algo escorrer pelas pernas dela, foi Kaue vindo em sua direção.

       Na enfermaria do posto de saúde, o diretor da escola falava com o médico.

      ─O que me vem agora, é uma dose cavalar de laxante.

      ─Mas a troco de que ela tomaria laxante?

Kaue estava por perto e ouvia a conversa com interesse.

      ─Com licença diretor.  Acredito que ela não tomou. Alguém deu pra ela.

      ─Como assim?

Kaue contou suas desconfianças a Lucio diretor da escola.

      ─Eu não sabia que faziam esse tipo de... maldade na escola. Você tem ideia de quem fez isso?

      ─Ainda não, mas vou descobrir.

      ─Faça isso e me procure. Foi muito sério o que fizeram com essa menina.

    Sarah abriu os olhos e se deparou com Kaue de um lado da maca e Gloria de outro. Estava confusa.

     ─Que lugar é este?

Ela estava muito pálida e a voz fraca.

     ─Posto de saúde. - disse Gloria com vivacidade. ─ Tão tentando encontrar sua mãe...

     ─Não! - ela sentou na cama e ficou tonta.  ─Eu não quero. Eu tô bem... Por favor, não deixe que avisem Anete!

Kaue assentiu e saiu rapidamente para falar com o diretor. Gloria se aproximou mais da maca.

     ─O que aconteceu, Gloria?

     ─Você não lembra? Vomitou e... se cagou, branquela. - no olhar de Gloria havia tristeza.

     ─Que vergonha... - ela se pôs a chorar.

     ─Não fique assim. Tá tudo bem.

     ─Como tá tudo bem?

     ─Escute Sarah, isso foi uma maldade. E se foi Dalva, como eu acredito que foi: a gente vai dar o troco.

     ─Por que ela faz esse tipo de coisa? Ela fez com você?

     ─Ela é muito má! Já fez coisa bem pior.

Sarah suspirou abatida e limpou as faces banhadas de lágrimas.

     ─Por... que esse garoto tá aqui?

     ─Foi ele quem te socorreu. Foi ele quem te pegou no colo. - Gloria foi obrigada a rir. ─Toda cagada e não fez nem cara feia.

Sarah riu e chorou ainda mais quando se lembrou de algo.

      ─Minha roupa? - ela usava uma camisola de hospital.

      ─Não se preocupe. Kaue foi à minha casa buscar umas peças. Temos o mesmo tamanho.

      ─Por que ele fez tudo isso por mim?

      ─E eu sei? Pergunte pra ele.

      Em frente à casa dela, Lucio desceu do carro para ajudá-la. Sarah estava fraca e trêmula.

      ─Gostaria de falar com sua mãe, Sarah.

      ─Não se preocupe. - ela disse afoita. ─Ela trabalha muito. Não quero que ela fique preocupada. Eu falo com ela.

      ─Tá certo. Qualquer coisa pode me chamar. – ele se voltou para Kaue que também descera do carro. ─ Quer uma carona, filho?

      ─Não, obrigado diretor. Vou a pé daqui. É perto.

      ─Que eu saiba não. - Lucio sorriu. ─No entanto, você quem sabe. Falamos na escola.

Ele partiu deixando os dois sozinhos. Sarah segurava a sacola com as roupas sujas. Usava um abrigo de Gloria que estava apertado. Não sabia o que fazer ou dizer.

      ─Quer que eu entre com você?

      ─Não. - ela respondeu num tom rápido e se arrependeu.  ─Não é preciso.

      ─Você tá se sentindo melhor depois de todo aquele soro?

      Eles riram. Ele, vivamente. Ela, timidamente.

      ─Gloria disse que... você quem me carregou até o carro do diretor... Desculpe pela sujeira.

      ─Não se preocupe. Tá tudo bem. Vou indo, então.

Sarah sentiu uma profunda tristeza, mas sorriu mais uma vez sem olhá-lo nos olhos.

      ─Tchau, Kaue.

      ─Tchau, Sarah.

      Kaue levou uma hora pra chegar à escola e pegar sua bicicleta que ficou lá com a correria. Contudo, se sentia bem e com uma estranha alegria. Naquela noite, Sarah teve o seu primeiro de muitos sonhos com um príncipe encantado que vinha em sua bicicleta brilhante salvá-la de sapos gigantes e garotas malvadas que queriam exterminá-la da terra.

    Sarah ficou três dias sem aparecer na escola. Quando Anete descobriu, a casa veio a baixo.

      ─Claro que você vai! E não me desobedeça!

      ─Nunca mais coloco os pés naquela maldita escola! - Sarah bem que tentou fugir. Anete, porém, foi mais rápida e pegou-a pelo braço.

      ─Quem pensa que é para me afrontar, sua fedelha? Vai sim e ponto final, Sarah Luiza!

      ─Quero que você se dane, Anete!

      ─Eu que me danei quando tive você, sua mal-agradecida! Não sabe um terço do que passei para te criar!      

      ─Se foi ruim, é porque mereceu!

      ─Cale a boca ou eu juro que vou perder a cabeça e enchê-la de tapa menina!

    Era sempre a mesma ladainha. Sarah sabia aquele texto de cor e salteado. A cada discussão acumulava mais de raiva.

     ─Eu não pedi pra nascer. Vou à escola. Não por respeito a você, mas por não ter outra escolha. Eu vou crescer, e pode apostar, que escolherei partir.

Ela saiu correndo porta a fora ouvindo os gritos de Anete.     

    ─Você me paga Sarah! À noite acertaremos as contas, sua ingrata! ─ e ela se ajoelhou e se pôs a chorar. Como sempre acontecia quando elas discutiam. Estava tão cansada...

     Na entrada da escola, Sarah se deparou com uma menina numa cadeira de rodas com dificuldades de subir a calçada para chegar ao portão. Rapidamente, foi até ela e a ajudou passando o maior trabalho para conseguir. Assim que passaram pelo portão, elas riram satisfeitas.

    ─Todo dia é a mesma coisa. Que bom que hoje encontrei alguém pra me ajudar. Tor sempre faz isso quando tá por aqui. Sou Mariani, tô no sexto ano.

    ─Eu me chamo Sarah. Tô no quinto.

Sarah a analisou, cuidadosamente, tinha cabelos castanhos cacheados compridos, e olhos grandes e iluminados. O sorriso era encantador! Mariani era muito bonita, concluiu.

    ─Eu sei. Você é a menina que passou mal há três dias atrás.

    ─Nem me lembre. - ela suspirou com vontade de fugir. ─Tão falando muito do meu... vexame?

      ─Na verdade tão falando mais é da autora da maldade. Ela sempre ganha as glórias e fica mais poderosa. Se ela cair nas mãos de Lucio...

       ─Alguém contou pra ele?

       ─Não. Ninguém tem certeza, entende?

Sarah assentiu e elas entraram na escola. Outra dificuldade, subir as escadas da frente. Mais tarde quando tocou a sineta para o recreio, Sarah foi a secretaria e tentou falar com o vice-diretor, mas ele não estava. Lucio a atendeu.

      ─Como está menina?

      ─Melhor. - ela sorriu, timidamente. ─Eu queria perguntar se tem algo que a gente possa fazer pra ajudar Mariani do sexto ano. Ela encontra muita dificuldade pra andar pela escola com essas escadas no caminho.

      ─Sim. - ele suspirou preocupado. ─Pedi verba ao município, mas estamos com dificuldade para receber. O caso dela me preocupa bastante.

     ─Não tem outro jeito? Talvez uma festa na escola pra arrecadar dinheiro. Não sei se é possível...

     ─Boa ideia, Sarah! Uma grande festa! Eu também não sei o que fazer ao certo no caso dela, mas com a ajuda de um bom profissional, vamos encontrar uma solução. Foi bom você ter me dado um cutucão sobre Mariani. Já estava na hora! Obrigada, Sarah!

A menina sorriu, timidamente, feliz por poder ajudar sua mais nova amiga.

      O grupo de Sarah aumentou de duas, para três amigas. Mariani, agora, ficava sempre com elas. O que atiçou a raiva de Dalva que na primeira oportunidade soltou seu veneno.

      ─O grupo das enjeitadas! Que lindo trio vocês formam! - bateu palmas com as escudeiras do lado. ─A mais feia da escola, a negra, e a aleijada.

Sarah se levantou furiosa para revidar com uma agressão física. Com rapidez, Mariani a segurou pelo braço.

     ─Não perca tempo, Sarah. Aleijado é o cérebro dessa garota.

     ─Também! Além da alma e tudo que vem dela.

     ─Me poupem com o que vocês acham! Não esqueçam queridinhas, sou linda e rica!

     ─Seu reinado não vai durar muito. - disse Sarah num tom firme, por dentro sentia muito medo daquela garota.

     ─Tente me tirar a coroa, branca azeda, e eu mando cortar sua cabeça!

     ─Tá assistindo muito filme americano. Nas escolas de um país tupiniquim como o nosso, não existem reis e rainhas nem baile de formatura. - continuou Sarah.

     ─Do que você tá falando, sua idiota?

    ─Se não tivesse um cérebro aleijado, e se atualizasse mais, saberia do que tô falando.

    ─Ora, vai pro inferno, sua nojenta fedida! Não se meta comigo ou vai se arrepender! - e ela saiu com seu andar de rainha acompanhada de seu séquito de fãs.

Gloria olhava Sarah como se visse um ET por sua coragem em enfrentar aquela louca. Já Mariani, soube expressar muito bem os seus sentimentos.

    ─Não existem rainhas nas escolas tupiniquins, mas na nossa existe uma pequena princesa chamada Sarah!

     A escola inteira foi notificada, dois dias depois, sobre a festa beneficente, ideia de Sarah, que Lucio fez questão de dar os devidos créditos. Com essa notícia, mesmo sendo contra, Sarah começou a ganhar notoriedade na escola. Aos poucos fazia mais amigos. Tor, sempre que podia, estava com elas. Assim como Junior, um garotinho de sete anos, que Sarah observava todos os dias esperar a merenda escolar com ansiedade.

     ─Acho que é a única refeição que ele faz no dia. - se lamentou Gloria. ─Não é fácil ser pobre.

Então Sarah passara a fazer dois sanduíches, e quando chegava ao refeitório, passava por ele e colocava um em sua mochila. Junior descobriu o primeiro em casa, depois disso passou a cuidar quem dava o sanduíche para ele, e quando viu quem era, deu um sorriso faltando dois dentinhos e agradeceu não se afastando mais de sua benfeitora. Sarah agradeceu, intimamente, na sua casa não faltava comida.

   E o que não podia, acontecia, estava se apegando a escola e aquelas pessoas, mais e mais, até chegar ao ponto de sentir medo de ter que partir.

    Helen fitou cada um dos filhos com atenção. Viu muita tristeza e as lágrimas de todos eles, se segurando para se manter forte. Era uma mulher bonita em seus trinta e cinco anos, mas bastante judiada pelas dificuldades da vida.

     ─Eu falei pra vocês sobre a minha doença, porque preciso da ajuda de todos. Quero que estudem mais, se esforcem mais, pois vocês vão precisar.

    ─Eu vou trabalhar meio período mãe. - disse Dani limpando as lágrimas. ─Argos vai me arranjar um trabalho no escritório de um amigo.

    ─Eu tô esperando a resposta do olheiro mãe. Se eu conseguir a vaga, vou ganhar algum. Não é muito, mas vou poder ajudar mais.

Helen deixou as lágrimas saltarem. Por que as coisas estavam tão difíceis? Tudo que desejava era ter saúde para trabalhar e terminar de criar os seus filhos. E, agora...

     ─Tenho orgulho de vocês. Eu amo vocês!

      Sarah saiu para o pátio da escola e ao fixar o olhar no campo, viu um garoto sentado na arquibancada de cabeça baixa, o rosto enterrado entre as mãos. Uma imagem e tanto. O astro da bola solitário no campo em comunhão, ou em guerra. Sentiu uma emoção estranha. Não sabia definir o que era. Aproximou-se devagar. Sentindo a presença dela, Kaue levantou o rosto. Estava com as faces molhadas. Limpou-o rapidamente.

     ─Posso ajudar?

 Ele a olhou com atenção. Como alguém podia ter um rosto tão bonito?

     ─Pode. Quer dar uma volta?

   Ela assentiu. Era o mínimo que poderia fazer depois de tudo que ele fez por ela. A tristeza no profundo do olhar dele, a tocou sobremaneira, sem ela entender a razão.

     O passeio na bicicleta dele foi mágico! Ela sentou de lado no ferro da frente. Podia sentir a sua respiração alterada pelo esforço de pedalar. Era como música. Fechou os olhos e teve a sensação de que voavam pelo espaço. Teve a sensação de viver a cena do filme E.T. Sorriu. Então felicidade era assim.

     Uma alegria sem fim! Ter um momento com ele só para mim! Mas o que tô pensando?

     O percurso durou uma meia hora. Quando ele parou ao lado de um muro alto, coberto com plantas trepadeiras, ela se entristeceu. Kaue afastou as plantas com as mãos, revelando uma pequena porta no muro, por onde passaram para um extenso jardim coberto de mato. No fundo, muitas árvores altas causavam certo incomodo com suas sombras imensas e assustadoras.

    A piscina de tamanho considerável estava vazia e muito suja. Parecia um lugar mal-assombrado dos filmes de terror. Ela se arrepiou, ele percebeu e sorriu.

   ─Quer entrar na casa?

   ─Não.

   ─É uma casa normal. Meu pai me trazia aqui. Ele amava esse lugar. Dizia que quando ficasse rico a compraria pra nós. Mas ele morreu e então virou meu esconderijo secreto.

Sarah ficou em silêncio. Não sabia o que dizer. Não tinha pai. Não sabia como era ter um pai.

  ─Esta casa foi de um jogador que estava começando carreira. Ele morreu num acidente de carro e os pais a venderam e foram embora. O dia que eu me tornar um grande jogador de futebol, vou comprar e reformar toda ela. Vou trazer minha família pra morar aqui.

  Ela o fitou de maneira estranha.

    ─Você tem dúvidas de que vou ser um grande jogador?

   ─Não. - ela deu um meio sorriso fitando o nada. ─Acredito que vai se dar bem na vida, mas não acredito que virá morar

aqui. Um jogador não para em um lugar certo.

Ele respirou aliviado e sorriu. Ela acreditava no sonho dele.

     ─Esta casa e muitas outras serão minhas. Vou ter um carro importado e muita mulher no meu pé. – riu divertido.

Era bom ouvi-lo sonhar.

     ─Você já tem muitas garotas no seu pé, agora só falta... o resto.

   Ele ria, mas ficou sério.

     ─A princesa Sarah! Assim que tão chamando você na escola por suas... boas ações.

     ─O mundo não seria melhor se as pessoas fossem melhores?

     ─Sim. - ele fitou o vazio. ─Dalva não a perseguiu mais?

Sarah recordou de uma conversa que ouviu entre eles. Estava indo no banheiro, mas, parou ao ouvir as vozes alteradas lá dentro.

      O que você colocou no lanche dela, Dalva?

      Eu já disse que nada, Kaue!

      Você colocou, sim, e eu quero saber o que era!

      Por que está defendendo aquela idiota horrorosa e pobre?

      Não fale assim dela! Se eu souber que você tá aprontando pra ela, você vai se arrepender Dalva! Se eu descobrir mais uma maldade sua com Sarah, vou contar tudo pro diretor! Abre o olho!

Sarah ficou chocada! Não sabia se ria ou se chorava de alegria. Ela não tinha noção de como era ser defendida por alguém, até ele aparecer em sua vida. E como era bom o som daquela voz que transmitia tanta força e coragem.

      ─Sarah?

      Ela voltou o olhar assustada.

      ─Não. Eu tô mais esperta. - ela silenciou para em seguida falar. ─Ela quer você e dizem na escola que vocês têm um... caso?

    Ele riu divertido.

      ─Se dar uns amasso de vez em quando for chamado de caso... é, temos um caso sim.

    Sarah levantou da pedra onde estivera sentada com uma sensação ruim. Queria ouvir outra coisa. Não sabia o que, exatamente. Odiou a resposta dele.

    ─Preciso ir. - e ela saiu andando com ele ao lado dela.

    ─Por que a pressa? O que eu disse de errado?

    ─Você sabe!

    ─O quê?

    ─Deixa de ser burro!

    ─Ei! Sem ofensas! Afinal, o que eu disse de tão ruim?

    ─Se você sabe que Dalva é má, por que ainda tem um... Caso com ela?

    Ele riu aliviado. A essas alturas já estavam na calçada. Ela caminhando como se fosse para guerra. Ele empurrando a bicicleta.

    ─Você tá com ciúmes!

    ─Por favor! Não tenho idade pra isso, e pra sentir ciúme tem que amar, e eu não amo você!

Kaue parou sério, ela continuou a caminhada rápida sem olhar para trás. Um pouco mais adiante ele a alcançou.

     ─Sobe aí. Eu te trouxe, eu te levo.

     ─Posso caminhar! Vai embora, por favor, e me deixa em paz!

     ─Seu pedido é uma ordem, princesa!

     Na festa beneficente da escola, Sarah levou uma linda torta que Anete comprou.  O combinado era cada um levar um doce ou salgado e refrigerantes que seriam vendidos para levantar fundos para a construção das rampas para cadeirantes. Finalmente, uma solução tão simples e de vital importância. Mariani estava muito feliz ao lado de toda a sua família presente. Sarah rodeada pelos amigos.

     Kaue, também, sempre rindo, brincando e paquerando aquele bando de doidas atrás dele. Mantinha-se a distância dela, mas quando ela o olhava, ele estava com a atenção voltada para ela. Ela sorria de alegria, intimamente, sem entender o motivo. Dalva e seu séquito boicotaram a festa. O que Dalva não sabia, era que fizera um grande favor não comparecendo.

    A festa foi um sucesso e em alguns dias foram construídas rampas para o livre acesso de Mariani e outros futuros cadeirantes.

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