Quase um conto de fadas
Quase um conto de fadas
Por: Dani Moreno
A Descoberta

Seis meses antes

Mamãe sempre foi uma mulher forte.

Nunca a vi doente, até mesmo gripe era difícil de ter. Porém, percebi que há dias não se alimentava direito. Toda vez que a questionava, colocava desculpa na ansiedade pelo resultado do vestibular que eu havia prestado. Caso passasse, teria de mudar-me para São Paulo.

Meu sonho era estudar direito, para depois seguir firme na carreia até me tornar juíza. Tudo muito bem planejado, com direito à moradia na própria universidade e ajuda de custo. Porém, minha mãe parecia mais nervosa que eu, como se fosse ela a estudante.

Mas aquela desculpa, não me convencia. Algo dentro de mim, sabia que ela estava escondendo alguma coisa. Infelizmente, logo comecei a entender do que se tratava. Foi um dia antes de sair o resultado do vestibular.

Estava ansiosa com as horas que pareciam nunca passar. Fui à cozinha beber água e ao passar pelo corredor, ouvi meus pais conversando algo sobre uma doença e parei para escutar.

A voz do papai parecia preocupada, aumentando a minha tensão. Encostei-me na porta, sem ser notada. Quis ouvir e entender melhor o que falavam.

— Susan, querida, precisamos te levar amanhã ao médico. Chega de esperar. Lilly deve saber antes de partir para a universidade.

O coração acelerou quando ouvi aquilo.

— Como podemos, Augusto? Amanhã é o grande dia da nossa filha. De que forma eu poderia fazer isso com ela? Nem tenho esse direito. Não há de ser nada, querido, vou ficar bem.

— Mas, Susan, há dias você acorda à noite queimando de febre e com o pijama encharcado de suor. Está sem comer ou dormir direito. Estragar os sonhos dela deixou de ser uma hipótese. É sua saúde, meu bem.

— Prefiro esperar.

— Lilly nunca nos perdoaria se tratássemos isso como se fosse um simples resfriado, porque sabemos que é mentira. Não podemos mais aguardar. Nem sei porque deixei a situação chegar a esse ponto. Está decidido, daqui a pouco o sol nasce e iremos ao hospital.

Escutei-a chorar e, pelo tom de voz, meu pai parecia tão preocupado quanto eu fiquei. Tive então que intervir na conversa. Abri a porta e encarei-os.

— Mãe, pai, tudo bem por aqui?

— Sim, querida. Apenas acordei indisposta. Deve ser ansiedade, meu amor. Saber que a filha está crescendo e prestes a realizar o seu sonho mexe com qualquer mãe, não é? — Ela tentou um sorriso e eu correspondi triste, precisando ser honesta.

— Pode parecer que não, mas quando estou em casa escuto o que conversam, sabia? — falei simplesmente, sabendo que isso a afetaria.

— Filha…

— Vamos fazer assim: amanhã, vocês vão conversar com a doutora e eu pegarei o resultado do vestibular. Quando chegar7

mos em casa, vocês me contam o que ela disse e eu se passei. Sem mais — acenei assim que ela deu sinal que argumentaria. — Sua saúde em primeiro lugar, mãe. E também, é só uma prova, posso passar ou não. Nem pense em fazer essa cara, dona Susan.

— Entendo, querida. Mas combinamos que veríamos juntas o resultado. Eu queria estar lá por você.

— Sei que sim, mas precisamos saber o que está acontecendo com a senhora. Como papai disse, assim que o sol despontar, vocês vão ao hospital — tentei me manter firme quando vi os olhos marejados dela. — E se for mesmo só ansiedade por mim, o médico precisa te receitar algo antes que se torne sério. Concorda?

Ela assentiu e meu pai nos olhou também, balançando a cabeça afirmativamente.

— Boa noite e se cuida, mãe.

Voltei ao meu quarto, ciente de que a partir daquele momento, eu definitivamente passaria o resto da noite rolando na cama. Porém, dessa vez, não porque estava pensando no resultado do dia seguinte, e sim preocupada com a minha mãe. Nunca vi dona Susan dessa forma antes, com olhar angustiado, triste e tão abatida.

Aquilo me deu medo.

***

Assim que amanheceu, vi os dois seguindo para o hospital, como haviam prometido. Aguardei então o horário que sairia o resultado e segui para o colégio, caminhando pela cidade. O dia estava bonito. Lindo mesmo. Dentro de mim, havia uma esperançosa sensação de que tudo ficaria bem.

Assim que cheguei, fui orientada onde poderia encontrar as listas de aprovados. No caminho, fui encontrando outras pessoas e, pela cara, conseguia descobrir quem tinha passado e quem nem teve chance.

Comecei a verificar a lista e gritei de surpresa e alegria porque ali, em meio a tantos nomes, o meu também estava. Fiquei feliz ainda mais por ter ficado em quarto lugar na universidade escolhida a dedo por mim. Uau!

Meu coração parecia sair pela boca. Realmente estudei muito, batalhei de verdade, mas a gente nunca confia 100% em si.

Meu Deus, eu passei! Vou me mudar para São Paulo.

Corri para casa com a felicidade estampada no rosto, mal podendo caber em mim. Mas ao entrar, tive uma surpresa que me abalou. Deparei-me com meu pai sentado no sofá, na mão um copo de bebida. Parecia sério, pensativo.

— Pai?

— Lilly, querida, não te vi chegar. Como foi lá?

Pensei no que dizer, mas o coração já sabia que havia algo muito errado com a minha mãe. O semblante o denunciava e essa hipótese me apavorou.

— Está tudo bem, pai?

— Não meu amor, não está. Mas se Deus quiser, vai ficar.

— Onde está a mamãe? O que a médica disse? — De mansinho sentei-me na ponta do sofá e retirei o copo da mão dele, colocando na mesinha.

Ele me olhou e a boca franziu, como quem tenta não chorar. Sua voz falhava e percebi que estava fazendo muito esforço para escolher as palavras certas para, seja lá o que ele tivesse para me contar, não parecesse tão ruim.

— Não sou mais criança, pai. Pode dividir esse peso comigo.

— Eu sei, minha filha. Parece que a situação da sua mãe é mais complicada do que imaginávamos. A médica disse que, apesar de tantos exames, não conseguem chegar a um diagnóstico definitivo.

— Como assim? E quando fizeram esses exames?

— Deveríamos ter lhe falado antes, mas ela vem os fazendo há algum tempo. Porém, mesmo assim sem resultados conclusivos. Pediram então que ela passasse por outro especialista.

— Então é uma doença grave? Eles têm um nome ou nem isso? — Apertei tão firme uma mão na outra que as vi esbranquiçando.

— Querida, aqui em Motuca não temos recursos necessários para investigá-la. Parece que, por enquanto, podem apenas tratar os sintomas. Qualquer mudança brusca no quadro de sua mãe devemos levá-la correndo para o hospital.

— E ninguém pode nada? O prefeito… Sei lá.

— Minha filha, quem somos nós para falar com ele?

— Uai, nós votamos no homem — afirmei e ele sorriu, provavelmente da minha ingenuidade.

— Bem, a doutora disse que estão tentando trazer um médico de São Paulo. — Acompanhei a forma repetitiva que ele passava a mão no cabelo grisalho.

Meu Deus! Minha mãe está tão mal assim? Onde eu estava que não percebi isso?

Senti como se meu mundo estivesse desmoronando. Um aperto crescente no peito e o medo de que ela pudesse faltar em vez de comemorar comigo minhas vitórias tomaram conta de mim. Lágrimas começaram a se formar em meus olhos.

Levantei-me, pronta para saber toda a verdade, sem deixar transparecer o medo.

— Há quanto tempo essas coisas estão acontecendo, pai?

— Tem mais de um mês, minha filha. — Vi seus olhos encontrarem com os meus. Finalmente a verdade vinha à tona. — Posso estar começando a pensar besteiras, Lilly, mas acho que estamos perdendo sua mãe e nem imagino como posso ajudar mais. Não posso pagar médicos de outra cidade, pois tenho apenas o convênio da empresa. Como a levarei para São Paulo? Sinceramente, estou perdido no que fazer. — O final da frase era apenas um lamento.

Ele fez então uma pausa. Respirou fundo, tentando manter o controle. Estava evidente que evitava chorar.

— E se conversarmos com a médica?

— Foi isso que a fez encontrar o médico na capital. Até apresentou o caso da sua mãe a ele. Pelo que entendi, o doutor está terminando os compromissos com os hospitais da capital e pretende vir dar uma olhada nela o mais rápido possível. Enquanto isso, precisamos esperar.

— Como assim? E temos esse luxo?

— Calma, minha filha. O tal médico também tem outras pessoas para cuidar lá.

— Então como fazemos? Enquanto isso, ele vai acompanhar o caso dela à distância?

— Exatamente, querida. Ficará dando instruções à médica daqui. Inclusive, já acertaram tudo. Não sei se entendi direito, mas parece que ele quer estudar a sua mãe.

Minha indignação era tão grande que precisei respirar fundo e controlar-me. Minha mãe com uma doença grave, o médico com esse papo que só poderia acompanhar de longe e agora essa história de que queria estudá-la? Como assim? Por acaso ela era uma cobaia? Um absurdo!

Deixei meu pai na sala e fui ver como ela estava. Antes de surgir na porta do quarto, engoli o nó na garganta e enxuguei o rosto. Tentei ensaiar um sorriso, mas parei assim que me deparei com ela, também tentando esconder as lágrimas.

— Oi, mãe, tudo bem? — Sentei ao lado dela na cama.

— Sim, filha, estou bem. E o vestibular?

Algo foi sendo construído dentro de mim enquanto andava pelo corredor. Uma ideia que me magoava imensamente, mas, naquele momento, era necessária. Enquanto a olhava, vi o meu sonho distanciando-se, sumindo diante dos olhos. Ainda era jovem e poderia conseguir outra vez, ou quem sabe a vida nunca me reservaria outra oportunidade. Mas como poderia mudar de ideia?

Sabia que ela perguntaria sobre o resultado da prova assim que me visse e já estava preparada para respondê-la. Então, usando de uma habilidade que nem sequer sabia que tinha até aquele momento, menti.

— Infelizmente não passei, mãe. — As palavras ardiam na boca, saindo de uma vez só. O rosto dela ficou ainda mais triste.

— Ah, querida, sinto muito. Continue tentando. Tenho fé que muito em breve conseguirá. Agora os vestibulares são por semestre, logo terá uma nova prova.

— Exatamente, mãe. Terei tempo para realizar meus sonhos — comentei antes de abraçá-la.

***

Foi assim que começou a nossa luta. Há seis meses que vivemos dessa maneira, sem ter um diagnóstico preciso ou um médico presente o tempo todo. Minha mãe é consultada por ele uma vez ao mês, e meu pai não abre mão de estar presente, conversando com o doutor nessas ocasiões. Fico tocada com esse carinho.

Como não quero atrapalhar, nunca os acompanho. Basicamente ela toma os remédios indicados e ficamos à espera. A doença tem picos, estabiliza-se por um tempo até que algo novo surge e a correria recomeça.

Durante esse tempo, em momento algum voltou a passar por minha cabeça a possibilidade de um novo vestibular e a intenção de mudar-me para a capital. Os sonhos estão guardados na minha caixinha de música, aquela sobre a cômoda do meu quarto e não ouso abri-la.

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