Capítulo Seis

O cansaço começava a se tornar impossível de ignorar. O cochilo que eu tirara a bordo do barco não havia sido suficiente. Essa vinha sendo uma noite longa. Sentia o peso do sono nos meus olhos.

A Assistente 44 cruzou as pernas e aguardou com uma expressão séria no rosto. Kaira mal esperou que a mulher terminasse de falar e já se levantou, indo em direção ao banheiro. Alve continuou onde estava, com uma caneca em cada mão, um bigode de chantili sob o nariz, alternando o olhar entre mim e a assistente. Meio minuto se passou sem que ninguém se movesse, até que o rapaz entendesse a mensagem de que Reina gostaria de falar comigo a sós.

Ele apontou com a caneca na direção da cozinha e foi andando para lá.

Tomei uma cadeira e me sentei de frente à assistente. Ela deu um gole em sua bebida e me estudou por um minuto. A exaustão ficava cada vez mais aparente em seu semblante. Parecia fazer muito tempo desde que eu a havia visto sumir diante do prédio da sede, lá embaixo, enquanto eu olhava através da janela do veículo aéreo; poderia dizer que a mulher envelhecera uns cinco anos desde então.

Reina era bem magra, como todos no Núcleo, e suas curvas não se acentuavam tanto sob a roupa. Notei que ela quase não tinha bochechas. Suas olheiras pareciam um pouco menos profundas sob a luz incidente, mas ainda eram notáveis. Ela lambeu os lábios finos, úmidos do último gole. Seus olhos estavam cravados em mim.

Mediante o silêncio, o ruído do aquecedor se destacava, constante.

— É bom vê-lo de novo — disse ela, com a breve insinuação de um sorriso aparecendo na boca.

Desviei o olhar por um instante, e então forcei-me a manter o foco.

— Quem é você de verdade?

Ela tomou mais um gole.

— Exatamente quem eu disse que sou. Chamo-me Reina; não que alguém ainda se lembre disso. Fui chamada de 44 após me integrar como assistente à Corte do Núcleo, agora é quase como se esse fosse meu nome, não é?

— Então você admite que recebe ordens da Corte?

— Recebo, embora não haja nada que admitir. — Ela levantou as sobrancelhas. — Sou membro da Corte há mais de vinte anos. Atualmente recepciono os novos provincianos selecionados e os conduzo pela triagem. Você sabe disso, não tenho razão para mentir.

Meneei a cabeça. Sim, havia sido ela quem me obrigara a passar por todos aqueles exames invasivos. Engoli em seco, lembrando-me de como aquilo tinha sido desagradável.

— Nesse caso, por que está nos ajudando?

Eu não conseguia disfarçar minha desconfiança. De repente, criava-se entre nós um clima de oposição indesejável. A assistente parecia perspicaz o suficiente para notar que eu não me satisfaria com qualquer resposta superficial.

Baixou os olhos para o copo, eram verdes e expressivos.

— Eu podia dizer que é porque estou tentando fazer a coisa certa. Podia dizer que me compadeci de vocês. Mas, como eu já mencionei, Margon, você foi feito para desconfiar. É seu primeiro instinto, a reação que provavelmente o manteve seguro por muito tempo antes de ser trazido para o Núcleo. Então vou apenas ser direta. — Ela levantou o olhar outra vez. — Sou uma agitadora.

Encolhi os ombros. Eu não fazia a menor ideia do que aquilo significava. Ela percebeu minha incompreensão e continuou:

— Quando nos conhecemos, uma das primeiras perguntas que você me fez foi qual seria sua função aqui no Núcleo. Meu trabalho envolvia lhe explicar brevemente o que era esperado de você. Lembra-se disso?

Assenti.

— Explicou que seríamos todos mandados para trabalho forçado.

— Eu nunca disse isso.

— Então está negando que, na prática, é isso o que acontece?

Ela abriu um sorriso, achando graça de alguma coisa.

— Essa é uma outra questão que quero abordar. Por ora, deixe-me elucidar o fato de que sou uma agitadora — falou, parando apenas para tomar mais um gole. — Talvez você não se lembre, mas minha resposta foi, na verdade, bem perfunctória. Disse que este é o século da dubiedade, e que as coisas andavam bem confusas aqui no Núcleo. Que era só disso que falavam na televisão. Nós, assistentes, somos todos treinados para dar o mesmo tipo de resposta para perguntas como a sua; por vezes, algumas até incompreensíveis aos provincianos.

— São treinados para mentir para nós?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não, nunca mentir. Não há por que mentir para jovens selecionados, que acabaram de chegar ao Núcleo, cheios de esperança e sonhos. Não. Tudo o que eu disse é verdadeiro. Só não é toda a verdade — revelou. — Nos últimos anos, grupos de oposição têm se formado em todo o Núcleo; cidadãos estão insatisfeitos com a maneira como a Colmeia vem sendo administrada pela Corte. Seus motivos são variados, e eu levaria horas explicando toda a situação política. O que você precisa saber é que a Suprema Magister, governante da Colmeia, está ciente sobre esses grupos e faz o que pode para deter seus ideais de revolução. — Ela parou brevemente para tomar fôlego e continuou: — Vivemos numa vertente da democracia, portanto não há nada que a Magister possa fazer diretamente contra isso. Somos todos livres para expressar nossas opiniões. Alguns de nós, habitantes do Núcleo, realmente acham que o sistema não é funcional.

Semicerrei os olhos, tentando entender.

— Se são todos livres para opinar, por que são chamados de “agitadores”? — perguntei. Havia um peso muito negativo naquela palavra, denotava bem mais do que pura insatisfação.

— Bem, alguns de nós se exaltam e fazem coisas que confrontam as leis vigentes. Manifestações que acabam mal, boicotes a projetos da Corte… e, pelo visto, isto que estou fazendo agora, fornecendo asilo a fugitivos procurados. Isso abriu uma brecha para que a Corte, por meio das redes de relacionamento e seus pronunciamentos públicos, pudesse nos qualificar e classificar como uma única força de oposição. Esse termo contribuiu para que a grande maioria dos habitantes do Núcleo se voltasse contra aqueles que questionam a soberania da Magister. — Ela deu um último gole de sua bebida e arriou o copo vazio sobre a mesa, bem ao lado das várias canecas cheias de café e chocolate quente que Alve havia abandonado ali. — Por conta disso, muitos preferem não expressar suas opiniões em público, apesar de sermos livres para isso. O estigma se tornou muito grande, em benefício da Corte.

Inclinei a cabeça, pensativo. Eu não entendia muito de sistemas políticos.

— Se vivem numa democracia, por que não simplesmente removem a Magister do poder?

Reina respirou fundo.

— Primeiramente porque esta é apenas uma vertente da democracia que costumava existir há muitos séculos. Destituir a Suprema Magister não dissolveria o sistema que rege tudo. E segundo porque, apesar de chamarmos atenção, os agitadores são muito poucos. Muito, muito poucos. Só não somos insignificantes porque representamos uma ameaça consistente, antiga, que preocupa a Corte. A maioria dos habitantes do Núcleo está muito satisfeita com a maneira como as coisas seguem.

Seu tom era amigável, mas reflexivo. Não havia a doçura e o carisma que eu costumava identificar nos discursos da própria Suprema Magister. Pelo contrário, às vezes suas palavras saíam tão concentradas que mal parecia que Reina estava tentando me convencer delas. Era como se a assistente tivesse uma velha relação afetiva com a realidade sobre a qual estávamos discutindo. Quase como se… estivesse falando de algo extremamente pessoal.

— Está bem. Entendo — falei. — E quais são seus motivos?

— Perdão?

— Você disse que cada um está insatisfeito por seus próprios motivos. Quero saber quais são os seus.

Ela abriu outro sorriso, dessa vez um tanto envergonhado. Talvez não esperasse que eu fosse perguntar aquilo.

— É complicado. Mas sei que você não se contentaria em apenas me ouvir dizer que tenho motivos muito sólidos — admitiu. — Você já deve saber que o dia que chamamos de "a Expansão" aqui no Núcleo é a Grande Emersão celebrada nas províncias. Provincianos como você são selecionados todo inverno, e então trazidos para viver conosco.

Isso não era nenhuma novidade. Eu havia passado anos da minha vida me escondendo dos olheiros por conta disso.

— Todos sabemos.

— Pois então, você com certeza está familiarizado com os olheiros que visitam as províncias — continuou ela. — Eu costumava ser olheiro. Ou melhor, aspirar a ser. Após me formar em Medicina, não passei no teste de capacidade vocacional, portanto nunca cheguei a exercer de fato o ofício de olheiro. Podemos dizer apenas que já vi muito das províncias, o bastante para não me sentir à vontade com a maneira como são geridas. Percebo que o sistema não é perfeito. A Suprema Magister aposta nas diferenças sociais para manter a Colmeia funcionando. Isso dá certo, em partes, mas não significa que seja a melhor maneira de administrar a nação.

Entrelacei os dedos sobre a mesa. Se eu compreendia direito, ela percebia que o modo como os páuperes eram tratados era desumano.

— Certo, entendo que você seja uma agitadora. Mas isso não explica por que está nos ajudando. Não vejo nenhum outro páuper fugitivo por aqui.

Reina se recostou na cadeira.

— É verdade. Nunca fiz isso antes, mas por um certo motivo. Nenhum provinciano tinha escapado do furgão de transporte. Nunca. Nenhum precisou ser contido, e certamente nenhum chegou a ter uma discussão direta com a Magister. Poucos já foram trocados de classe após a designação da Corte. Nenhum antes de você — explicou. — Enquanto você estava na sede, eu não podia expressar minha opinião abertamente, mas notei que se havia alguém capaz de escapar do destino no Núcleo, esse era você. Decidi que faria o que pudesse para ajudá-lo.

— Foi só por isso? — perguntei, descrente.

Ela assentiu.

— Margon, você tem um ímpeto do qual eu gosto. Apesar de isso poder ser bem doloroso às vezes. — Ela levou a mão ao cotovelo, com um sorriso sofrido no rosto. — Mesmo que eu tentasse trazer todos os provincianos selecionados para este abrigo, as chances de eles permanecerem seguros não seriam grandes. Isso porque a maioria se adapta muito bem à maneira como o Núcleo funciona. Alguns já vêm prontos de suas províncias e precisam passar apenas por uma redesignação física a fim de se encaixar nos padrões da cidade.

— Não acredito em você — anunciei. — Pelo menos não na parte em que diz que decidiu me ajudar. Você nos trouxe para cá, mas isso não teria sido possível se não tivéssemos conseguido chegar ao continente. Tudo o que fez foi me m****r direto para o inferno. Ainda me aconselhou a não resistir. Como quer que eu acredite que você sempre esteve do meu lado?

Meu tom era sentencioso, mais do que eu tentava fazer com que fosse. Percebi que guardava certo rancor. Até então, a Assistente 44 era uma das pessoas responsáveis por todo o martírio pelo qual eu vinha passando. Era estúpido da parte dela esperar que agora, de repente, eu fosse acreditar que suas intenções foram boas desde o início.

Reina sacudiu a cabeça.

— Rebelar-se seria perigoso — falou. — Você não faz ideia do quanto se arriscou fugindo daquele furgão durante o transporte. Eu me responsabilizei por suas atitudes, e só por isso sua punição não foi pior. Quando pedi que não se manifestasse, era porque eu tinha um planejamento para você. Queria ajudá-lo, mas não podia deixar que as pessoas erradas descobrissem.

— Fiquei preso naquele jogo por semanas — insisti. — Se não fosse por Benjamin, eu não teria a menor chance.

— Eu sei — falou. — E foi por isso que providenciei uma chave de acesso para ele. — Hesitei. Ela notou minha desorientação e levantou a palma no ar, pedindo que eu me acalmasse. Então explicou: — Simuladores de Vida não estavam entre os gêneros favoritos desse rapaz. O servidor ainda está em estágio beta e o sistema nunca disponibilizaria acesso a ele.

— Foi ele quem me comprou… — Eu fora negociado a estranhos.

— Mas ele nunca teria participado do seu leilão se não tivesse obtido direito a uma chave de acesso — rebateu ela. — Veja bem: eu costumo frequentar o aviário da cidade. Já fiz alguns negócios com esse rapaz. Pude conversar com ele algumas vezes e notei como o consternava manter aquelas aves engaioladas. Eu sabia que era só um garoto, mas percebi que, se pudesse, ele faria qualquer coisa para libertar aqueles animais. Então pensei que talvez fosse agir do mesmo modo em relação a você caso o conhecesse. Enviei o convite para Benjamin em nome do Conselho, disponibilizando acesso ao seu leilão. Depois disso, facilitei o acesso através do firewall para que Benjamin não tivesse dificuldade em invadir o servidor. Ele tem experiência com programação, mas o logaritmo do Simulador é complexo e recente demais, portanto ele não teria conseguido estabelecer comunicação com você sem nenhum auxílio.

Levantei ambas as mãos no ar.

— Espere, não estou entendendo. Você conhece Benjamin?

Reina respirou fundo.

— Apenas de vista. Eu frequento o aviário da cidade. Sei que o rapaz trabalha lá.

— Então foi você quem o induziu a jogar?

— “Induzir” não seria a palavra — respondeu. — Depois que você foi enviado à Ventura, eu sabia que precisava encontrar um meio de tirá-lo de lá. Infelizmente eu não podia ter envolvimento direto, pois sou membro da Corte e seria condenada caso alguém descobrisse o que eu vinha fazendo. Tive que recorrer a outra pessoa, alguém insuspeito que ainda não estivesse envolvido, mas que se compadeceria de você o suficiente para tentar ajudá-lo. Lembrei-me desse rapaz, quem eu conhecia das minhas visitas ao aviário, e então o convidei a obter uma chave de acesso à fase beta do Simulador, levando-o especificamente a participar do seu leilão.

Comprimi os lábios. Estava começando a entender.

— Você o levou a negociar por mim…

— Ele nunca teria feito isso por conta própria. Pelo menos não da maneira como tudo aconteceu. Nada desde o momento que você entrou naquele veículo aéreo foi coincidência, querido. Eu tive que intervir. Até mesmo para que ele pudesse conversar com você, alguém teve que enfraquecer as defesas do lado de cá.

Um frio agora percorria minha pele. As peças se encaixavam.

— Mas, da maneira como vejo, você apenas contou com a sorte — apontei. — O que aconteceria se ele não se importasse? E se ele apenas jogasse comigo sem nunca se dar ao trabalho de entrar em contato?

Mesmo que suas intenções tivessem sido as melhores, nunca havia existido garantia alguma de que o garoto a quem ela oferecera a chave seria aquele que se disporia a fazer alguma coisa por mim.

— Sei que parte do processo estava fora do meu controle, mas nada aconteceu sem planejamento — defendeu-se. — Fiz uma pesquisa detalhada sobre a vida desse rapaz. Descobri sobre seus passatempos, o trabalho que fazia com aqueles animais. Sabia que ele era um gamer incurável, que tinha conhecimentos de programação e, principalmente, que nutria um princípio de ideal agitador. Benjamin Bianco, como se chama, era um terreno fértil; o tipo de pessoa que lutaria pela nossa causa e faria de tudo para ajudar outras pessoas, gente como você.

— Como pode ter tido acesso a todas essas informações?

— Bem, grande parte de tudo já estava disponível nas redes de relacionamento do rapaz — esclareceu. — Todos têm um perfil público na rede. Não precisei fazer muito esforço.

Inclinei-me para frente, absorto, apoiando o queixo nas mãos. Imaginava tudo o que acontecera na ilha, concebendo que Reina planejara cada detalhe sem que eu fizesse ideia. Benjamin era apenas um artifício que a assistente usara para tentar me ajudar desde o início. Será que ele havia percebido isso? Pelo menos um pouco?

— Isso é… — gaguejei. — Não sei se dá para acreditar!

— Eu o acompanhei a cada minuto. Mesmo que você não visse, eu estava lá. Hackeei o jogo, encontrei uma brecha e supervisionei todos os seus passos. Também invadi o computador do rapaz sem que ele notasse — inteirou ela. — Estive lá nas suas primeiras conversas com Benjamin; quando o garoto livrou você dos controles; enquanto planejavam a fuga e quando roubaram o caminhão. Tudo o que conversavam e faziam era transmitido diretamente para mim.

Lembrei-me do capotamento. Logo depois, fôramos cercados por guardas, o que teria sido nosso fim caso Benjamin não houvesse explodido a cisterna.

Levantei a cabeça, um pensamento me ocorrendo.

— A explosão… — mencionei. — Foi mesmo Benjamin quem matou aqueles homens?

Seu olhar permanecia fixo.

— Não me orgulho de tudo o que fiz — confessou, num tom sombrio. — Eles teriam alvejado vocês, na melhor das hipóteses. Benjamin nunca pensaria em machucar alguém, não tem esse perfil. Ele foi o responsável por estourar a cisterna, mas isso apenas faria com que os guardas agissem por retaliação e pressionassem o gatilho. Eu percebi o que aconteceria e, portanto, dei minha contribuição. O garoto não arrebentou os cabos de tensão. Fui eu quem fez isso. E essa é a única razão por que vocês três estão vivos agora. Mesmo que eu não quisesse me envolver, vocês nunca teriam passado por aqueles guardas sem minha ajuda. Tive que arriscar.

Se isso fosse a verdade — e parecia mesmo ser —, era demais para que eu assimilasse tudo de uma vez.

Eu não sabia o que pensar. Começava a reviver as últimas semanas em retrospecto, imaginando todas as vezes que eu pensara estar sozinho — ou a sós com Benjamin — sem nunca ter de fato estado. Toda a explicação de Reina era tão incomodamente conveniente que eu não podia deixar de acreditar nela.

Minha cabeça começava a doer.

— Ninguém nunca descobriu o que você tem feito?

— Evitei deixar rastros. Até agora, pelo menos — respondeu.

Fechei os olhos. Eu havia exigido respostas, e agora que as obtinha, não podia me revoltar por tê-las.

— Então… o que faremos agora?

Reina pigarreou e disse:

— Agora vocês permanecerão neste abrigo. É o único lugar onde estarão seguros.

Abri os olhos e encarei a mulher.

— Por quanto tempo?

Ela encolheu os ombros.

— Aonde mais acha que pode ir?

— Para casa. Para minha província. — Esse era o objetivo desde sempre.

Reina soltou todo o fôlego de uma só vez, voltando seu olhar vago ao copo vazio sobre a mesa.

— Você sabe que não poderá voltar. Nenhum de vocês pode sair deste abrigo. Não é seguro.

Joguei o corpo para trás, deixando transparecer o quanto eu achava aquela ideia absurda.

— Não podemos ficar aqui para sempre.

— Ficarão por tempo indeterminado.

Uma risada descrente e nem um pouco feliz escapou da minha garganta.

— Você não pode acreditar, sinceramente, que eu concordaria com isso.

— Não importa no que acredito. Concordar ou não cabe a você. Mas peço, querido, que entenda a situação em que está — falou, voltando a me encarar. — Por trabalhar para a Corte, tenho acesso a informações restritas e, portanto, sei que a Magister não ignorará o que aconteceu esta noite.

— Como assim? Que informações são essas?

Ela umedeceu os lábios com a língua, pensando em como responder.

— A Corte tinha como rastreá-los desde o momento em que tomaram controle daquele barco na costa de Ventura. Poderia tê-los interceptado em alto-mar se quisesse, mas permitiu que entrassem na cidade. Não preciso tentar convencê-lo de que a Magister está um passo à frente de todos nós.

Senti um frio na barriga. Minhas suspeitas estavam corretas. Pelo visto, não vínhamos conseguindo escapar coisa nenhuma.

— Não estou entendendo. Por que deixariam que entrássemos?

— Para ser sincera, não tenho certeza. Minha melhor aposta é que estão maquinando alguma coisa — disse a mulher. — Vocês três se tornaram uma grande ameaça para o Núcleo. Ninguém havia escapado do Simulador antes. Qualquer um no comando do Núcleo estaria ávido por capturá-los. E, se isso acontecer, pode ser que eu não consiga mais intervir. Por isso, seja lá o que a Corte vem planejando, não podemos dar chance ao azar. Sua melhor alternativa é ficar aqui e não sair mais.

Murchei na cadeira. Suas palavras lentamente causavam efeito sobre meu ânimo. Meu corpo estava dolorido e sem energia, minha mente dava voltas. Eu quase já não estava em condições de continuar com aquela conversa.

Então eu nunca realmente voltaria para minha família, era isso o que era sugerido. Pior que isso, eu nunca poderia sair de um abrigo subterrâneo. Estava fadado a permanecer preso, de um jeito ou de outro. Os caminhos que eu tentava seguir sempre se bifurcavam até terminar em becos sem saída. A esperança que eu sentira há algumas horas, a sensação de que tudo por fim ficaria bem; que eu consertaria minha relação quebrada com meu pai, que abraçaria mais uma vez minha irmã… todo esse futuro desaparecia, deixava-me aos poucos, enquanto a percepção da realidade se assentava dentro de mim. Quantas vezes eu seria derrotado no mesmo jogo? Quantas vezes eu sentiria que não havia aonde fugir até que realmente fosse o fim da linha?

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