Capítulo Três

A grande muralha de rochas se alteava à nossa frente. Era uma parte da Colmeia, vista por um ângulo raro. Um amontoado de terra, montanhas muito altas. Em seu cume, províncias existiam, isoladas e dissociadas umas das outras. Elas se organizavam como um arquipélago circular, seis montes cruzando o céu; no centro de todas, o Núcleo estendia suas pontes para cada província, como os aros de uma roda.

Eu nunca havia percebido o quanto vivíamos acima do mar. As águas nas quais velejávamos eram as mesmas que banhavam os rochedos abismáticos à base de toda a Colmeia. Isso explicava o cheiro salgado que podia ser sentido na guarita, à altura da ponte, de onde tudo o que se via era o precipício abaixo. Podíamos somente enxergar o pico iluminado pelas luzes da cidade, as pedras eram manchas escuras deduzíveis ao farol do barco.

A embarcação se aproximou cada vez mais do colosso de terra, e então adentrou uma fresta enorme — era o abismo que dividia uma província da outra. Diminuíamos velocidade aos poucos, como se o barco soubesse que aquela era uma área perigosa.

Quando entramos pela abertura nas rochas, um vento quente nos recebeu, trazendo consigo um fedor pútrido, um cheiro pestilento mesclado ao sal que ardia no nariz. Olhando para cima, já não podíamos ver nada, pois a névoa se intensificava, projetando o breu sobre nós.

Benjamin nunca me informara sobre esse túnel entre as montanhas. Tudo o que eu podia fazer era esperar que as coordenadas inseridas no gps estivessem corretas.

A passagem não era estreita, parecia comportar embarcações maiores que a nossa. Essa devia ser a rota mercante entre a ilha dos jogos e a Colmeia. Obviamente não era um curso qualquer, devia ser monitorado pela Corte e contar com vistorias regulares.

Pensando assim, imaginei que mais à frente houvesse alguma espécie de porto, possivelmente repleto de guardas armados, notificados da fuga de três páuperes rumo ao continente, com ordens de exterminá-los.

Era a primeira vez desde que deixáramos a ilha que esse pensamento passava pela minha cabeça: o Núcleo estava ciente sobre seus fugitivos, além de possuírem armas pesadas e aeronaves potentes. Considerando que nós já navegávamos há horas, eu me perguntava o que os vinha impedindo de lançar todo o seu exército sobre nós. Eu conseguia imaginar uma saraivada de tiros agora, contra nós e o casco do navio, vinda diretamente do céu e com o intuito de nos obrigar a nos render. Em vez disso, estávamos quase alcançando a costa.

Ao longe, pude ver luz através da névoa. Estávamos nos aproximando do píer de exportação. Ele pertencia a um cais semelhante ao que havíamos deixado às margens da ilha.

Dei ordem para que Kaira e Alve se preparassem. O rapaz tratou de verificar se seus bolsos não comportariam mais alguns dos apetrechos que havia encontrado dentro da caixa de madeira.

E então, finalmente pudemos ter um bom vislumbre do porto. O cais era muito grande. Contêineres se enfileiravam, havia algumas instalações mais adiante. Tudo era muito cinza, organizado e quieto. Diversos outros barcos descansavam sobre as ondulações. Uma bandeira com o símbolo da Colmeia se agitava ao vento. Perceptivelmente, esse era o ponto de operações comerciais entre o continente e a ilha. Para minha surpresa, no entanto, não havia ninguém por lá.

Quando o barco parou no píer, Kaira foi a primeira a colocar os pés para fora. Acompanhei Alve ao concreto.

O cais era feito de vielas e píeres entre a água e os prédios. O ar era frio outra vez, tão úmido que o vento parecia uma extensão do mar. Mais adiante, a ladeira era apenas um contorno negro para além das construções; um caminho seguia para o ponto mais alto, onde se encontrava o Núcleo. Dali podíamos ver suas luzes, lá em cima, como um mistifório de estrelas no céu noturno.

Tudo parecia abandonado. A presença das embarcações à margem e a bandeira hasteada indicavam que o porto ainda funcionava. Diante disso, era estranho que não houvesse ao menos um guarda fazendo vigia. Imaginei que talvez, visto que provavelmente éramos procurados por toda a costa, a Corte houvesse direcionado todos os seus homens para outro ponto de acesso ao continente. Era a hipótese mais plausível.

Alve abraçou o próprio corpo, tentando se proteger do frio. Quando falava, criava pequenas nuvens de umidade diante do rosto. Olhou para cima, tendo um vislumbre da cidade.

— Vamos mesmo fazer isso? — perguntou, receoso.

Assenti. Não tínhamos outra opção. Após todas as nossas idas e vindas, estávamos fadados a retornar aonde tudo tinha começado.

— Benjamin foi quem nos ajudou a chegar até aqui. Se não fosse por ele, não teríamos conseguido abrir nem uma porta — falei. — Ele vai saber o que fazer. Precisamos encontrá-lo.

— O plano original não envolvia entrar no Núcleo mais uma vez — murmurou Kaira. — A gente devia encontrar a passagem subterrânea e cruzar o continente por baixo da cidade. Só isso.

— Essa não é mais uma opção — respondi. O plano já havia ido para o espaço. — Não conseguiríamos chegar nem à metade do percurso.

— Pessoal… — chamou Alve de repente, como se algo lhe ocorresse.

Kaira ignorou o rapaz e continuou a discussão:

— Mas entrar outra vez na cidade vai ser como pular para dentro da nossa próxima cela. Da última vez que olhamos para o alto, estávamos sendo perseguidos por helicópteros de batalha. Quais são as chances de isso dar certo?

— A alternativa é ficar aqui na costa, parados, esperando que um milagre aconteça.

— Eu sabia que essa tua ideia de fugir de barco daria errado — grunhiu Kaira.

Alve voltou a chamar numa voz hesitante:

— Pessoal, por favor…

Meu sangue começava a ferver outra vez.

— Se não está satisfeita, por que não dá uma sugestão válida? Ou, melhor ainda, entre no barco e volte para a ilha por conta própria.

— Não seja ridículo.

— Simas, é sério! — bradou Alve.

Finalmente me virei ao rapaz:

— O que é?

Alve estava pálido, com os olhos arregalados e a boca entreaberta.

— Escute — sussurrou ele.

Ficamos todos em silêncio. Um zumbido discreto podia ser ouvido, como um inseto particularmente barulhento. Aproximei-me de Alve com cuidado, percebendo que o ruído se originava dele.

— O que é isso?

— Está no meu bolso — respondeu.

Engoliu em seco, meteu a mão no bolso e começou a tirar as bugigangas que vinha carregando. Retirou o isqueiro, os óculos de grau e o relógio de pulso. Quando suas mãos já estavam quase completamente ocupadas, Alve segurou pela ponta a placa de vidro que trouxera da ilha, o dispositivo móvel.

Peguei o aparelho de sua mão e confirmei que o zumbido vinha dele. Vibrava como um pequeno motor de carro, e uma silhueta inidentificável surgia na tela como uma fotografia.

— Acho que alguém está tentando entrar em contato conosco — disse Alve, ainda segurando os apetrechos no ar.

Prendi a respiração. Estávamos recebendo sinal de chamada?

— Este dispositivo pertencia a um dos homens que deixamos na ilha, certo? Alguém deve estar tentando contatá-los — deduzi.

— Ou alguém pretende, na verdade, falar com um de nós — supôs Kaira.

Sacudi a cabeça negativamente.

— Vamos, Simas, atenda à chamada — mandou Alve.

— De jeito nenhum!

Eu conseguia imaginar uma porção de maneiras de isso dar errado.

— O que mais a gente pode fazer? Simplesmente ignorar? — perguntou Kaira.

Pensando bem, sim. Comecei a andar na direção da margem do porto.

— Vamos jogar esta coisa na água.

— Não! — Alve correu até mim. — E se for uma chance de sairmos desta situação?

— Quem telefonaria para um de nós, Alve? Estamos sendo perseguidos!

— Benjamin — mencionou ele.

O silêncio pairou mais uma vez. Só escutávamos a água banhando o concreto e o zumbido insistente do aparelho na minha mão. A ideia de que Benjamin poderia estar tentando se comunicar me fazia pensar duas vezes, mas não me convencia.

— Ele não teria como nos encontrar assim. — Ou será que teria?

Foi então que Kaira saltou para frente e puxou o aparelho da minha mão.

— Tu não disse para esperarmos que um milagre acontecesse? — Ela ativou a chamada com um toque do polegar.

Estiquei a mão para impedi-la, mas já era tarde demais. Trinquei os dentes.

Kaira levantou uma mão aberta no ar, ordenando que todos aguardassem. Com a outra mão, virou o dispositivo na nossa direção. Ouvimos o ruído de respiração do outro lado, havia mesmo alguém lá. Ninguém ousou dizer uma palavra.

O indivíduo, por fim, manifestou-se:

— Simas Ignácio Margon, você está em perigo.

Meu coração disparou, senti um calafrio subir pela minha espinha. Não era a voz de Benjamin, era aguda demais. Mas sabia meu nome inteiro, falava diretamente a mim.

Alternei o olhar entre Kaira e Alve, sem saber como reagir.

A voz então repetiu:

— Você está em perigo.

Milhões de possibilidades passavam pela minha cabeça. Era óbvio que eu estava em perigo, não precisava que me dissesse isso.

Sem ter outra opção, perguntei:

— Quem é você?

Uma pausa.

— A qualquer momento, a Corte estará em seu encalço. Posso ajudá-lo a entrar na cidade em segurança.

Isso não respondia à minha pergunta.

A voz era feminina, e eu não a reconhecia. Falava devagar. Podia ser a própria Magister? Ou quem sabe alguém que trabalhava para ela?

— Quem é você? — repeti.

Ouvi um suspiro do outro lado da linha.

— Uma velha amiga.

— Não tenho amigos aqui.

— Não é verdade, e você sabe disso — contrapôs. Eu estava com a mão aberta, esperando que Kaira me devolvesse o aparelho. Devíamos tê-lo jogado na água quando tivéramos a chance. A voz voltou a falar: — Seu plano deu errado. Nenhum de vocês conseguirá chegar à província. A Suprema Magister está ciente dos seus passos, mandou remover toda a guarda do porto e abrir os portões para o Núcleo. Vocês têm acesso livre à cidade, mas é uma cilada. A única maneira de não serem interceptados é fazerem exatamente o que digo.

O nó que se formava na minha garganta apenas se apertava mais. Como alguém podia ter todas essas informações a menos que fizesse parte da Corte?

— Como podemos confiar em você?

— Não têm alternativa.

— Você é um deles?

Outra pausa. Ela tinha cuidado com as palavras.

— Sei que você pretende procurar seu amigo habitante do Núcleo, mas não pode entrar em contato com ele. Depois do prejuízo que ele causou, tornou-se um procurado pelas autoridades. Eu não estaria conversando com você se pretendesse lhe fazer algum mal.

Alve devolvia os objetos para os bolsos, inquieto. Kaira balançou a cabeça, tentando me encorajar.

E se esse fosse um truque da Corte para nos capturar? E se eu aceitasse aquela proposta e colocasse todos nós em risco outra vez?

— O que precisa que eu faça? — perguntei.

— Suba o morro e entre pelos portões lestes da cidade. Estarão abertos e sem supervisão. Siga reto por meio quilômetro e aguarde sob os outdoors da rua principal. Não deixe que vejam seu rosto.

— Não sei se posso fazer isso… — Minha voz saiu baixa.

A decisão é sua.

Ouviu-se um bipe breve e a tela do aparelho portátil se apagou na mão de Kaira. A chamada foi encerrada.

Alternamos olhares, em silêncio. Ninguém sabia o que dizer, ninguém esperava que algo assim pudesse acontecer. Tudo o que sabíamos era que havia alguém do Núcleo ciente de tudo o que vínhamos fazendo.

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