Capítulo Dois

As águas escuras se agitavam. O barco era o único ponto iluminado no oceano. Parecia arriscado e imprudente navegar àquela hora da madrugada, com a maré um tanto alta e o breu adiante; era como se o céu e o mar fossem um só, uma cortina negra na qual eu me emaranhava deliberadamente.

Estava sentado numa pequena elevação da popa. Logo o continente surgiria em meio à neblina, e então eu estaria seguro.

Dormir costumava ser um desafio para mim, mas agora que tudo estava acabado, que o calor se dissipava e o ar não tinha mais gosto de confinamento, toda a tensão das últimas três semanas cobrava seu preço. Assim, quase sem perceber, resvalei para uma inconsciência condigna, um descanso vitorioso após tantas formas de vigília.

No meu repouso, eu via tudo. A ponte se movendo como um gigante inquieto, fazendo-me pender acima do abismo; as balas de borracha atingindo meu peito; o aroma de goma de mascar e os olhos de lanternas azuis; a cidade de neon, viva; corpos nus; suor e terra. Via hélices girarem; sentia café, madeira e isopor; desesperança, raiva e frio; e então fé, quando a voz dele soou pela primeira vez, como a de um fantasma, invisível, mas presente. Havia montanhas, cercas, grades de metal, medo. E, quando tudo só poderia seguir um único caminho, vieram os portões abertos, árvores passando do lado de fora para além das janelas do caminhão. A fúria da tempestade elétrica quando os fios de alta tensão arrebentaram sobre a cisterna. A umidade, o cheiro de carne queimada, a culpa. Estávamos tão perto! E os disparos, finalmente, um tanto longe. Cada vez mais longe. De volta para casa.

Daí eu me lembrava do que viria. Lena perto da lareira; meu pai e Farid. A argamassa e o córrego do rio. Cheiro de peixe frito, talvez, como os que minha irmã fazia no fogão. Espicho e sua cenoura. Minha mariposa desenhada no teto, que eu via toda noite ao me deitar, a mesma que meu pai sepultara com cal.

E então havia Benjamin. Ele estava lá em algum lugar e se parecia comigo. Ele compreendia, aproximava-se de mim; não era uma imagem desfocada na minha cabeça, ou uma voz que às vezes falhava.

Engasguei-me. O gosto era salgado. Tomei ar e despertei. Os sonhos e as lembranças desvaneceram como fumaça.

De volta à realidade, ainda havia água por todo lado. A noite daria lugar ao alvorecer dali a algumas horas. O barco que havíamos roubado às margens da ilha de Ventura seguia seu caminho rumo ao continente.

Ouvi som de metal tilintando e foquei minha atenção no ruivo agachado à minha frente, no convés do barco. Inquietei-me. Sentia-me um pouco letárgico, como quem havia forçado demais os músculos e agora tinha que aguentar seus protestos.

Kaira estava de braços cruzados, encarando o mar. Seus cachos castanhos se desarrumavam ao vento.

Por quanto tempo eu havia dormido? Minha última lembrança era de ver a ilha do Simulador desaparecer atrás de nós enquanto berrávamos eufóricos.

Alve notou que eu estava acordado e sorriu para mim.

— Ei! Para que acha que isto serve? — perguntou, segurando alguma coisa. Sua pele muito branca parecia azul sob a luz da lua; seus olhos brilhavam quase como os de um felino doméstico.

Sacudindo o sono, reconheci o objeto que o garoto mostrava para mim. Estendi a mão para pegar. Era prateado e frio. Tratava-se de um relógio de pulso, como há muito tempo não se via. Eu o reconhecia apenas das vezes que visitara o antiquário na província; objetos como aquele já não eram produzidos desde uma época anterior à Grande Emersão. Na província não se usava qualquer aparelho portátil.

— Serve para marcar as horas — falei.

Alve soltou uma risada animada.

— Legal! Quanto será que vale?

Ele voltou a revirar uma caixa de madeira grande, aberta sobre o convés.

— Onde arranjou isso? — perguntei.

Ele tirou um par de óculos de grau de dentro da caixa e os estudou por um momento antes de deixá-los de lado. Ao redor, havia outros objetos casuais, como isqueiros, pesos de porta e um aparelho escuro e comprido, cheio de botões. Alve se entretinha revirando a caixa grande.

— Achei na proa, tem mais umas cinco desta — respondeu. — Devem ser mercadorias para abastecer os estabelecimentos lá na cidade.

Lembrei-me da alameda comercial em Ventura, a cidade ficcional onde os páuperes eram detidos e controlados no jogo do Simulador.

— Você não devia mexer nessas coisas. — Não sabíamos o que poderia haver dentro daquelas caixas.

— Tá brincando, guri? Vou faturar para caramba vendendo isso na província!

Alve aproveitou para me mostrar mais uma coisa. Tirou do bolso o que a princípio parecia ser apenas uma placa de vidro.

— Isso também estava dentro da caixa?

— Isto aqui, não. Encontramos dentro do caminhão, lembra?

Aquele era um dos dispositivos móveis que os habitantes do Núcleo usavam o tempo todo. Eu me lembrava de tê-lo jogado para o lado após entrar no veículo e me sentar sobre ele sem querer.

— É perigoso andar com essas coisas por aí. — falei. E se existisse uma maneira de sermos rastreados por meio daquilo?

Alve não parecia se preocupar.

— Acho que já não nos importamos mais em fazer coisas ruins e perigosas, de qualquer forma. Tipo destruir coisas, roubar objetos pessoais… e automóveis e embarcações. — Ele voltou a guardar o dispositivo, junto com o relógio de pulso e mais uma porção de outras coisas. Seus bolsos foram ficando tão cheios de bugigangas que era possível ver o formato indistinto delas através do tecido de sua calça. — E agora que vou retomar meu negócio, preciso de um pontapé inicial, produtos que atraiam os fregueses.

Sorri. Era a primeira vez desde muito tempo que eu via Alve tão contente com a ideia de sacrificar seus fins de semana montando sua barraca na praça central, vendendo sua parafernália. Eu costumava detestar quando ele tentava contrabandear objetos proibidos, mas, a essa altura, era bom apenas vê-lo empolgado.

— Acho que nunca vi você tão animado para voltar ao trabalho.

Ele me encarou pensativo por um instante, e então encolheu os ombros.

— É… acho que não era tão ruim — admitiu. Largou a caixa e se sentou ao meu lado, encostando-se no casco do barco. Semanas atrás, antes de sermos levados para o outro lado da ponte, Alve costumava se encantar com a ideia de ser selecionado, queria deixar tudo para trás e buscar uma vida abastada como a dos olheiros. Ao que parecia, essa ideia havia deixado de ser tão atraente. — Sinto falta da minha carroça, para falar a verdade. Eu devia ter escutado você.

Passei a mão por trás de seu pescoço e deixei que ele descansasse a cabeça em mim.

— Eu gostaria que você percebesse isso mais vezes.

— Bem, acho que tudo acontece por um motivo… em prol de algo positivo que virá no futuro.

Franzi o cenho.

— Neste caso, qual seria o motivo?

Eu esperava que ele dissesse algo como “descobrir que eu sou um inconsequente que age de maneira impensada a maior parte do tempo”, mas, em vez disso, ele respondeu:

— Ter visto aquela explosão! — Sacudiu os punhos no ar, relembrando o incidente com o hidrante. — Foi totalmente épica, que nem quando éramos moleques e brincávamos de faz-de-conta!

Alve estava mesmo contente, mas não havia nada de divertido naquilo. Pessoas haviam morrido! É claro que não tivéramos escolha senão estourar a cisterna, graças a isso tínhamos conseguido escapar, contudo eu jamais me lembraria dessa noite com tamanho entusiasmo.

— Ferimos Eidan também — pontuei.

Kaira, que até então se mantinha quieta, finalmente se manifestou. Ela olhou para nós e soltou uma exclamação de alívio.

— Pelo menos nunca mais vou ouvi-lo chorar.

Na ilha, enquanto ainda presos, Kaira nunca havia nutrido muita simpatia por Eidan. Mesmo assim, parecia errado falar sobre o rapaz daquela forma. Ele era um de nós e, durante a fuga, havia ficado gravemente machucado. Eu ainda me sentia responsável por tê-lo abandonado.

— Ele pode estar morto agora. — Sentia o peso das palavras à medida que deixavam minha boca. Não gostava de pensar nessa possibilidade.

Ela esboçou uma carranca amarga.

— Já escapamos; tu não precisa mais colocar essa banca de bonzão — desdenhou. Sua voz foi ficando mais baixa. Ela se concentrava nas ondas. — Eidan era fraco. A gente sobreviveu, e ele, não. Pare de agir como se tu se importasse.

Coloquei-me de pé, indignado.

— Se eu não me importasse, não teria trazido você comigo.

— Ah, por toda a beleza do mundo! — exclamou. — Tu nos trouxe porque precisava de ajuda.

— Trouxe porque quis ajudar.

Ela não fazia ideia do que estava falando. Fugir sozinho, apenas Alve e eu, sem ter precisado guiar aqueles dois por entre os pontos cegos das câmeras, poderia ter sido uma tarefa muito mais simples. Como ela conseguia ser tão insensata?

— Pode ser, mas olhe em volta. Isto é como uma guerra. É claro que alguns cairiam pelo caminho. Tu e eu ainda estamos aqui, então podemos comemorar nossa vitória ou choramingar por aquele garoto.

Ela estava realmente exaltada, seu olhar era penetrante, de modo como eu nunca havia visto nos dias que passáramos na ilha. Pude, então, compreender um pouco como Kaira se sentia: tanto tempo em confinamento a havia transformado numa individualista cínica. Talvez fosse uma resposta natural ao estresse ou algo assim.

Não faria sentido discutir. Ela era como a maioria dos páuperes, ignorante. Talvez, caso eu fosse um pouco mais como ela, me arrependeria de ter lhe oferecido ajuda em primeiro lugar.

Além disso, a garota não sabia nada sobre guerra; nossa geração nunca testemunhara uma, apenas sabíamos que elas haviam existido no passado.

Bufei, dando o braço a torcer. Caminhei em direção à borda mais distante e me apoiei nela, observando o mar. A espuma se acumulava como um contorno do barco.

Isso era mais que uma guerra. A maneira como a Colmeia se estruturara desde o início da era, dividindo a humanidade com suas muralhas e pontes. Agora, olhando para trás, eu percebia que já seria suficientemente absurda a exploração das províncias pela soberania do Núcleo, sem contar a maneira desumana como infectavam nosso corpo e nos transformavam em brinquedos teleguiados em favor do entretenimento exclusivo de seus habitantes. Não, não estávamos falando de guerra. O que experimentávamos tinha outro nome, um que eu ainda não conhecia.

Para além dos portões do Núcleo, se o paraíso existisse mesmo, eu não teria sido submetido a tantas formas de tortura. Havia todo um sistema na Colmeia responsável por manter os pilares do Núcleo firmes; e quando não éramos ferramentas, os páuperes literalmente serviam como peças num jogo. Se eu não tivesse conseguido escapar, se não fosse por Benjamin…

Ah, Benjamin! Eu ouvira sua voz uma última vez poucas horas atrás, mas isso já parecia fazer muito tempo. Depois de tantos dias escutando o rapaz na minha cabeça constantemente, parecia um mau presságio não poder mais contar com ele. Agora seríamos apenas eu e Alve percorrendo aquele longo caminho molhado até chegar em casa.

Fechei os olhos e sacudi a cabeça. Minha respiração saía em forma de névoa. Abracei meu corpo para reter calor. O balanço da embarcação sobre as águas era instável. Eu sabia que não tinha muitos motivos para me sentir feliz de fato — não depois de tudo de ruim que acontecera —, mas, considerando que tínhamos fugido vitoriosos da ilha do Simulador, havia um apropriado sentimento de recomeço no ar.

Alve se aproximou mais uma vez. Apoiou-se ao meu lado e empurrou meu ombro com o dele. Tinha um sorriso imperturbável no rosto. Murmurou baixinho:

— Tivemos nossa própria aventura. Sobrevivemos a ela. Não deixe que aquela garota faça isso parecer ruim. — Ele olhou de relance para Kaira.

Inspirei com força, tentando ocultar meus pensamentos bem no fundo da mente. Kaira não me incomodava tanto assim, ela era só parte de todo o problema. No fundo, talvez eu só estivesse assustado com as mudanças e ávido por rever minha família.

— Estamos indo para casa. Nada pode fazer isso parecer ruim.

Alve assentiu.

— Em falar nisso, quanto tempo levaremos até chegarmos à costa?

Olhei de longe para o visor do gps; ele traçava uma rota até o continente. A embarcação funcionava no piloto automático, mas nada dizia sobre o tempo de viagem. Parecia fazer uma eternidade desde que havíamos embarcado.

— Não sei. Acho que mais uma hora ou quase isso.

Ele soltou um assobio.

— Esta é a viagem mais longa da minha vida.

Revirei os olhos. Era, na verdade, uma das poucas viagens que ele já havia feito um dia, haja vista que páuperes não deixavam suas províncias em circunstâncias convencionais.

— O pior já passou.

Pela primeira vez desde que eu havia deixado a província, ser otimista não parecia um contrassenso.

— Mas e quando desembarcarmos? — perguntou ele.

Isso já havia sido planejado, dias atrás. Não existia canal que nos levasse do oceano diretamente à província. Por isso, Benjamin traçara uma rota pela qual cruzaríamos o continente sem termos que atravessar o Núcleo. Segundo ele, a tubulação de esgoto conectava toda a Colmeia, os túneis subterrâneos do Núcleo eram a única passagem livre de guardas. Benjamin descrevera o caminho que precisaríamos seguir para que chegássemos à província certa, e, assim como todo o resto, eu o havia desenhado e anotado nos meus mapas feitos de cartolina. Uma vez desembarcados, só precisaríamos encontrar um acesso às vias de despejo, e então rumaríamos pelas masmorras de volta para casa. Isso levaria uns dois dias.

Expliquei tudo a Alve. E então, pensando nisso, algo me veio à memória. Olhei para trás, procurando a mochila que eu trouxera. De repente, senti um calafrio. Alguma coisa estava muito errada.

Vasculhei todo o convés, mas encontrei apenas as caixas de madeira que Alve vinha fuçando. Ele e Kaira perceberam minha inquietação e me encararam inquisitivamente. A mochila não estava lá!

Voltei-me a Alve e o segurei pelos ombros. A ansiedade começava a tomar conta de mim de novo.

— Qual foi a última vez que você viu a mochila?

No início da madrugada, quando tínhamos saído da casa em Ventura e nos esgueirado até a alameda comercial, eu estivera com ela nas costas. Nela havíamos guardado tudo o que precisaríamos para deixar a ilha, cruzar o mar, seguir caminho pelo canal subterrâneo e então chegar à província com segurança. Ferramentas, agasalhos e, principalmente, a planta do subtérreo.

Alve piscou algumas vezes.

— Da última vez que a vi, estávamos quase de cabeça para baixo — respondeu ele. — Literalmente. Foi quando o caminhão caiu na estrada…

Levei a mão à boca.

Kaira mordeu o lábio e me lançou um olhar incrédulo.

— Tu… tu perdeu a mochila?!

Pior que isso, eu a deixara no veículo, o mesmo que havia sido incinerado como uma fogueira pública de inverno!

Engoli em seco, tentando imaginar o que aconteceria agora. Eu havia gastado horas traçando o esquema que nos levaria para casa; cada passagem, curva e beco sem saída. Tudo o que precisávamos para chegar do outro lado dos muros estava naquela mochila. Sem ela, ficaríamos perdidos na costa. Sem roupas para o frio, sem alimento, sem nada!

O alívio que vínhamos sentindo parecia precipitado agora. Kaira grunhiu e chutou o casco do barco. A esperança de voltar se desvanecia.

— Simas, o que vamos fazer? — perguntou Alve.

— É isso aí, gênio. O que vamos fazer? — repetiu Kaira, com deboche, trincando os dentes.

Tentei manter a calma. Na verdade, eu não tinha a menor ideia.

Sem os suplementos, seria impossível cruzar o continente. De nada adiantaria termos escapado da ilha se, ao chegarmos à costa, não pudéssemos prosseguir.

Fuzilei Alve com os olhos, internamente julgando-o por ter enchido os bolsos com tudo o que havia visto pela frente — inclusive o dispositivo inútil que encontrara dentro do caminhão —, mas não ter colocado a mochila nas costas antes de deixar o veículo tombado.

Kaira tomou minha hesitação como um mau sinal.

— A gente tá condenado! — gemeu ela. — Todo esse sacrifício para nada.

— Calma, vamos pensar em alguma coisa — disse Alve.

— Não há muito no que pensar, idiota. Depois de desembarcarmos, não vamos conseguir sobreviver nem uma semana sem abrigo, sem comida, sem um esquema para cruzar o continente.

— Pelo menos não estaremos mais na ilha.

— E por quanto tempo? — rebateu ela.

Eu respirava depressa. O ar salgado e frio queimava meu peito. Uma decisão precisava ser tomada.

— Não estamos condenados coisa nenhuma — retorqui. Eu me recusava a acreditar que estivéssemos. — Chegamos até aqui. Só precisamos recuperar o que perdemos. E então continuaremos de onde paramos.

A situação poderia ser vista como um pequeno desvio de curso. Podíamos nos agarrar às últimas migalhas de esperança. Dar um jeito.

Kaira me lançou um olhar duro, estava totalmente descrente.

Virei-me e patrulhei o convés, rumo à proa. Contemplei o horizonte e pude enxergar, finalmente e a olhos nus, as grandes rochas chapadas que surgiam em meio à neblina. Lá estava a Colmeia, saudando-nos boas-vindas à medida que nos aproximávamos pelo mar. Alguns minutos atrás, essa visão me encheria de alegria; agora eu temia, conhecendo as novas barreiras que surgiam entre mim e a segurança a qual tanto ansiava.

Uma ideia surgiu na minha cabeça, mas parte de mim lutava contra ela, sabendo que mais uma vez nos colocaríamos em risco. Havíamos conseguido chegar tão longe… mas nada disso teria sido possível se tivéssemos agido apenas por conta própria. Ainda não era hora de seguirmos sozinhos.

— Vamos voltar ao Núcleo — respondi a Alve, tirando do rapaz uma exclamação de sobressalto. Era o único jeito.

Existia apenas uma pessoa que podia nos ajudar; eu havia me despedido dela cedo demais. Estava finalmente na hora de ficarmos frente a frente.

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