Abre e fecha

- E-eu não sei se consigo continuar doutor. Tudo está vindo em cenas mais confusas agora. Como numa fita acelerada em um videocassete.   Mal consigo enxergar uma imagem e ela já foi sobreposta por outras três. Não consigo descrever o que vejo, porque vejo tudo e nada ao mesmo tempo.

- Mantenha sua respiração lenta e profunda, o máximo que conseguir Liam. Você ainda está no controle. Você ouvirá dois sons distintos. O primeiro deles fará as imagens saírem de foco como se o brilho de uma TV fosse diminuído gradativamente até que não haja mais imagem.

[Click]

- O som seguinte vai ser da porta desta "sala de TV" sendo fechada. Você vai retornar tranquilamente para esta sala onde conversamos e abrirá os olhos para encontrar-se com o tempo presente.

[Clack]

Era uma fechadura. A chave girando para esquerda trancava aquela porta. Eu estava fora do ambiente escuro que contrastava com os flashes que estapeavam o meu rosto. E agora estava dentro do consultório frio e encardido do Dr. Bennet outra vez. Eu sabia que nunca havia deixado de sentir o restante do meu corpo, mas abrir os olhos ao som daquela fechadura era como se eu recuperasse o controle dele. A estranheza nunca diminuíra  apesar de aquela ser a décima primeira sessão.

Me sentei lentamente no divã procurando amenizar aquele zumbido que viria mais cedo ou mais tarde em minha cabeça.

Levantei os olhos dos meus pés para a mesa onde o homem de jaleco branco coçava a barba cinzenta com a ponta de uma chave, enegrecida pela idade que devia ser quase a mesma dele próprio.

O zumbido não veio.

- Liam? Como se sente? - disse o homem puxando a gola da blusa interior e soltando a chave lá para dentro. Estava presa num cordão prateado muito fino que só agora eu enxergara.

- Bem. Na verdade sinto como se tivesse dormido além da conta. Mas ao mesmo tempo há esta sensação de que estou mais desperto.

- Hum - houve uma pausa desconfortável até que ele voltou a falar - Ainda não temos material o suficiente que sirva para sua defesa. Está ciente disso?

Minha boca se abriu mas não fui capaz de verbalizar nada. Era inútil. Ele não esperava que eu respondesse de fato.

- Por mais consistentes que sejam seus depoimentos, e suas memórias. As definições que apresenta de sua personalidade e de sua narrativa são concretas até certo ponto. Porém nada que mude o seu laudo. É imprescindível que consigamos atingir o ápice da sua regressão. O ponto exato da sua memória que seja capaz de fechar o seu depoimento ao tribunal. Obviamente não mencionaremos regressão hipnótica em nenhum momento, conforme combinamos.

- Eu só quero me lembrar. Quero ultrapassar esse bloqueio a que o senhor se refere e provar que não sou louco.

- Não repetir esta frase já é um passo importante. Basta ter como seu objetivo interno. Pessoal.

- Certo. Alguém dentro de um manicômio afirmar que não é louco pode não ser visto como novidade mesmo. E quanto à polícia? A investigação tem alguma novidade?

- Não há investigação Liam. O tribunal aceitou o recurso mas isso não quer dizer que a polícia não tenha fechado o caso. Para eles o maior suspeito continua sendo você. E você já está aqui. A "sociedade está em segurança". Deveria estar grato de não estar nas mãos deles, se me permite observar.

- O que posso fazer com relação a toda essa confusão que acontece quando me aproximo da  memória do acidente?

- Você precisa de algo que o deixe mais pesado, para mergulhar mais fundo. Enquanto estiver a vislumbrar as imagens pouco abaixo da superfície você ainda irá se debater e se agarrar de novo ao barco.

- O que houve com a sala da TV?

- Metáforas diferentes para situações diferentes. Não ser literal é o que me permite uma aproximação menos invasiva enquanto o acompanho durante a regressão Liam. Vou preparar algo para sua próxima visita. Até lá, acho que deveria passar um tempo na área comum da Instituição. Conviver com os outros internos. Relaxar sua consciência da ansiedade. Nós temos tempo. Use-o.

Ao sair do consultório o corredor tinha uma temperatura agradável. Um sol jovial entrava pelas janelas e aquecia dois terços da parede a minha esquerda. Eu caminhei na companhia dos dois funcionários de costume. Henry, o sem pescoço e que usava um cavanhaque de gangster, e o Jeff de nariz arqueado e testa franzida. Muitos os chamavam de enfermeiros mas eu achava que tinham mais cara de carcereiros. Não eram muito falantes porém nunca me fizeram mal.

Passamos o longo corredor dos quartos, viramos à direita para outro corredor mais curto e mais amplo até uma escada de metal pintada de branco que reclamava vez ou outra sob os nossos pés.

O pátio surgiu diante de mim com todo o burburinho das cerca de trinta pessoas que ali estavam. A maioria se encontrava apertada na metade banhada pelo sol. Havia um "enfermeiro" encostado em cada uma das duas primeiras colunas que sustentavam o andar de cima e na outra extremidade duas versões femininas deles. Ali era a fronteira principal entre a ala masculina e a feminina do Manicômio. As regras daquela instituição se mostravam pouco ortodoxas a começar por esse contacto permitido entre os internos. A partir daí também era de se imaginar o vasto leque de coisas que podiam acontecer naquele lugar. Não era um esquema de segurança rígido. Apenas contenção para que volta e meia não acontecessem uma agressão ou uma violação entre os internos ali, no pátio onde todos estão vendo.

Decidi por não disputar um lugar ao sol apesar de bater uma vontade imensa de me aquecer sob ele. Não era a primeira vez que ia àquele pátio, mas já fazia um tempo significativo desde a última vez. Não era o mais popular daquele nicho também. Assim como na escola. Mesmo o manicômio não sendo um ambiente onde há muita interação social, às vezes era parecido até demais.

Eu ficava na minha.

As pessoas que ainda tinham a capacidade de interagir e conversar o faziam, e mesmo que estivessem de frente para mim, como se eu fizesse parte da roda, iam se movendo até me fecharem do lado de fora e eu estar vendo as costas de alguém.

Para evitar chamar atenção de alguns ou evitar brigas com outros eu mantinha o olhar baixo à curta distância e só observava quem estava distante. Sentei-me numa mesa de refeitório antiga que fora reaproveitada para aquele espaço e tentei me camuflar, não no ambiente, mas na própria mesa. De vez em quando levantava os olhos varrendo o espaço. O pátio estava mais "organizado" no que diz respeito à disposição das pessoas então julguei que não estavam ali há mais de quinze minutos. Homens ainda estavam perto de homens e mulheres perto de mulheres. Estas últimas eram em menor número, cerca de umas dez a menos. A maioria entre quarenta e sessenta anos de idade. Quem quer que tivesse mobilidade reduzida ou saúde mais frágil tinha uma ala específica, coincidência ou não, perto do cemitério.

Das pessoas que vieram ter contato comigo só estava ali uma naquela manhã. Um velho já completamente calvo, mas que tinha apenas cinquenta e dois anos. A barba curta tinha uma aparência de sujeira em seu queixo quadrado e faltavam-lhe todos os dentes de cima mais alguns poucos de baixo. Conversava um tanto seco como se não bebesse água há dias. E toda frase dele tinha o nome da outra pessoa no início. Doug foi o nome que me lembrei.

- Li-am. Você ainda v-vive!

- Olá Doug. Vejo que você também!

- Li-am. Você f-foi emb-bora.

- Ainda não Doug. Estou bem aqui. Por um tempo.

- Li-am. P-procuram você.

- O quê? Quem Doug? Quem me procura?

Eu acabava por ficar repetitivo também ao conversar com ele.

- Li-am. M-menina.

Meus olhos varreram novamente o pátio. Eu não conhecia ninguém da ala feminina. Quem poderia saber de mim a ponto de me procurar.

Olhando mais uma vez para o Doug eu me perguntei rapidamente se poderia dar ouvidos a um louco. Mas ele não era do tipo que vive numa realidade própria que não faz o menor sentido no que diz quando resolve dizer.

Eu o compreendia.

Droga, isso me preocupava também.

Antes que eu esboçasse uma resposta Doug saiu andando como se tivesse se lembrado de um compromisso importante. Na verdade, era porque a conversa tinha terminado.

- Foi bom te ver também Doug.

Enquanto observei ele se afastar meus olhos foram atraídos para uma figura esquelética de cabelos cinzentos compridos, que se mantinha de pé imóvel a me encarar com um par de olhos grandes, mas que estavam afundados nas órbitas em meio a olheiras cadavéricas.

Após o frio na espinha que senti veio o pensamento: Doug não tomaria aquela mulher por uma menina. Que tipo de louco o faria? Certo. Não teve graça.

- Acho que já tive convívio demais por hoje.

A mulher de repente caminhou pesadamente em minha direção. Eu me afastei num reflexo, escorregando para a outra extremidade do banco mas ela já estava em cima de mim antes que pudesse ter qualquer outra reação. Cobrindo minha boca com uma mão ela me empurrou contra a parede mais próxima. Eu estava em choque. Apavorado com aquele olhar medonho eu segurei o braço dela mas parecia não ter forças para me desvencilhar. Com a outra mão ela tirou algo de dentro da boca e enfiou por dentro da minha calça. Senti algo úmido que foi guardado habilidosamente dentro da minha cueca. Um grito foi abafado pela mão magra daquela mulher. Ela trouxe então o indicador para frente dos lábios e começou a abrandar a força que exercia sobre o meu maxilar quando eu acenei com a cabeça que havia entendido o sinal.

Movendo-se rapidamente, a estranha mulher me soltou para que eu desabasse em cima do banco e saiu, andando normalmente em direção às outras mulheres. Pensei em gritar por algum enfermeiro antes que ela desaparecesse mas percebi então que o exato local onde ela me atacou era um ponto cego em relação aos quatro enfermeiros que supervisionavam o banho de sol no pátio. Eu tinha as pernas trêmulas, a respiração acelerada e um cheiro horrível como o de comida estragada que ficara no meu nariz e boca vindo da mão daquela mulher. O objeto úmido escorregava pela minha genitália e provavelmente teria deixado um cheiro ainda pior. Mas eu não tinha nem sequer coragem de enfiar a mão dentro das calças ali.

De repente uma risada quase infantil chegou até mim. Quando me virei para olhar só consegui vislumbrar uma mecha de cabelo vermelho, que esvoaçou quando alguém correu por detrás da pilastra mais próxima, também em direção a ala feminina.

- Liam! O que faz aí? - era o Jeff que chegava pelo lado oposto, me fazendo perder de vista quem eu tentei enxergar.

- Preciso voltar ao meu quarto.

- Qual é o problema? Não vai me dizer que virou um vampiro?

Não, mas acabo de ser atacado por uma bruxa!

Caminhei com dificuldade até a escada tentando não deixar que aquela coisa escorregasse mais para baixo ou viesse a cair pela perna da calça. Eu tinha que ver o que era mas sem ter que dar explicações. Para subir os degraus eu tive que segurar um pouco a calça de modo que apertasse mais a cueca contra o meu corpo. Olhando para mim com curiosidade Jeff balançou a cabeça e comentou:

- Sabe, sempre achei que o convívio entre os internos só os deixa piores. No isolamento cada um só tem as próprias vozes para atormentar a cabeça. É como tomar a loucura em doses homeopáticas. Agora isto? - apontou para o pátio atrás de nós - Para mim é para que dêem cada vez mais trabalho e o diretor consiga mais verba do governo.

- E ele tem conseguido pelo menos?

- Você vê algum dinheiro aplicado nesse lugar Liam?

A escada que rangia sob nossos pés foi a resposta.

Jeff tirou do cinto o molho com umas vinte chaves e girou até encontrar, com certa facilidade, a correspondente a grade que separava o corredor livre vindo da escada e o dos quartos.

- Graças a Deus.

- O quê?

- Pensei que ia demorar com isto. Obrigado Jeff.

- Certo Liam. Agora vá logo. Não quero que suje o corredor. Você me parece aflito.

- Hum.

A minha porta era quase a última do corredor mas eu continuei devagar. Quando finalmente entrei, abaixei as calças e prendi a respiração. Estava colado na base do meu membro e não caiu. Parecia um pedaço de papel dobrado várias vezes. Não estava totalmente empapado de saliva porque parte havia secado no meu corpo e creio também que a mulher teve o cuidado de não molhar muito para que não se desfizesse. Peguei com cuidado e comecei a abrir.

- Mas que merda! O próximo banho é só amanhã de manhã - tinha voltado a respirar e logo precisei me arrastar desajeitadamente, com as calças ainda nos tornozelos, até o buraco da latrina onde botei para fora o café da manhã e alguma bílis.

Quando me recompus olhei para o papel que estava caído ao meu lado. Meus dedos desajeitados começaram a rasgá-lo, mas percebi que eram dois papéis diferentes, o que vinha por fora servira para impedir que o interior se molhasse. Era um bilhete escrito numa caligrafia redonda e até bonita. O estado de confusão em que eu me encontrava não ficou menor ao ler aquelas breves palavras.

                     'NÃO PEÇA AJUDA'

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