A Amaldiçoada Lâmina de Braltar

Gotejava sangue quente sobre o piso imundo de um sagrado templo dourado. A Amaldiçoada Lâmina de Braltar repousava enterrada num decrépito altar negro cujas fissuras emanavam o Caos Nuclear.

A Cavaleira Yeniffer caiu de joelhos, com um buraco no peito que despejou o rio vermelho sobre a armadura de prata. Estava entorpecida pelos fétidos e repulsivos fluídos e odores exalados pelos Nefastos, responsáveis pelos estridentes gritos de puro terror proferidos pelos desesperados habitantes da condenada Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas.

Não há palavras, textos e imagens ou pinturas capazes de contarem sobre os Horrores que despencaram sobre Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, pois não são os Nefastos um antigo mal desperto na Terra em Vigília ou Onírica, ou um mal Ancestral vindo dos confins do Cosmo que vaga por incontáveis Galáxias como os Antigos Deuses, tampouco os seus sucessores. São algo além da compreensão de um deus criador, pois este é um mal recém-nascido, germinado pela corrupção em chamas ardentes da fúria Cósmica.

Erguiam-se gigantescas nuvens de poeira nocivas, pois eram demolidas as Sagradas construções de mármore como se fossem reles brinquedos. E latejava o odioso som das passadas rápidas, os murmúrios ininteligíveis e os gasganeios provindos das jovens aberrações.

Mas ainda restava Yeniffer, que, mesmo gravemente ferida, ergueu-se e galgou passos vacilantes, aprofundando-se num caminho sem volta, rumando ao encontro do brilho cor de sangue daquele artefato maldito. E sobre elapairou o medo, o temor e o horror, pois enfim estava cara a cara com o altar fissurado. E, no reflexo da Amaldiçoada Lâmina de Braltar, viu o desespero incrustado no seu lido rosto de pele negra, na beleza de seus longos cachos manchados pelo mórbido e tênue brilho do sangue humano. E, no castanho dos seus olhos, testemunhou a vida abadonar-lhe lentamente, pois esta era indiferente ao seu desejo de sobreviver e vencer aquele caos terreno.

Então Yeniffer soube que, assim como Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, estava condenada; e a sua sentença era o que mais aterrorizava qualquer humano, fosse este bom ou mau, apático ou empático, com ou sem humanidade: presenciaria a destruição de Thalarion, que com o seu esforço ajudara a erguer, que jurara eternamente proteger e amar acima de tudo, que, sob o olhar atento de um alto sacerdote, compartilhara parte do seu sangue para que a sorte trouxesse as suas bênçãos, e entregara a sua própria alma para a execução do complexo ritual responsável pela criação do artefato cuja força era suprema.

Ou, então, poderia sacrificar toda a sua humanidade e descanso eterno para salvar Thalarion.

"Que eu seja eliminada pela minha deusa quando isto acabar…"

Enfim a sua mão trilhou um caminho profano e tocou o punho da Amaldiçoada Lâmina de Braltar. E Yeniffer teve o mais horrendo dos vislumbres; descobriu o que há por de trás do poder de tal artefato. Mas não enxergou isto com seus olhos, visto que tal visão romperia a bolha da ignorância que protege a mente humana do enlouquecedor conhecimento Cósmico. Foi, portanto, através de outros sentidos que ela soube ao que iria se curvar e se entregar neste iminente destino selado. O seu corpo estremeceu com a mera alusão de tal presença, e apenas esta alusão bastou para que um sabor bolorento devorasse o seu paladar e o pútrido odor lhe destruísse o olfato; toda a sensibilidade corporal pareceu se perder e, em meio a tantos horrores, foi o último que fez Yeniffer desejar deixar de existir, pois uma sonoridade vil e incompreensível, capaz de distorcer o próprio vácuo do espaço e se fazer propagar à sua própria maneira, retumbou em pura loucura como um milhão de trombetas malditas nos tímpanos dela. Neste momento ela soube da perturbadora e inigualável existência profana que no centro do Universo habita e é a razão de sua existência: o Sultão Demônio Azathoth, que rói faminto e amorfo em seu sono eterno.

E o minúsculo fragmento do Caos Nuclear infundindo naquela espada se apossou do corpo de Yeniffer e fez dela a sua mensageira. Ao removê-lo do altar, emergiu da Amaldiçoada Lâmina de Braltar a fumegante luz vermelha que transcendeu o templo dourado e brilhou tão forte quanto uma estrela em ascensão.

E, pela primeira e única vez, os Nefastos se viram desafiados por um novo Horror. Eles se ergueram com os seus corpos gigantescos, respondendo ao chamado da nova batalha, arrastaram-se pelos detritos com patas tentaculares e rasparam as infinitas garras oblíquas na terra, e as bocas deformadas, ansiosas por um novo sabor, gotejaram aquela saliva podre.

E o que outrora fora Yeniffer brandiu a Amaldiçoada Lâmina de Braltar e lançou ao mundo Onírico um novo existir: a vívida Nebulosa Vermelha, que em segundos engoliu Thalarion e os Nefastos e seguiu pelos mares, terras e céus, devorando tudo aquilo que cruzava o seu caminho, e, antes que se pudesse ao menos perceber, engoliu a desconhecida Kadath, e se estendeu através do mundo em Vigília e o consumiu com todos os seus deuses adormecidos. E, de um momento para outro, a assombrosa Nebulosa Vermelha rumou adiante pelo Espaço Sideral.

Não é possível datar o tempo nem o dia em que Yeniffer despertou.

Dia sombrio.

O Mundo — o que restara dele — era uma desolação rochosa e aparentemente desprovida de qualquer tipo de vida. Havia um panorama cinzento com montanhas aqui e ali, completamente retorcidas e com profundas fissuras. Erguia-se um mar de poeira a cada passo dado pela nua mulher.

O mesmo buraco em seu peito ali permaneceu. Sua mão e antebraço direito adotaram um aspecto carbonizado, embora se movesse normalmente. Fosse o seu triste e confuso olhar ao Norte ou Sul, ao Leste ou Oeste, nada via além da assustadora desolação. Então olhou para os céus, em busca de conforto, e se apavorou. O céu fora horrivelmente destruído e nada restara além da infinita escuridão do Espaço pontilhado por bilhões de estrelas.

De repente, ela se deu conta da incapacidade de sentir qualquer odor, que o paladar também se perdera, e na audição notou um constante zumbido.

Viu-se na completa solidão.

Deste modo, continuou a caminhar tristemente, com o balançar seco do seu cabelo já sem aquele glorioso brilho de outrora.

Estava ansiosa para entender o que diabos ocorre, mas temia encarar a verdade.

Passou-se muito tempo além do que se pode contar sem o auxílio de um instrumento, e um dia ela viu um homem pálido e nu sentado à beira de um precipício. E com ele foi falar às pressas, pois há tempos ansiava pelo contato humano.

O homem, no entanto, já sabia que Yeniffer chegaria. E contou-lhe, de costas, onde estavam. Esta desolação cinzenta e rochosa é  o que restou da Terra Onírica, murmurou ele, e que ela cairia no vasto espaço caso se aventurasse mais adiante.

"A Amaldiçoada Lâmina de Braltar… sei quem és tu e o que fizeste. Foste enganada, assim como todo o teu povo. Aquela Coisa que a maldita espada libertou destruiu tudo, Yeniffer."

"O que quero dizer?… Não está claro? A Nebulosa Vermelha destruiu tudo, tudo! A Terra Onírica foi reduzida a esta estúpida rocha flutuante, e todos os deuses foram mortos, inclusive Nyarlathotep, o Caos Rastejante, o Grande Cthulhu, Os Antigos; todos eles. Mas não é apenas isto, a Terra em Vigília foi destruída, Yeniffer! Não restou nada, nada!"

Yeniffer se desequilibrou e caiu sentada ao ouvir tais absurdos, tendo consciência da insignificância dos humanos perante até mesmo a mais fraca das Entidades Cósmicas.

Poderia algo, de fato, destruir tais Entidades?

"Como sobrevivemos? Humpf! Não estamos vivos nem mortos, tampouco somos os únicos aqui. Vê aquela montanha ao Leste? Em seus arredores há algumas centenas de pessoas. Pecadores, somos todos pecadores! É deste modo que os Deuses Exteriores nos vêem. Mas não se culpe tanto, recomponha-se… não foste a única que cometera um erro. Todos nós aqui entramos em contato com algum deus, e não foi para alguma prece… alguns aqui, assim como eu, fundiram-se ou com deuses, ou com os filhos destes, e assim permaneceram por muito tempo. Mas… aquela maldita Nebulosa Vermelha nos trouxe de volta."

"Oh, céus! Ali! Ali! Vê? Onde estão os destroços de Júpiter! Olhe com atenção, Yeniffer. Sim, é aquilo… aquela massa negra circundada por um anel cinza… são os Deuses Exteriores… e eles vêm para nos buscar!..."

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