A ALFA
A ALFA
Por: Renata Ávila
CAPÍTULO 1: RESSACA

Constança abriu os olhos e os fechou novamente, a claridade do meio dia era insuportável, como não fechou as janelas na noite anterior, - porque sequer sabia como chegou em casa - toda a luz desta hora do dia entrava pela janela, ou no caso, a parede de vidro do seu apartamento. Praguejou e levantou com a mão na frente dos olhos, cerrou as pesadas cortinas e correu para o banheiro, vomitou o que parecia toda a bebida do mundo. 

Ligou a água quente mais forte do que a fria na banheira grande, parou na frente do espelho sobre a pia e se olhou fazendo uma careta, as olheiras fundas e roxas se misturavam com a maquiagem borrada. Suspirou olhando para seus próprios olhos, um verde escuro e um azul quase transparente.

-Que merda você fez ontem, garota? 

Pegou a escova de dentes e colocou pasta suficiente para três vezes, depois enxaguante bucal, pedaços de carne saíram quando cuspiu, então era isso que estava deixando aquele gosto horrível!

Entrou na banheira e colocou o celular sobre o banco de madeira ao seu lado, ligou com o controle o velho rádio com cd já encaminhado de músicas dos anos 80, acendeu um cigarro que encontrou em uma carteira amassada jogada no canto do banheiro, e fumou deitada na água quente que produzia fumaça em abundância.

Depois de fumar pegou o sabonete e começou a passar em seu corpo, lentamente, estava dolorida, algumas marcas roxas em suas costas e pernas a fizeram lembrar, ao menos em parte, da noite anterior.

Preferia não lembrar, foi caótico, pior do que havia imaginado a princípio. Ao menos o início dela, lembrava que depois de concluir sua missão, foi até uma boate que havia aberto há pouco, entrou, bebeu, dançou, bebeu mais, usou mais algumas coisas, por isso as olheiras fundas... E então tudo era um borrão, algo com gemidos e mordidas leves em seu pescoço, um par de olhos negros profundos, boca carnuda e vermelha. 

Deu de ombros, infelizmente não lembrava de mais nada, mas pareceu bom. O celular tocou interrompendo suas lembranças, olhou a tela piscando e revirou os olhos.

-Fala chefe! - Falou pegando mais um cigarro.

-Onde você está? O que aconteceu ontem a noite? - Lucius parecia irritado, sua voz grossa saindo rápido ao telefone. - Procurei você como louco, liguei e você não atendeu! 

-Na verdade eu não sei o que aconteceu. O que você quer?

-O que você acha? Vem logo pra cá!

-Chego em uma hora, antes disso será impossível.

-Mas por que?

-Por que estou tomando banho, preciso comer, e ficar apresentável para meu trabalho importantíssimo. - Caprichou no deboche.

-Espero você em meia hora, se não aparecer, eu irei te buscar.

-Ah… Isso é uma promessa? - Ouviu o rosnado de raiva do outro lado e depois o silêncio, conseguiu irritar ele, já era um bom início de dia.

Saiu da banheira e andou molhada pela casa, escolheu uma roupa e abriu a sacada para fumar mais um cigarro, enquanto tomava uma caneca grande de café, mas não se vestiu antes disso, queria sentir o frio do inverno, ele ajudaria a acordar. Respirou o ar gelado enchendo os pulmões, sua pele se arrepiou e ela ergueu a cabeça aproveitando. Alguns flocos de neve caiam tranquilos sobre toda a cidade. Colocou óculos escuros e observou as pessoas passando na calçada, era hora do almoço e as ruas da grande cidade ficavam apinhadas de gente. Sentiu falta de sua pequena cidade, os campos imensos e vazios onde corria quando era criança, afastou as lembranças e entrou para se vestir.

Colocou um casaco longo de couro sobre a calça jeans e a regata fina que usava, vestiu um gorro de lã e cachecol, não que fosse necessário, mas era melhor não chamar atenção para o fato de não sentir o frio de temperaturas negativas.

Colocou uma pistola na cintura e uma faca no bolso interno do casaco, pegou cigarros na gaveta de seu closet e saiu apressada, óbvio que estaria atrasada, mas isso não era exatamente um problema, não tinha seu atual chefe em alta conta, costumava o desafiar sempre que podia. 

Foi até a garagem e pegou seu carro, um Impala vermelho 1960. Dirigia sem paciência no centro da cidade, movimento de pedestres e carros andando lentamente. Quando chegou na rodovia, acelerou e ligou o rádio, aumentou o volume e cantou junto com Mick Jagger a canção sobre satisfação, ou a falta dela.

Estacionou na mansão antiga e imponente, beijou a manobrista no rosto e trocou algumas palavras, entrando logo depois.

-Ele já perguntou por você mil vezes! - Hanna a olhou falando baixo e de forma apressada, a levando com uma mão nas costas pelo corredor longo cheio de seguranças. Era agitada, ansiosa como poucas de sua espécie, tinha mãos grandes e longos cabelos loiros que desciam em ondas sobre seu corpo magro e delicado. - E você de papo com a Maria!

-Calma meu bem, ele late alto, mas não dá conta de me morder. - Enquanto caminhava acenava para os seguranças e acendia um cigarro. - Agora por favor, faça uma coisa importante por mim, sim? - Levantou os óculos de sol a olhando enquanto piscava um olho.

-Credo! O que você fez ontem a noite?

-Se descobrir me avisa, eu só me lembro que foi bom, mas nada mais. Por favor? - Juntou as mãos em uma súplica muda.

-Sim, eu já peço para servir café para você. E não se esqueça da festa no final de semana, nessa você precisa comparecer.

-Apenas me dê café, não seja malvada falando de festas de clãs, por favor. - Fez um biquinho fechando os olhos.

-Eu vou te dar café, pare de fazer manha.

-Você é a melhor! - Sorriu e entrou sem bater na sala do chefe. - Atrapalho?

Ele estava sem camisa, as tatuagens - inclusive a que representava seu nome, escondida no meio das outras - cobriam quase toda a pele exposta, e aumentavam os músculos definidos dos braços e abdômen. Tinha cabelos curtos, um leve moicano que o deixava ainda mais alto do que era, e sobrancelhas grossas, olhos castanhos brilhantes, neste momento, eles brilhavam de raiva. Estava bebendo um copo grande de vitamina, em pé olhando pela janela, viu quando Constança entrou, procurou não se irritar muito com a demora dela, conversando com funcionárias e andando lentamente. Se virou a encarando muito sério, largou o copo sobre a mesa e andou até ela, finalmente liberou sua raiva. As mãos se tornando maiores e o ganido alto quando se aproximou.

-Onde você estava ontem a noite!?

Ela também foi para cima dele, havia tirado o casaco e suas mãos em garra na altura dos ombros dele o fizeram entender que não deveria continuar.

-Não é da sua conta!

-Não me provoque Constança, você não imagina do que eu sou capaz!

-E do que você é capaz afinal? - Parou a centímetros dele.

Damian se virou e sentou atrás da grande mesa, não brigaria com ela, e se continuasse perto daquela forma, não sabia o que poderia fazer. Ela viu que estava com vantagem, resolveu sentar também, apagou o cigarro e o olhou por trás dos óculos.

-Você pode ao menos tirar essa coisa para que eu saiba que está me olhando?

-Tá vendo Lucius, por isso eu me cansei de você, fica querendo atenção a toda hora, era como ter uma criança por perto. - Sorriu e olhou para a porta, ele não tinha ouvido os passos da menina da copa, se aproximando com um grande copo térmico de café forte. - Ah linda! Você nem imagina o quanto eu queria te beijar agora, mas em respeito a você, e seu trabalho, não farei isso.

-Então passa depois na cozinha! - Tatiana a olhou rindo e saiu da sala apressada quando viu a expressão do chefe.

-O que você quer, Lucius? Pela histeria no telefone pensei que ia chegar e me inteirar do fim do mundo iminente, você gritava um pouco desesperado me pedindo para vir logo! Já fazem cinco minutos que entrei e você ainda não me disse nada de importante, ficou apenas tentando descobrir o que eu fiz ontem a noite, seu fofoqueiro.

-E o que você fez ontem a noite? - A olhou como quem sabe um segredo.

-Não que seja da sua conta, mas mesmo que quisesse não te diria, eu não lembro. - Sorriu bebendo um gole do café. - Só sei que houveram gritos e gemidos.

Ele a olhou por um tempo, sacudiu a cabeça negativamente, mordeu o lábio grosso e o umedeceu.

-Fico feliz que você não tenha feito intencionalmente, já é alguma coisa.

-Tá falando do que?

-Você ficou com o herdeiro! - Como ela não respondeu, ele continuou tranquilo, saboreando o choque estampado na metade do rosto que aparecia, e imaginando os olhos arregalados por baixo dos óculos. - Aquele de quem você corria como doida enquanto era mais nova, lembra? O filho do Dragão, seu prometido…

-Mentira! Fiquei com um cara qualquer, estava bêbada, usei umas coisas estranhas, mas eu saberia se fosse ele.

-Como você saberia? Jamais quis encontrá-lo, faltava às reuniões das famílias, dizia que não queria saber das tradições e virava noites bebendo para que não estivesse apresentável nas ocasiões em que ele estava por perto. Eu me lembro, porque participei de muitas festas suas, inclusive virei seu namorado para que o risco de incidente diplomático impedisse sua mãe e a dele de continuar as negociações.

-Você está mentindo, é despeito, porque eu segui em frente, saio e me divirto, com estranhos… E você precisa se comportar, como o bom prometido que é.

-Não é engraçado? Você, dormindo com o cara com quem deveria casar, mas que dispensou, destruindo relações com nossos aliados? Eu acho engraçado. Se sua mãe a visse agora, não sei o que ela diria.

Ela saltou sobre a mesa atirando o copo de café contra uma parede, segurou ele pelo pescoço com força.

-Não ouse, entendeu? Não ouse tocar no nome da minha mãe seu otário!

-Tudo bem, me desculpe, eu não quis fazer isso. - Ergueu os braços sério, errou ao falar da mãe dela. Passou uma mão em seu rosto com carinho, e enrolou os dedos em seus cabelos, como fazia quando eram apaixonados. Olhou os olhos bonitos dela e tudo voltou, toda paixão e desejo, ela o perturbava, segurou com força o rosto, ainda com os dedos enrolados nos cabelos.

-Tá, eu sei que não foi por mal. - Se afastou dele e procurou o copo de café, juntou do chão e bebeu o restante de uma só vez. - Era só para isso que você queria me ver?

Ele a olhou por um tempo, sem deboche, raiva e nada mais além das lembranças do passado.

-Vai falar? - Acendeu um cigarro e foi até a janela, apenas para sair do campo de visão dele.

-Não, eu não quero falar agora… - A empurrou contra o vidro segurando sua cintura, ela o olhou de lado, ele sorriu e se aproximou, recuou antes do beijo e ela foi para frente. Ele alargou o sorriso. - Você quer, não quer?

-Não! - Se aproximou dele e apertou os olhos com raiva. - Me solta e veste uma camisa, já provou seu ponto, é gostoso e quando casar, em breve, será um marido gostoso, ponto final.

Ele se afastou e sentou novamente, ela tinha razão, não poderiam. Mas como queria voltar no tempo, ter a coragem dela, recusar a obrigação.

-Como você sabe? - Constança se deu conta, ele não fazia ideia de onde ela estava. Ao menos não deveria fazer. - Está me espionando por acaso?

-Imagino o tamanho dessa ressaca… - Sorriu e apontou com o queixo para o celular que ela havia deixado sobre sua mesa ao sentar. 

Ela pegou o aparelho com a testa franzida, só agora se dava conta, era diferente de seu celular, correu o dedo na tela e viu a foto de um homem bonito, cabelos negros compridos e ondulados, boca vermelha e carnuda, olhos negros profundos. 

-Eu liguei para você, e qual não foi minha surpresa ao ouvir uma voz conhecida, mas que, definitivamente, não deveria estar atendendo seu telefone. Falei que precisava falar com minha funcionária, e ele fez o favor de passar seu número de telefone, dizendo que vocês estavam muito loucos, e que deveriam ter trocado os aparelhos.

-Ele sabe meu nome? - Ela fechou os olhos, xingando internamente.

-Sabe que é Constança, mas não faz ideia de quem você é, ao menos por enquanto…

-Tudo bem, você pode m****r alguém fazer a troca, ele não vai saber quem eu sou, talvez uma das meninas com o cabelo parecido com o meu, mesma estatura. - Mordeu o lábio pensando - A Jackie! Ela e eu combinamos algumas características, e temos o cabelo descolorido, com raiz preta, as tatuagens são em maior quantidade em mim, mas ela também tem…

-Não será possível! - A interrompeu sério.

-Não faz isso comigo Lucius, você sabe a merda que pode dar, por favor, não é o momento pra me castigar.

-Se pudesse, eu faria isso. Na realidade disse que em breve um de meus meninos levaria o celular para ele. Mas ele não quis, disse que a aguardava em uma cafeteria na rua 15. Você deveria ligar para ele antes de ir, quer vê-la novamente.

-Mas que porra! - Levantou com raiva e andou de um lado para o outro. - Vou dizer que estou em um trabalho, quando ligar, e que enviarei alguém para fazer a troca, se ele ainda não sabe quem eu sou, não haverá desconfiança.

-Você não vai prejudicar nossas relações, já bem frágeis graças a sua rebeldia, novamente. Ele me disse que queria que você fosse encontrar com ele, se estiver trabalhando é porque eu a enviei, você entende que ele vai achar ruim, e pode retaliar? Eles são sensíveis quanto a ofensas, e ele está assumindo os negócios, a mãe entregará tudo em breve.

-Eu não sou tão boa assim Lucius, que causaria um incidente diplomático depois de uma noite de maluquice, ele não está apaixonado nem nada do tipo. Qual é, eu não posso, se ele quiser conversar, saber meu sobrenome…

-Ligue para ele e diga que vai enviar alguém, mas se ele quiser ver você, você vai até ele. Eu não estou pedindo Constança! - Ele estava sério, ainda era seu chefe, ela precisava de um mínimo de obediência, ou causaria mais incidentes, agora entre sua família e a dele. - Quando voltar, vá ao armazém e coordene a entrega dessa noite, preciso de você nessa. E tente não matar os clientes dessa vez sim, ontem a noite foi exagero, eu disse apenas alguns, e vocês acabaram com todos!

Ela mostrou o dedo do meio para ele e foi até a porta com raiva, não se despediu e não olhou para mais ninguém, seu frágil bom humor já a havia abandonado. Entrou no carro e discou seu número, depois apagaria para que ele não tivesse possibilidade de contato. Chamou apenas uma vez, e uma voz bonita de barítono atendeu, parecia animado.

-Aguardava ansiosamente sua ligação!

-Então, meu chefe me disse que você estará em um café na 15, preciso terminar um trabalho, vou enviar uma de minhas meninas para fazer a troca.

-Eu não posso entregar seu celular, sua propriedade, para um estranho…

-Não será um estranho, eu autorizo a entrega.

-Constança, você sabe que em nosso mundo, esse mundo com um quê de magia, outro de crime, as precauções são muito importantes, eu jamais arriscaria entregar um telefone que pode ser potencialmente incriminador, para um inimigo disfarçado. - Parecia sorrir enquanto falava. - Você está com medo de me encontrar?

Ela riu, atirando a cabeça para trás, maldito dragão!

-Não, eu estou ocupada, tenho trabalho a fazer, me atrasei e meu chefe não ficou muito feliz com isso, sabe como é. Facilitaria muito para mim, se você pudesse entregar meu celular para uma das minhas meninas, e pegar o seu.

-Espero você no café daqui meia hora, se não for tudo bem, ao menos terei essas fotos incríveis suas, sempre à minha disposição. - Desligou o telefone.

Ela socou o volante do carro, não tinha saída. Mesmo que tenham sido apenas umas pontas de ameaça, nas palavras tranquilas dele, eram suficientes para que entendesse o recado. 

Ligou o carro acelerando e saindo da propriedade, pegou a estrada e não ligou música alguma dessa vez, pensava em como não ser identificada, como fazer a troca o mais rápido possível.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo