Sex Digitī À Beira do Abismo: Um Conto Olímpico Fantástico
Sex Digitī À Beira do Abismo: Um Conto Olímpico Fantástico
Por: R. C. Borges
Sex Digitī À Beira do Abismo: Um Conto Olímpico Fantástico

 Polidactilia é o nome da minha maldição, ou do meu dom. Para muitos isso não é nada além da anomalia causada pela manifestação de um alelo autossômico variável dominante que se expressa na alteração quantitativa anormal dos dedos. Mas para mim, essa alteração também é qualitativa. Afinal, cada um dos meus doze dedos das mãos são perfeitamente funcionais, e é por causa do que eles podiam fazer em harmonia que eu tenho uma história ímpar para contar.

 Minha trajetória de vida não foi linear nem um pouco, por isso não sei nem ao menos contar como fui acabar tocando, por tanto tempo, jazz universitário, que é uma categoria divertida usada para tratar aquilo que faço, somente por uns poucos além de mim mesmo, neste caso, num sobrado condenado pela prefeitura, no bairro da Lapa, frequentado principalmente por jovens, e malucos bizarros inclassificáveis, no centro nervoso da boemia carioca. Então eu vou contar as coisas conforme eu for lembrando, até para que eu mesmo possa conseguir dar sentido ao que se passou comigo recentemente, já que minha vida virou de ponta cabeça tão rápido que foi capaz de dar vertigens até mesmo em mim, completamente desacostumado a qualquer rotina normal para a maioria das pessoas.

 Eu sempre desejei ter uma rotina mais saudável; sonhava ser maestro. Porém, no Brasil é duro sobreviver de arte; da música. Ainda mais sendo chamado de aberração o tempo todo, em todo lugar, até mesmo pelas costas.

 Antes que a gente caia num monte de lamúrias aqui, deixe pensar numa trilha sonora para me representar... sem música sinto que não vou à lugar nenhum. Só é irônico que Another Brick In The Wall seja justamente a primeira canção que me ocorra agora. “Mas por quê?” Acho que talvez porque sempre o que me chamou mais atenção nela, sobretudo vendo o filme, é a parte em que a letra se sincroniza com o gestual prepotente, autoritário da esposa do professor carrasco à mesa, com aquele dedinho neurastênico apontando qualquer coisa banal como se aquilo, o que quer que fosse a diante, tivesse a importância de levar o homem à lua, ou tirar o pai da forca. Ali o gênio do rock progressivo fecha um ciclo perfeito e tenebroso, em que tanto algoz quanto vítima se alternam em ambos os papéis. Longe de explicar algo, ao menos me agarro nesta imagem como uma primeira pista; porta de entrada, ou ponto de partida.

 O que estou tentando dizer, é que quando conheci esta música, eu devia ter uns doze anos de idade, e me sentia sem ter para onde correr. Era perseguido pelas crianças na escola por causa da minha aparência indisfarçável diante da tolerância preguiçosa dos professores que preferiam fingir que não estava acontecendo nada grave ali, enquanto todos os anos batiam na trave minhas tentativas de ser aceito nos mais prestigiados conservatórios de música sempre quando a banca de examinadores lançava seu olhar arregalado indisfarçável para as minhas mãos sobre o piano. A cada nova tentativa de passar para um desses conservatórios que concedem bolsa, cheios de normas de etiqueta e maneirismos pedantes arcaicos, mais ficava evidente que todos ficavam hipnotizados com a droga dos meus doze dedos, ao invés de darem a devida atenção para o que eu estava tocando, ou para droga do meu potencial como candidato. Então eu ficava pensando na droga de relacionamentos que aquelas pessoas poderiam estar arrastando por eras, como psicopatas que se agridem quase até a morte, para serem assim tão maus nos seus trabalhos.

 Claro que, como já falei, isso não explica tudo. É que a minha imaginação não dá conta de explicar por que tive que passar por tanta dificuldade a mais só por ser diferente. Claro que a maioria das pessoas leva uma vida desgraçada mesmo, e ninguém é melhor do que ninguém. Só que também as vezes é inevitável tentar compreender as coisas.

 Finalmente foi quando parei de culpar aos outros, ou a mim mesmo para saber, que afinal descobri o que somente todos os meus dedos podiam fazer juntos com estas mãos de aspecto tão indecente para o olhar dos outros. E se não fosse o jazz, acho que jamais saberia.

 Uma noite, já estava um verdadeiro salseiro no segundo andar, com aquela malta entrando e saindo, subindo e descendo, fumando e bebendo de tudo e mais um pouco, lá pelas tantas, lá estava eu tocando Blowin' the Blues Away no escuro igual um possesso fora de si, o austero e carcomido por fora raríssimo HilLGärtner de parede do início do século vinte – verdadeiro achado após muito tempo de abandono, reformado só por dentro, para disfarçar dos ladrões que pululam, só o suficiente para devolver a sua voz única inconfundível, graças ao saudosismo voluntário e apaixonado de um velho afinador aposentado – quando, de repente, não mais que isso, uma mulher mais velha, de proporções vistosas e muito bem cuidada, entrou no salão vestindo uma espécie de túnica chique até de mais, sentou-se fatal, cabelos castanhos indômitos, sedosos, sobre somente um dos ombros olhando pra mim com aquela carinha lânguida de que ia dar para o primeiro que aparecesse, justamente num dia em que eu já estava acompanhado.

“Cuidado!” Pensei comigo mesmo; ainda outro dia quase poderia ter acabado mal por causa de uma mulher assim mais velha. Nada a fazer; fim de set. Então era melhor ir logo até a morena que colou em mim naquela noite; frequentadora; parecia ser legal até e tudo mais, de vez em quando notava ela na cena, mas tive que dispensar. Como a cidade estava cheia, lotada de turistas lindas, bem mais do que de costume, por causa das olimpíadas, já fazia um tempo, fiquei muito curioso em saber de onde tinha surgido aquela visão dos deuses – não que o sobradinho fosse uma espécie de antro, ia todo tipo de gente, as vezes até celebridades cults iam curtir uma noitada raiz de verdade, com música de verdade na veia. Mas aquela bela mulher certamente se destacava, embora se comportasse como se estivesse no seu elemento, sendo isso exatamente aquilo o que conferia a aura de mistério que pairava sobre ela.

Do you speack portuguese?” Perguntei de chofre.

“O que você falou para a moça? Ela não parece ter ficado muito contente depois disso.” Realmente, vi a garota sair do bar com uma amiga descendo a escada e me parece que iam para outro lugar depois dali, pensei comigo, ao menos fui delicado com ela – a pequena era mesmo uma graça de pessoa.

“Falei para ela que você era alguém muito importante que esperava a muito tempo que viesse me assistir tocar. Mas, afinal, você fala bem minha língua, só que não é daqui. Você parece europeia. Acertei? Gostei do seu sotaque.”

“Acertou. Você além de sedigitus também é alguma espécie de vidente?”

“Acertei?” Fiz aquela minha cara de profissional da noite olhando bem dentro dos olhos dela. Nossa... olhar dentro daqueles olhos era, numa só palavra – épico. Era impossível não querer falar com ela. Mas vidente? “Engraçado – sedigitus – a muito tempo não ouvia essa palavra. Para dizer a verdade, só um professor de história bem velhinho que me chamava de sedigitus, por causa de um poeta romano com o mesmo problema que o meu. Mas essas mãos aqui não parecem assustar você, não é mesmo? Só que não... não sou vidente. Pelo menos nunca tinha sido antes de você.”

 Ela pareceu achar graça, e quando uma dama desacompanhada te sorri, normalmente, isso é um bom indício de que pode valer a pena puxar uma cadeira e se sentar ao lado dela. Ou na frente dela. Porém aquela mulher não era normal. Isto é, naquele lugar ninguém era normal. Mas não se tratava de ser simplesmente encorajado a sentar na mesma mesa que ela o que estava sentindo. Ela me inspirava tomar uma atitude ousada. Como foi exatamente o que fiz sem precisar pedir nenhuma permissão para finalmente me sentar com ela.

 A atmosfera era densa. Além de fumarem no lugar mal ventilado, o que era uma coisa bem subversiva de se fazer nesses tempos caretas que vivemos, ainda por cima acendiam vários incensos, dando ao ar uma aparência quase sólida por causa do tipo de iluminação que se usa no show.

 Lá estava eu, me sentindo um verdadeiro herói perto dela, por motivo algum em particular, sem dizer uma palavra enquanto olhava em seus olhos, sentado bem na sua frente, quando ela disse que era grega e inacreditavelmente começou a puxar um papo completamente surreal comigo.

“você acertou quando disse para a jovem que eu era alguém importante a muito tempo esperada por ti.” Ela continuou para o meu assombro: “você noutro dia tomou um tiro de raspão que te fez até cair para trás, estava com uma mulher casada, você odiava o marido dela desde os dezesseis anos de idade quando desistiu de tentar entrar em demais conservatórios musicais como bolsista – assim como o dele – porque já tinha ficado demasiadamente velho para isso. Ele seria o último presidente de banca a não lhe aprovar por causa do preconceito com a sua condição. Ele disse que seus dedos em excesso o tornavam desajeitado para tocar piano em alto-nível. Ele foi a última pessoa num processo de seleção a te dizer que você nunca poderia ser um virtuose porque todas as peças que existem para piano foram compostas por pessoas de dez dedos para outras pessoas com somente dez dedos aprenderem a tocar. E quando o destino da esposa dele cruzou o seu caminho mais tarde, você gostou de poder usar tudo o que somente estes seus doze maravilhosos dedos perfeitos poderiam fazer para dar a ela, o que ela jamais poderia ter do marido normal dela, o acadêmico erudito respeitável que você foi impedido de querer poder ser um dia, aquele que apesar de tudo, hipocritamente, trata uma pessoa como tu, como mera curiosidade antropológica. Por isso eu pergunto a você, Jacinto, é isso mesmo que você quer ser?”

 Pense numa pessoa estatelada pensando em várias camadas diferentes e independentes entre si examinando ao mesmo tempo cada uma dessas dimensões paralelas de pensamento naquele instante em que a vista fica turva ao olhar para dentro de si, com os músculos do rosto randomicamente buscando procurar de forma estandardizada encontrar quase que por instinto, ou no piloto automático, alguma espécie de sorriso, ou meio sorriso, um quase sorriso que é também pouco mais do que um reflexo lentamente oscilante do todo buscando se ajustar através de cada partícula sua. Esse era eu naquele segundo que durou uma eternidade pensando no que disse aquela estonteante mulher insólita diante de mim. Numa palavra – buguei!

 De fato, eu sempre tentei entrar em um conservatório público pela condição social da minha família, já que sou filho de pai ausente, que saiu de casa quando eu tinha apenas seis anos dizendo que iria substituir os filhos da juventude, e minha mãe sofria dos nervos, afinal qualquer mãe sofreria se tivesse perdido o filho primogênito linchado no meio da rua por ter abusado de um vizinho de três anos, como aconteceu ao meu irmão mais velho, ao menos o único que conheci, por isso mesmo não gosto nem de pensar nisso, que dirá tocar nesse assunto. Eu simplesmente precisava desesperadamente de uma bolsa de estudos para poder aprender em profundidade a teoria musical. Não dava mesmo para fazer um conservatório privado. E depois de ser esnobado em todos, desde pequeno, claro que guardei trauma de processos de seleção até não conseguir pensar nem sequer em vestibular. Para passar como adulto pelos mesmos constrangimentos que passei durante a minha vida toda de músico desde a infância?

 Existem profissões em que dá para separar o que se é, do que se faz; ou a pessoa tem o talento de conseguir não ser o tempo todo aquele tal que se define através da sua vocação, só que nada disso era meu caso. Por isso, desde que me lembro de mim mesmo estava martelando um piano com os dedos, sentindo suas teclas, tocando o piano, experimentando seus pedais, tentando criar minha própria técnica para a posição das minhas mãos, já que nenhuma técnica dos outros se aplicava a mim. Viver sem a música era impossível para mim.

 Se fica feio dizer para esses professores esnobes que eu precisava ter o que comer para melhorar, e apelar e tudo mais, mais feio seria passar fome sabendo tocar, essa era a realidade dura das minhas escolhas; o fato é de que também dificilmente daria para tocar na noite pelo sustento e manter minhas obrigações em dia no nível exigido pelos luminares de uma faculdade pública, tendo que aturar, ainda por cima, o preconceito estrutural institucionalizado – se não por eu ser preto, mas por ser um preto com seis dedos. “Preto e com seis dedos é sacanagem!” Já cansei de ouvir isso.

 Lógico que quando conheci Doroteia, fazendo um bico num restaurante, em que ela tinha ido para ficar só e tomar uns drinks, com ninguém mais além dela me ouvindo tocar, e descobri que ela estava afogando as mágoas justamente por causa de um desses cidadãos de primeira classe que me subestimaram, que haviam me preterido, eu não vi só a massagem no meu ego que era faturar a mulher do cara. Eu vi que um sujeito desses olhava qualquer um de cima para baixo, inclusive aquela coroa boazuda que parecia até que tomava banho de leite de cabra para o marido nem notar direito.

 Eles moravam num prédio baixinho de poucos andares sem porteiro na praça do jóquei, na Gávea. A gente se encontrava algumas vezes por lá mesmo. Só que um dia ele chegou como se fora avisado, portava um trabuco tremendo, como se fosse uma compensação pela sua falta de virilidade. Nem lembro como cheguei em casa. O corno chegou atirando, eu estava de samba-canção azul bebê e meias pretas, estava em pé na cama, deles, me sentindo um homem feliz, tão livre quanto nunca, livre como um pássaro, Doroteia enrolada nos lençóis brancos de cetim só com um de seus seios rosinhas escapulindo de fora, me ouvindo recitar Camões cheio de paixão, e – BANGUE-BANGUE – “Perdeu! Seus vagabundos!!!”

 Meu reflexo de sobrevivência foi de ir me virando num átimo para pular pela janela do jeito que estava, nem pensei, “era primeiro...”. O resto acho que a adrenalina até apaga da memória. Mas quando acordei em casa, com o ombro ferido, com o corpo comprido e magro todo arranhado, dolorido de cima a baixo, cheirando a cachaça da braba, senti como se tivesse mesmo tentado voar como um pássaro e caído com tudo lá de cima da sacada num carro parado, ou coisa que o valha, pisado em cacos de vidro, e dormido por dois dias sem parar. Ficou tudo para trás, mulher, roupas, celular. O Ícaro cor de jambo voou muito alto dessa vez, mas pelo menos esse aqui não morreu ainda.

 Porém, tudo que me passou pela cabeça num segundo só me levava a querer saber de uma coisa, e era que papo todo tinha sido aquele que aquela estranha tinha mandado.

“Você me desculpa, o Rio de Janeiro é mesmo uma pequena aldeia, e todo mundo conhece sempre alguém em comum, por isso, será que eu posso saber o seu nome? Quem falou de mim para você me procurar aqui?”

“Me chamo Calíope. E foi você mesmo que me chamou para vir para cá. Eu tenho certeza de que disso você se lembra. Mas de qualquer forma, eu e minhas irmãs nunca perdemos uma edição dos jogos olímpicos onde quer que aconteça, é tradição de família para nós. Só que dessa vez, nós conversamos muito sobre isso, e decidimos também aproveitar para ajudar você nesta edição dos jogos, seu moço.” Em seguida, se projetou só um pouquinho na minha direção, colocando suavemente uma de suas mãozinhas que estava repousando sobre suas coxas formidáveis, delicadamente cruzadas meio de lado, por sobre as minhas mãos, tão esquisitas, tão vulneravelmente postadas na mesa. Isso foi inesperado. Nenhuma indulgência ou estranhamento havia em seu toque que me desarrumou.

 Ao tocar na minha mão senti uma total atemporalidade oceânica apoderar-se de mim. Memórias e imagens sinestesicamente produziam perfumes e acordes em cascata. Não há palavras que possa descrever isso:

“Oh musas, oh altíssimos gênios, ajuda-me mesmo que com teus mais simples sussurros! Não sou Homero, nem Virgílio, ou Camões tampouco, mas como o Grão-mestre da última flor do lácio fez, me apropriando das suas palavras agora o faço! Aceitem minha humilde libação em sua glória!” A manhã luminosa entrava pela janela aberta entre cortinas de puro linho. Bebia leite fresco e o aspergia contra o raio de sol com minha amante realizada aos meus pés assistindo minha declamação deleitada deitada na cama:

Agora tu, Calíope, me ensina

  O que contou ao Rei o ilustre Gama;

  Inspira imortal canto e voz divina

  Neste peito mortal, que tanto te ama.

  Assim o claro inventor da Medicina,

  De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,

  Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,

  Te negue o amor devido, como soe.”

“Ou que o meu destino me consuma como a chama!”

“Lembrei de tudo.” Eu disse. “Você quer me convencer que é a musa em pessoa? Então, uma musa atendeu minha invocação? Simples assim? Olha bem, só pelo ar que estamos respirando aqui já seria bem mais fácil acreditar que eu estou apenas viajando uma viagem muito doce, e não que estou com Calíope, a primeira das musas. Não leve a mal, você é estonteante e sua presença certamente provoca coisas extraordinárias em mim. Só que musa, aparecendo para um negro deformado, durante as olimpíadas do Rio de Janeiro, em pleno século vinte e um, mais parece até coisa de Realismo Fantástico Latino-Americano, e não estou bem certo de que a minha vida real desse uma estória tão legal. Eu não sou nenhum santinho, sabia? Tem artistas que merecem muito mais do que eu precisando de uma ajuda nesse país.”

“Bom, quem merece mais uma ajuda das musas é quem merece mais ajuda para nós mesmas. Eu entendo seu ponto. Afinal, musas também não são santinhas. A gente nunca admitiria perder uma disputa. Um dos nossos maiores prazeres sempre foi e sempre será castigar a arrogância alheia daqueles que demasiadamente certos de seus talentos excepcionais, ao invés de usá-los para o bem comum e felicidade geral, não conseguem se conter na direção que sempre os leva a tentar tirar vantagem e proveito pessoal em todos os campos da vida o tempo todo. Quando podemos acabar com idiotas assim, nós punimos com satisfação; sejam mortais; sereias; ou ninfas. Transformamos, se quisermos, qualquer um em meias-patacas, e até as mais belas vozes em grasnidos, quer dizer, isto se não lhes arrancarmos as próprias plumas que nós mesmas lhes dermos antes disso. A sua vida real é uma vida devotada para a arte, e em função principalmente da música, nossa razão de estar no mundo. Veja que sem as musas, nem a palavra música existiria. E sem dúvida os poetas antigos eram inspirados por nós após nos invocar. Os poetas acreditavam em nós mesmo quando honravam outros deuses diferentes dos nossos. Mas se é verdade que hoje em dia existem muitos imitadores que apenas emulam aparências sem paixão e ainda ousam falar de nós... desculpe minhas risadas, mas acho isso até muito engraçado... por outro lado, em contraste com esses mesmos vermezinhos desprezíveis que nunca vão compor uma música boa de verdade na vida, quando uma alma completamente apaixonada pela boa música se declara, recorre a nós, assume as consequências desse risco, se de fato tem talento e algum brilho ou valor pessoal, enfim, caso tenhamos todas as condições favoráveis atendidas, aí então, nós somos musas para fazermos exatamente esse tipo de coisa – Inspirar! O que você precisa é encontrar sua peça musical que só alguém com seis dedos possa tocar. Mas não vai ser fácil como um mero estalar de dedos, se é isso que as lendas sobre nós sugerem. A primeira coisa que você precisa fazer, no entanto, é encontrar um amor verdadeiro antes que a pira olímpica seja acesa definitivamente. Sem um amor genuíno ardendo em seu coração, não haverá qualquer inspiração que possamos dar para você. Nós somos musas, nós damos inspiração. Nós não fazemos milagres.”    

“Eu acredito que você seja Calíope. Nenhuma mulher tão majestosa chegaria assim, como você, num lugar que nem esse, falando tudo isso que você disse, se não fosse realmente de origem sobrenatural. Pessoalmente, eu nunca pensei que teria uma experiência assim na vida, embora já tenha ouvido muita gente de respeito dizer que na macumba, por exemplo, ou em centro espírita, as pessoas veem alma de outro mundo e coisa que o valha. Mas nunca fui chegado nisso não. Realmente me empolguei e me deixei levar pela emoção naquele dia que supliquei às musas. Agora, o negócio é o seguinte, eu nunca amei ninguém de arder no meu peito feito pira olímpica, pelo menos não como você disse. Sempre tendi a concordar com a ideia de que todo amor fosse amor-próprio. Quero dizer, que amamos as sensações agradáveis que esse amor produz na gente. Ou melhor, que na verdade a gente ame o desejo, e não o desejado. Assim, não bastasse confrontar toda uma visão de mundo compartilhada por mim minha vida toda, ainda teria que contar com aquilo sobre o qual não tenho o menor controle, que seja alguém me retribuindo esse amor de pira. Pensando nisso, não me entenda mal, não quero ser transformado numa meia-pataca por insistir em fazer perguntas, mas já que você é a musa da poesia épica, por que não me ensinou a escrever um poema épico, antes de mais nada? Pensando bem, quem sabe se, com um poema épico inspirado por você, assim não fosse mais fácil fazer aflorar o bendito mútuo amor ardente?”

“Você é tão irreverente... que engraçadinho é você... ora, ora, meu caro Jacinto, você não percebe o que diz? Antes de mais nada não existe nada. De início, eu parti do princípio de que não seria por meio do ensino da mera técnica métrica poética e do simples esquema rítmico, que, sim, te permitiriam escrever e recitar um poema heroico de forma tonitruante, aquilo que te ajudaria mais na música. Mas, mesmo assim, acabo de te dar uma inspiração, percebe? Vai ver seja só de forma não linear que a inspiração possa descer até você e te iluminar... como me esbaldo quando o hic et nunc da vida vivida se impõe! Desse modo, porque agora não aplicar às frases musicais do seu instrumento, aquilo que do hexâmetro dactílico se aplica aos arranjos de sílabas longas e breves? Já tinha pensado que o próprio nome dessa métrica heroica significa no seu idioma seis medidas na razão do seu dedo, com a primeira falange mais longa e as duas seguintes ficando breves como se deve no meu tipo de verso? É muito fácil! Experimente declamar o Soneto da Fidelidade tão famoso na sua nação – oh tão inspirado por nós foi, oh Vinícius de Morais, poetinha tão fofo – e perceba sua musicalidade característica, principalmente nos tercetos, que mesmo apesar de separados, alegremente rimam como se fossem um sexteto, equilibrando a tragédia do fim de tudo que é bom tendo a chama como medida para o infinito do inquebrantável espírito humano, para o desejo, e para a entrega total da fidelidade. Enxergou como é sutilmente igual em métrica ao trecho de Camões que você declamou naquele dia um instante antes de tomar o tiro? Os acordes são frases. Agora você fará dos seus acordes um poema épico, se encontrar o grande amor. E que...

Tu possas se dizer do amor (que teve):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure

Então daqui por diante, você não vai mais se escudar atrás do mau humor de Nietzsche e suas frustrações amorosas para se esconder do amor atrás de um verniz de niilismo que descasca ao sol. Afinal, ele próprio também disse muito mais acertadamente que aquilo que se faz por amor sempre se faz para além de qualquer limite, seja do bem, ou do mal. Não vamos perder, entretanto, nosso tempo tratando das contradições dele. Vamos tratar das suas; quando você alega não ter amado, está subestimando seus amores juvenis, em primeiro lugar! Isso não é justo. Aliás, eu e minhas irmãs não viemos aqui com ânimo algum de te transformar em coisa alguma. Porque se você não se abrir para o amor em tempo, você já terá sua cota de punição pelos erros que você cometeu na sua pouca vida; que você sabe, não foram poucos. Muito bem! Por ora, vou me despedir com mais uma inspiração para sua conta, moço: se eu estivesse na sua pele, eu iria correndo ouvir um rock de primeira categoria que está rolando agora mesmo no bar do rock que fica aqui pertinho. Você conhece bem. Eu acho que aquele brotinho que estava aqui deve estar lá sozinha, e pensando em você – não sei por quê.”

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