Capítulo 02 

❀ Capítulo 02 

O vento flamulava as velas azuis do navio voador da casa real. Kiadorov Ras estava no deck, sentindo a ventania marítima em seu rosto recém-barbeado. O agora alto e forte homem de ombros largos estava parecendo até um nobre agora, sem as vestes dos monges e com a típica armadura de botas altas até o joelho feito de escamas de criaturas marítimas. O traje de marinheiro azul caía bem com seus olhos e os cabelos raspados em um undercut estavam presos para trás em um rabo de cavalo.

Manter os cabelos longos era um ato de respeito para com seu corpo e portanto, seus ancestrais, mas Kiadorov Ras havia ofertado parte de seus cabelos em respeito aos Deuses das Águas por permitirem que ele voltasse para os braços de suas família, uma promessa que fez ainda quando subiu a grandiosa montanha, cinco anos atrás para ser disciplinado.

— O que está fazendo, Su-Ras? — Sua irmã de cabelos brancos, Nin, apoiou os braços na madeira clara do navio e olhou para o irmão de que tanto sentia falta. O sol já estava brilhando forte no céu e daquela distância era possível ver os cumes brancos das Montanhas Sagradas, na Terra Gélida.

Eles já sentiam a queda na temperatura e haviam trocado suas vestes para um uniforme azul escuro com bordados prateados. O manto comprido de pele de raposa vermelha cobria seus ombros.

— Pensando em que nome vou querer usar quando passar no Pontífice. — Deu um sorriso de canto e girou, apoiando os cotovelos para trás. A irmã estreitou os olhos conhecendo aquele tipo de expressão que precedia alguma travessura, mas não teve tempo de repreendê-lo. — Que tipo de poder acha que os Deuses vão me dar?

Su-Nin demorou um pouco observando o irmão. Antes teria a resposta na ponta da língua: tempestade, maremotos, furacões, mas seu Su-Ras parecia outro, brando e ao mesmo tempo revolto, como águas turbulentas de ondas prestes a rachar. Seu coração parecia ferido.

— Não sei, mas eu espero que o meu seja muito poderoso! — Nin ergueu o punho cerrado para frente. — Quero me tornar forte o suficiente para ser a futura General do Exército de Cahyst, então, tenho que ser muito poderosa.

— Você, General? — Ras deu uma risada que tirou o centro de sua irmã. Ela piscou várias vezes ofendida. Estava acostumada com garotos achando um feito impossível para uma garota como ela, mas Nin preferia usar calças de batalha em vez de vestidos longos e apertados nas pernas. — Você será a Rainha de Cahyst, minha irmã.

— Duvido. Papai nunca permitiria que eu liderasse a cidade! Você sabe como é, apesar de termos a mesma idade, ele sempre te beneficiou por ser o homem. — E ela falava isso com a maior face de certeza intransponível.

— Beneficiou? Eu e você temos uma ideia totalmente diferente do que é beneficiar. — Ras revirou os olhos verdes como as águas distantes lá embaixo. — Papai me detesta, está sempre me castigando, me mandou para longe por cinco anos!

— Sim, é verdade, Au-Dano fez isso, mas por um bom motivo. — Nin deslizou as mãos para os lados e depois deu tapinhas no ombro do irmão. — Você é rebelde, apegado aos seus valores. Mas para ser um rei, tem que ir pelas regras dos Cinco Clãs, irmãozinho. Papai precisa mesmo te doutrinar.

— Certo, disciplina, controle emocional, bla bla bla, eu escutei sobre isso todos os dias em que estive nas montanhas com Ysereth Jutan-Puna.

— O mestre das Colinas da Chuva deve ser mais sorridente que o papai, ouvi dizer que ele nasceu com um sorriso no rosto. — Ela queria dizer que o mestre poderia ser mais brando de se lidar do que o rígido Rei de Cahyst.

— Eu sempre pensei que era por causa das rugas... — Ras coçou o queixo, lembrando da face do Mestre das Colinas da Chuva, o homem velho de cabelos bem brancos e olhos apertados. — Ele é o Sacerdote Supremo das Águas, deve ter motivos para sorrir, nada abala seus sentimentos.

— Olhe, Su-Ras, veja! — Nin já não o escutava, olhando para a orla gelada onde os icebergs se estendiam. — Não somos os primeiros a chegar! Papai ficará uma fera!

Kiadorov Ras olhou para onde o dedo em riste de sua irmã apontava. De fato, havia uma comitiva que estava ali há mais tempo. Búfalos voadores puxavam as carroças de madeira, de onde trepadeiras desciam formando uma bela cortina de folhagens verdes e floridas.

— É o Clã Ardonaw. — Reconheceu rapidamente a bandeira verde e dourada. Além disso, eles eram conhecidos por serem fortes domadores da floresta.

— Eles ficam bem perto daqui, não ficam? — Kiadorov Nin questionou.

— Sim, mais para o oeste. — Ras girou, apoiando o queixo na mão e observando as belezas com as quais aquelas carroças haviam sido construídas. — Eles são domadores da floresta, seus poderes são relacionados à terra, flora e fauna.

— Impressionante. — Os olhos claros se Su-Nin brilharam de exaltação. — De onde viemos só há pedras e lagos, confesso que estou impressionada com algo tão... Tão verde e vermelho.

— O Clã Ardonaw cultiva flores e ervas muito importantes, como as quais fabricam remédios e pílulas mágicas para todos os tipos de coisa. Há um tipo de flor sagrada capaz de ressuscitar pessoas.

— E como você sabe de tudo isso? — Kiadorov Nin quase não reconheceu seu irmão, tão sábio e letrado!

— O Mestre das Colinas da Chuva me fazia ler por horas... Bem, deixa para lá. — Os seus olhos verdes ficaram sombrios e ele não queria lembrar daqueles dias.

Apesar da leitura ser uma atividade agradável para as pessoas comuns, o simples fato de ficar parado e sentado em um só lugar era um castigo enorme para Kiadorov Ras. Ele não queria lembrar de quantas vezes foi torturado por desobediência e ficou em uma biblioteca sem poder ver a luz do dia, transcrevendo os manuscritos místicos ou a história dos Cinco Clãs.

Agora, como sua irmã bem notou, ele era versado para sua idade, mas a rudeza em seu coração continuava a mesma de antes de subir os picos chuvosos... Ou talvez até pior.

— Não é possível. — A voz de Au-Dano soou forte. Ele não estava satisfeito com sua luneta dourada recostada no olho enrugado e de cor azul. — Esses desgraçados! Como ousam chegar primeiro do que o Fabuloso Clã dos Ares Kiadorov!

Kiadorov Dano-Are era um homem competitivo, como todos bem sabiam. Perder em jogos de tabuleiro não era algo que gostasse de fazer. Quando se tornou rei, proibiu seus oponentes de ganhar, nem mesmo os élderes ou os generais de Cahyst tentariam vencer dele. Agora ele estava desacostumado a perder e seu sangue fervia com a raiva.

O navio voador da família real pousou perto das águas e logo todos desembarcaram. Enquanto os caixotes eram carregados para dentro de Noord'Laren, a cidade gélida mais conhecida como Refúgio da Neve, Kiadorov Dano-Are ficou olhando para as carruagens de madeira e os grandes búfalos com desgosto.

Os empregados de Noord'Laren todos usavam roupas claras, de um azul celeste desbotado, como o céu naquela região tão alta e montanhosa que perdia a cor. As roupas deles, entretanto, pareciam quentes e agradáveis, apesar de finas e esvoaçantes, muito melhor do que os pesados mantos de pele que o Clã Kiadarov usava ao redor do corpo.

Era uma visão dual que os faziam parecer bárbaros matadores de bestas contra sacerdotes puros e tecedores de lã.

— Sejam bem-vindos — disse um homem esguio de cabelos trançados no topo da cabeça. Ele não era ninguém menos que o Criado Principal da Casa Real Benent. — Meu mestre, Benent Haude-Are os convida para entrar. O leste do palácio foi separado para receber o Clã Kiadorov.

— Agradeça a Benent Haude-Are por mim. — Kiadorov Dano-Are fez o ato de Boa Fé para o criado, mas não exatamente para ele em si e sim, para a menção do nome do rei daquela fortaleza das neves. — A propósito, o Clã de Ardonaw chegou primeiro que nós? Quantos minutos de diferença?

— Fazem algumas horas que o Clã de Ardonaw está dentro das paredes do Refúgio das Neves! — O criado disse com um sorriso, mas ao ver a carranca no rosto do Rei de Cahyst, se encolheu. — O senhor queria ser o primeiro a chegar?

— Saí hoje pela manhã achando que eu ainda assim alcançaria todos a tempo, estou surpreso que calculei mal a velocidade dos búfalos, é só. — O homem musculoso e com um manto de pele de raposa nos ombros largos fez um muxoxo de derrota. — Devo cumprimentar Ardonaw Ganto-Are por sua velocidade impressionante das florestas.

— Na verdade eu que devo cumprimentá-lo, Kiadorov Dano-Are! — Um homem de armadura reluzente apareceu. Ele tinha uma espada em sua cintura, onde o cinto exibia o Selo da Nobreza em forma de uma folha de três pontas da cor de bordo. — Você levou algumas horas atravessando o ar e eu viajei por cerca de dois dias para chegar aqui. Venha, vamos tomar um licor de folhas sagradas e você poderá se vangloriar por ainda ser o navegante mais rápido de toda Varux!

— É um prazer vê-lo Ardonaw Ganto-Are. — E o homem robusto de cabelos trançados e barba grande cumprimentou o amigo. — Fazem pelo menos cinco anos que não o vejo, como está a família?

— Grande! — Os homens de cumprimentaram ao mesmo tempo em um Ato de Boa Fé e caminharam lado a lado para dentro dos arcos de pedra branca que compunham a belíssima cidade de Noord'Laren com Su-Nin e Su-Ras seguindo-os em silêncio. — Meus três filhos mais velhos vieram passar pelo Pontífice, você só trouxe dois?

— Os gêmeos, não tive mais, Ohel-Lei e Ohel-Sat ainda são pequenos, um tem treze e o outro, oito.

— Então não quis uma Yen(1)? O senhor é mesmo apaixonado por sua esposa!

— Você bem sabe, já que ela é sua irmã. — O homem mais robusto deu uma risada agradável.

Era comum que os reis de todos os Clãs tivessem uma esposa principal e pelo menos duas outras consortes, embora pudessem ter até três. As chamadas "Yen" se sentiam honradas por serem escolhidas para dar segundos e terceiros filhos aos Reis, afinal, seus queridos bebês eram tão importantes quando os filhos das esposas principais e poderiam ascender ao trono com o mesmo direito, mas Kiadorov Dano-Are não tinha olhos para nenhuma outra pessoa que não fosse sua preciosa Lelei.

— De fato, de fato! — O rei Ardonaw apenas deu um sorriso.

— Fiquei sabendo que sua quarta esposa teve uma menina. Como ela está?

— A pequena Ohel Iss é sorridente e saudável. Além de muito amada pelos irmãos.

— Uma bênção de fato. — Dano-Are concordou com um aceno de cabeça. — A propósito, preciso falar com Benent Haude-Are ainda essa noite, então beberei um pouco. Nel Ras e Nel Nin, por favor, dirijam-se para os aposentos, vou conversar com meu amigo e cunhado agora.

— Sim, Au-Dano. — Kiadorov Nin foi a única que respondeu.

Quando os dois grandes homens adentraram pelo arco que levava para a Ala Nordeste, os dois irmão se entreolharam. Obediente, Kiadorov Nin pegou o caminho que levaria para a Ala Leste, mas Kiadorov Ras...

— Onde vai, Su-Ras?

— Dar uma volta, quero conhecer a famosa Noord'Laren! Quando terei outra oportunidade.

— Eu não vou impedir, mas certifique-se de que estará em casa antes de Au-Dano voltar, promete?

— Claro Su-Nin, não se preocupe. — O sorriso de Kiadorov Ras se iluminou no rosto.

(continua)

(1) Yen = Título dado a uma concubina do Rei, ela deve ter um filho com ele e normalmente esse é um lugar de honra. Não significa que são apaixonados, mas pode acontecer.

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Notas da Autora:

Obrigada por sua leitura! Me deixem saber o que estão achando da história! Eu sei que está bem no comecinho, mas eu prometo que fica melhor.

Um beijo e até a próxima!

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