Capítulo 03 - Armação

Capítulo 03 - Armação

Existir não é um processo fácil. Não se trata apenas de ter um corpo e uma mente sã, mas de comportamentos e hábitos que fazem parte de um dia a dia completo e até mesmo do que as pessoas pensam de nós.

Mal tinha começado, mas eu estava exausta de existir.

Depois de ser ameaçada de morte apenas por não ter memória, ficar horas em pé no centro da sala de braços esticados para fazerem minhas roupas, Zane disse que tinha uma agenda de reuniões para cumprir e que eu não deveria sair do quarto sem ele me chamar.

Vim para o quarto - um belo quarto, por sinal - esperar que ele me chamasse de novo, sem permissão para deixar os meus aposentos. Quando percebi minha barriga roncando, era fome. Nem precisei dizer nada, trouxeram uma cesta de frutas doces e pães quentinhos que soltavam uma fragrância diferente no ar, uma bandeja de suco rosado, água e bolinhos doces.

Também não tenho memórias de comer nada, mas adorei boa parte das coisas que trouxeram, sabendo reconhecer os nomes de todas elas. Esquisito, não é?

O que eu não lembrava era do cheiro e do gosto, mais um indício de que eu tinha muita informação, mas não conseguia processá-la extra-sensorialmente. Por não ter tido um corpo antes.

Agora estou deitada por cima do macio edredom azul escuro da cama que será minha, em um dos muitos milhares de quartos daquela casa tão grande que se parece com um prédio de muitos andares. O quarto que foi separado para mim tem decoração genérica e ar de algo temporário, mas as paredes azuis claras são lindas e inspiradoras.

No centro, em cima da cama, há um quadro de dois cavalos como eu imagino que cavalos se abraçam e beijam, com o rosto junto. As prateleiras vazias com poucos objetos de decoração, há um vaso com orquídeas de verdade que parecem subir pela parede como se a escalasse, uma poltrona azul cinzenta e um tapete de pele sintética branca. Sei que é sintética, mesmo sem saber como posso ver isso. A janela vai do teto ao chão, sem varanda, com uma linda vista para as montanhas de cume alto e cheias de neve.

Claro que depois de ouvir que nossos inimigos atacam a noite, eu não ia fechar aquela janela nunca na minha vida.

Com um bloco de notas que estava em cima de uma escrivaninha cheia de lápis e canetas coloridas, anotei o que eu chamei de um memoir. Queria marcar as sensações que me acometiam, por exemplo, o leve borbulhar na língua quando o suco a tocava! Eram sensações que passavam tão depressa que escapavam da minha mente. A minha memória não era precisa, não mais, e parecia selecionar apenas poucas coisas e ficar voltando a ela todos os momentos.

Por exemplo, se eu inspirava fundo, o cheiro de pó e produtos de limpeza, ou mesmo da comida, dava lugar ao cheiro doce dos cabelos de Zane. Outra coisa esquisita era eu ficar revendo na mente, como um filme, seu sorriso fofo.

Eu hein! Parecia que eu estava com um defeito, pensando apenas as mesmas coisas de novo e de novo, como um disco corrompido!

Depois de ficar muito tempo deitada o meu corpo entorpeceu e comecei a sentir cansaço, bocejar, a temperatura pareceu cair eriçando os pelos de meus braços. Fui até o armário e troquei a jaqueta por uma blusa de trama grossa.

Aliás meu armário é monocromático. Preto, cinza, vermelho e branco. Dourado é uma cor destinada apenas para a família real governante e as outras cores para os outros brasões, que eles chamam de Casas do Conselho.

O brasão Blonard tem como o símbolo um cálice dourado, mas antes de pertencer a família real, ouvi dizer que era branco, cor usada no que eles chamam de Maeror, o período de morte e renovação sentimental. Fui instruída a não usar uma roupa toda branca ou eu seria mal interpretada. Okay.

Sinto uma espécie de choque. Meu corpo intensamente formiga. A realidade se faz confusa diante dos meus olhos que não conseguem focar no cenário de imediato. Despertar. Ergo o corpo com as mãos contra o colchão macio. Os barulhos enchem meus ouvidos e os cheiros são percebidos ao mesmo tempo. Sento na cama assustada. Alguém está gritando. Parece longe, vindo do andar de baixo, mas meu coração acelera de susto.

Tamborilo os dedos por cima do coração e ataco os lábios com os dentes. Respiro fundo e levanto, pisando com sapatilhas baixas e vermelhas, até a porta. Abro devagar a porta, os gritos ficam mais intensos.

É uma ousadia baterem na porta da minha residência isso sim! — Reconheço a voz de Zane, mas com uma grande alteração no volume.

Começo a andar pelo corredor atraída em curiosidade de entender o que estava acontecendo. Meus passos são amortecidos pelo elegante tapete vermelho preso com rodapés dourados.

É o protocolo, meu amor! — É a voz da Rainha, tentando acalmá-lo. Também está alterada, parece que estão brigando.

Você é uma decepção, Lucretia. Não inseriu o registro para que ela fosse feita prisioneira no Conselho. — Zane retruca, fazendo meu coração pular.

Deslizo os dedos pelo parapeito de madeira e estico um pouco o corpo para olhar para baixo, fitando o grande hall de mármore. A porta grossa de metal está aberta e posso ver quatro soldados de armadura metálica azulada segurando rifles. Não parecem ser soldados comuns do exército simplesmente pelo fato de que o exército obedece ao Império, é algo além, algo que pode se impor até mesmo sobre a Família Real.

Está me acusando?! — Em pé ao lado de Lorde Kaiser, que a de braços cruzados apoiando o queixo, Lady Lucretia coloca mão no peito sobre o corselete de couro preto e abre a boca em um círculo, ofendida.

Pai! — Um rapaz alto e musculoso de cabelos loiros na altura do ombro e olhos brancos, protesta.

Não se mete, Mikah. — Thalia sussurra ao ouvido dele, com as duas mãos apoiadas em seu ombro.

Entenda como você quiser, cretina! — Zane cruza os braços e range os dentes.

Há algo de errado na imagem de Zane. Consigo ver uma aura como um borrão que quer sair dele, escura como as sombras. Parece um defeito de imagem projetada, como se eu estivesse assistindo por um monitor, o que não estou.

Cretino é você. — A rainha empina o nariz, cruzando os braços e fazendo uma careta de entojo.

Já chega, vocês dois. — Um outro homem de cabelos lisos e castanhos compridos se intromete.

Esse homem é especialmente bonito, com a pele branca contrastando com o tom escuro dos cabelos e olhos vermelhos intensos, que apesar do brilho forte são especialmente amáveis. Sua roupa é bem excêntrica, calça preta e camisa, com uma jaqueta que imita a pele de um leopardo, marrom e amarela.

Ah, vai ficar do lado dela, Lennon? Para variar, né? — Zane protesta, ainda bravo, suas sobrancelhas curvadas em indignação e me parece que o tópico da conversa é muito maior do que simplesmente essa questão de agora, como um assunto que se arrasta mal resolvido. — Vocês dois quando se juntam, me detonam.

Eu só quero que você se acalme, Zane! — Lennon ergue a mão, para Zane, pedindo calma.

É, se acalme, querido. — Lucretia insere, provocativa.

Lucretia! — Lennon a corta.

Eu não vi que faltava o registro.

Você realmente podia ter prestado atenção. — Lennon balança a cabeça em negação.

Você vai ficar do lado dele?! — Lucretia coloca a mão no peito, abrindo a boca estarrecida. — Isso me ofende!

Você me ofende! — Zane insere.

Eu só quero que vocês se acalmem, maldição! — Lennon toma a briga para si, colocando as mãos na cintura e abrindo bem os olhos.

Imediatamente aquela aura estranha desaparece, com Zane virando de costas para Lucretia e colocando as duas mãos na cabeça. Ele me vê no alto da escada e abre os olhos em surpresa, certamente não esperava que eu estivesse escutando, mas não sou surda, certas coisas não tem como ignorar de tão presentes que se fazem.

Vulpine. — Zane me chama, exalando ar pela boca, anunciando minha presença.

É imediato que o silêncio toma conta da sala. Lennon e Lucretia não dão continuidade a discussão e os olhos intensos de todos viram-se na minha direção, como se eu não devesse ouvir o que estavam dizendo.

Bem, tarde demais, eu já ouvi e sei que estavam brigando por minha causa, o que cria um incômodo estranho no meu corpo. Minha respiração está ofegante, como se eu mesma estivesse em batalha ali em baixo, mãos apertadas contra o parapeito que só então percebo e alivio a pegada, sentindo os pulsos doerem.

Percebo dois rapazes que não tinha visto antes, mais afastados e perto da porta lateral que dá para uma sala de estar iluminada. Um deles tem os cabelos lisos e olhos brancos, com uma incrível semelhança com Zane e o outro, de olhos vermelhos e cabelos enrolados, que lembra bastante Kaiser.

É a garota. — O soldado no centro, me percebe também. — Tragam ela.

Os outros três soldados que o cercam dão um passo à frente, como se viessem me atacar. Meus músculos por inteiro se retesiam, de medo.

Zane rapidamente gira, enfrentando-os:

Não ouse entrar, soldado! — Grita, fora de si, erguendo o dedo indicador para os homens, com a voz especialmente inflamada e carregada de fúria.

Eles não dão mais nenhum passo, mas os pés ficam em cima do limite da porta. Mais alguns centímetros e estarão dentro. Nenhum recua. É como se a ameaça do Imperador não tivesse força, mas por respeito a ele, não entram.

Senhores. — Lennon toma a frente, aproximando-se dos soldados. — É tarde e minha família merece descanso. Vocês não precisam levar Vulpine uma vez que ela tem uma certidão temporária e é membro da Sociedade dos Vampiros, o papel não foi inserido por engano.

Sim, de fato. — Lorde Kaiser toma a frente e estala o dedo, para Thalia. — Vá buscar os registros de Vulpine, Thalia, por favor.

Imediatamente. — Ela sai correndo da sala, sumindo por uma porta.

Tenho um mandato de busca e apreensão que preciso cumprir, meu senhor. — O soldado do centro diz, irredutível. Ele tira do dispositivo em seu braço um retângulo azulado e estende, para que Lorde Kaiser o pegue.

De calça cinzenta de ficar em casa e camiseta folgada, Lorde Kaiser se aproxima do soldado e pega o dispositivo, caminhando até uma mesa lateral onde acopla o objeto. Um retângulo pequeno se abre, com uma lente de projeção e um holograma com um papel de símbolo estranho aparece. As múltiplas assinaturas ao final do documento faz Lorde Kaiser revirar os olhos.

Todos eles assinaram. — Anuncia.

Todos eles? — Zane olha para Lucretia, como se estivesse surpreso, ela cruza os braços e estreita os olhos. — Você fez de propósito.

Vejo Lennon deslizar a mão pelo rosto como se precisasse de paciência. Ele fecha os olhos e tampa a boca, sem ter o que dizer, mas encara Lucretia como se ela tivesse feito algo errado. E talvez isso explique porque Zane está tão bravo. Lucretia não reage, ela ergue uma sobrancelha e derruba os braços, torcendo a boca, nitidamente revoltada. Eu noto que ela está segurando as palavras que quer dizer.

Aqui, Kaiser. — Thalia entra na sala batendo os saltos finos e estende uma pasta para ele de forma energética.

Ele desliga o projetor e o holograma some. Kaiser pega a pasta e se aproxima do soldado, abrindo a pasta, tirando um papel que mais cedo eu vi Zane assinar.

Vulpine está sob a proteção do brasão da Casa Blonard até segunda ordem, mesmo que tenha o selo das Nove Casas no mandato, esse papel foi assinado antes e garante a ela noventa dias. — Lord Kaiser diz.

Meu senhor, é um mandato do Conselho, datado, carimbado pelas Nove Casas. A garota será apreendida. — O soldado insiste.

A garota sou eu. Vou ser presa?!

Se qualquer um de vocês se atrever a entrar por essa porta contra autorização do Imperador, eu não me responsabilizo pela represália. — Zane confere as unhas, como quem não se importa, mas é claramente uma ameaça. Ele mira os olhos nos soldados, que se acendem brancos por um momento. — Vão arriscar?

O soldado procura ignorar a ameaça, mas dá para ver que o assunto incomoda todos, pelas trocas de olhares entre os soldados atrás dele e alguns membros da sala. A Rainha coloca as mãos na cintura, como se a disputa fosse pessoal com ela.

Zane, não é o momento de ameaçar soldados do Conselho, são apenas homens cumprindo ordens dos homens de cima, acovardados de vir enfrentar você. — Kaiser ergue as mãos, pedindo calma e vira-se para o soldado, tentando conter a entrada dos mesmos. — Peço desculpas pelo temperamento do Imperador, ele não gosta de ser contrariado, mas certamente não preciso lembrá-los de que Zane é a autoridade política acima dos papéis do Conselho e que se o brasão Real ofereceu proteção à Vulpine, o Conselho tem que esperar o prazo de noventa dias, conforme a lei.

O papel não estava no processo. — O soldado insiste.

Certamente um pequeno descuido. — Lorde Kaiser procura manter a calma. — Por que não o inclui como parte do processo a partir de agora e facilita a coisa para todos nós?

A ameaça de Zane deve ter surtido algum efeito, pois o soldado usa o dispositivo em seu braço para que uma lente de luz vermelha escaneie o documento.

Muito bem, o assunto está encerrado. — Lorde Kaiser diz.

Por enquanto. — O soldado insere.

Todos dão um passo para trás, batem continência e deixam o corredor. A porta maciça metal se fecha com um barulho seco e as portas de madeira que decoram a parte de dentro são fechadas por Lorde Kaiser.

Quando penso que a confusão acabou, Zane vira-se para Lucretia:

O que você pensa que está fazendo, Lucretia?

Estou tentando impedir uma guerra interna, coisa que você não tem a menor preocupação de fazer, Zane! — A rainha se defende.

Jogou baixo dessa vez, até mesmo para você. — Ele insere.

Lady Lucretia perde o temperamento e acerta um tapa estalado e ardido no rosto de Zane, fica a marca do rosto, o som dos ossos quebrados. Coloco as duas mãos na boca de susto.

Lucretia, o que é isso! — Lorde Kaiser exaspera, colocando a mão na testa.

Não me ofenda! — A Rainha ignora os protestos.

Zane coloca a mão no rosto, massageando. Mikah dá um passo tomando a frente da mãe e cruzando os braços, protegendo-a, insinuando que Zane pudesse revidar as agressões físicas que recebeu.

Não preciso, você se ofende sozinha. — Zane retruca, mas dá um passo para trás. — Pra mim chega. — Acrescenta, dando as costas para eles e subindo os degraus da escada. Quando chega no mesmo andar que eu, me estende a mão. — Venha comigo, Vulpine.

Não acredito. — Lucretia exaspera e vira-se para o homem de casaco de leopardo. — Lennon!

Eu não quero nem saber. — Lennon ergue as mãos e dá as costas para todos, tomando o corredor do andar de baixo como rumo. Ele é o primeiro a deixar a sala.

Pense bem no que você está fazendo. — Lady Lucretia vai atrás de Lennon, depois de verbalizar uma advertência para Zane.

Mãe! — Mikah vai atrás dela.

Os outros dos garotos ainda ficam na porta, Thalia olha para eles e o de cabelos compridos é quem se move, indo atrás de Mikah, mas como se fosse uma obrigação e não por concordar em ir. O de cabelos cacheados, que parece Kaiser, resfolega e segue atrás.

Vulpine, vamos. — Zane insiste.

Eu estou tremendo, mas dou passos na direção dele, segurando sua mão, sentindo aquele toque energético que causa choques nas pontas dos meus dedos. Lorde Kaiser, que nos olha, suspira e entrega a pasta para Thalia. Antes de Zane dar um passo, me puxando para o segundo lance de escadas, ainda escuto Lorde Kaiser dizer:

Obrigado pela eficiência em alterar a data no documento de registro.

Espero que eles não percebam. — Ela confessa, com a voz temerosa.

Eu cuido disso. — Lorde Kaiser acrescenta.

Sinto um puxão no braço, Zane me fazendo andar mais depressa. Logo chegamos no segundo corredor e ele sobe mais um lance de escadas. A princípio, eu o sigo, mesmo que ele esteja com uma pressa quase violenta e assustadora, ainda vou no automático, até que chegamos no quarto andar, o terceiro lance de escadas. Zane se encosta na parede e coloca a mão na boca. Os olhos cheios de lágrimas, com uma incrível energia de tristeza sobre ele.

Minhas pernas bambeiam, perdendo a força. Ainda é tudo confuso na minha mente e não consigo entender o que houve, mas a certeza de que Zane possa ter razão e que Lady Lucretia armou contra mim, sem eu ter dado motivos, me assusta.

Eu sinto muito. — Zane engole o choro e respira, tentando se controlar, ele ainda não soltou a minha mão. — Não queria que tivesse visto isso.

A briga de sua família? Acho que é normal em famílias…

Não. — Ele não consegue evitar em sorrir, mesmo triste, achando graça em minhas palavras. — Quis dizer em parecer uma criança chorona na sua frente.

Fico um pouco encabulada por sempre estar supondo as coisas todas erradas diante dele, abaixo a cabeça:

Estou sempre te dando respostas estúpidas e fora de hora, mas não acho que você é uma criança chorona. — Fico na frente dele, deslizando o dedo sobre as costas de sua mão, que ainda aperta a minha. — Deve ser frustrante depositar sua confiança e criar expectativas em uma pessoa.

É horrível ver alguém que você ama se transformar em algo que você odeia.

Não é sua culpa. — Digo.

Nesse caso, é. — Ele suspira mais uma vez, chateado. — Vem aqui.

Zane me puxa na sua direção e nossos corpos se chocam, o meu fica tão delicado e pequeno diante do dele, que me encolho um pouco. Um abraço simples surge entre a gente e seus braços apertam forte espremendo meus ombros, enquanto ele apoia o queixo na minha cabeça. Ouço o som de seu coração batendo por entre a trama da roupa, com a bochecha amassada contra seu suéter de perfume suave.

É confortante. Mesmo que ele esteja respirando forte e entrecortado, indicando o quão avariado seu emocional ficou depois da discussão. Aceito o abraço, mas não sei se o conforto gerado é maior para mim ou para ele, quer dizer, Zane parece precisar ser abraçado também.

Desço meus braços e passo por sua cintura, segurando-o. Apenas fecho os olhos, sentindo o calor de seus braços e de seu corpo. E assim ficamos.

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